Festival de fado maior

Foi de encontros que se fez o XIX Festival Internacional de Música de Macau. De chineses com portugueses. De japoneses com chineses. Na ópera, nas Ruínas de São Paulo e na Torre de Macau, onde o fado bailou nos corações. A Orquestra Chinesa de Macau acompanhou Kátia Guerreiro na viagem às tradições que poderá continuar em Portugal

 

 

 

Há mais de cem anos em Nagasaki se fez o tempo e o espaço de “Madame Butterfly”. Um universo nascido da verve de Puccini, na Itália do século XIX, que o encenador japonês Yasushiko Aguni reinventou há 20 anos. Para o seu discípulo, Shigetaka Matsumoto, que repôs em cena esta produção da Ópera Fujiwara, a estreia internacional em Macau, no dia 7 de Outubro, “foi um destino natural”, porque nas Ruínas de São Paulo se encontrou com a sua cultura; porque no palco sentiu a empatia entre cantores americanos, japoneses e chineses. Assim se abriu o apetite para aquela que viria a ser uma das melhores edições do Festival Internacional de Música de Macau (FIMM) dos últimos cinco anos. A maratona só terminou no dia 6 de Novembro.

A provar que este era um festival de estrelas esteve também o inigualável Ivo Pogorelich, que se demorava ao piano, pesando cada nota na sua técnica impressionante. Mais animado foi o recital de guitarra e voz de Julie Nesrallah e Daniel Bolshoy. Um belo casamento entre a música clássica e o folk na Igreja de São Domingos. A cantora estreou-se com um texto do poeta brasileiro Vinícius de Moraes, o que a fez sentir-se “mais próxima do público português”.

Mais guitarras se ouviram no festival. A família de virtuosos “The Romeros” montou a sua “fiesta espanhola” no renovado Teatro Dom Pedro V, em mais um namoro entre clássica e tradição. Uma redundância de programas que deve ter feito de Manuel Falla o compositor mais tocado este festival, pois até “Empire Brass”, o ensemble que deu por finda a temporada de espectáculos, soprou sons deste autor nos metais americanos.

Para a história do festival fica sem dúvida o concerto do Quarteto de Cordas “Borodin”, um grupo apadrinhado pelo mítico Shostakovich. A mestria das cordas russas encantou o público. Não era a primeira vez que deixava um rasto de satisfação em Macau, mas o Instituto Cultural previu o interesse e reservou duas noites de actuação, agraciando a estreia do renovado Teatro Dom Pedro V.

Quem não faltou ao debute dos novos tons vermelhos do teatro foi o Cônsul Geral de Portugal, Pedro Moitinho de Almeida que, confessando não ser muito versado em música clássica, deixou-se deslumbrar pela alma russa e pela nova face do Dom Pedro V. “Está lindíssimo!”, elogiava no intervalo do concerto, enquanto passava os olhos pelo imaginário macaense.

 

Panóplia de estilos

 

Se o teatro macaense foi brindado com música clássica, as Ruínas de São Paulo acolheram a alma latina do festival. A grande diva cubana que conquistou o realizador Wim Wenders, em Buena Vista Social Club, fez desfilar jazz e baladas latinas. Como Besa Me Much. Omara Portuondo, cantou também em português uma letra de Carlinhos Brown e o hino chinês dos anos 30: “A Lua Representa o meu Coração”. Ficou a sonhar por mais e, no final do espectáculo, exclamava: “Quero voltar! Fiquei muito satisfeita com este espectáculo”, que primou sobretudo pelo malabarismo de Papi Oviedo à guitarra três.

Ao mesmo palco subiu Rodrigo Leão. Na fachada de todos os encontros projectou “Cinema”, um disco multicultural pelas vozes que nele convivem. Já cá tinha estado com os “Madredeus” e os “Sétima Legião”. Nessas idas e vindas foram aumentando as saudades: “Ainda guardo uma pipa que aqui comprei de recordação há alguns anos”, lembrou antes de despertar emoções na escadaria das Ruínas.

A festa prolongou-se na noite seguinte junto ao Rio das Pérolas, onde a formosa acordeonista Celina da Piedade deu um “concerto” fora de horas que deixou os portugueses, feitos amigos, de alma cheia. Já tinha dado a provar a sua simpatia no workshop na Escola Portuguesa de Macau (EPM). Rodrigo Leão dispôs-se a ofereceurum show-case e a escola retribuiu com uma sessão animada ainda pela exibição de um dos alunos ao violino de Viviena Toupikova, que acompanhou Rodrigo na digressão. Melhor ainda correu a oficina de Kátia Guerreiro. No final, os alunos da Escola Portuguesa de Macau já tratavam o fado por tu. Para Kátia, “foi uma experiência extraordinária ter a oportunidade de falar sobre o fado num sítio tão distante de Portugal”.

Junto dos seus músicos, de onde se destacava o guitarrista João Veiga, companhia de outros tempos de Amália Rodrigues e Alfredo Marceneiro, cantou com a “Orquestra Chinesa de Macau”. Foi o reacender da velha chama. Dois anos depois do guitarrista Pedro Jóia, Kátia reatou uma ligação cultural entre portugueses e chineses, semente antiga deixada por outros artistas como Rao Kyao ou António Ferro. “Uma honra” que a encheu do espírito de “missão” de levar a formação de Macau “numa grande digressão” a Portugal. Tudo fará, prometeu, para cumprir esse desígnio, que é também o sonho de Pang Ka Pang. O maestro não só conduziu com brio a sua trupe de músicos no tear de sons tradicionais que Kátia pintou com o fado, ainda que a falta de ensaios toldasse o encontro, mas também pela forma como liderou a homenagem a Teresa Deng, outro espectáculo popular do FIMM.

No capítulo dos concertos chineses, as “Oriental Angels” cruzaram tradição e pop num fundo polvilhado de playbacks. Já o espectáculo da Orquestra de Macau, na grande homenagem ao compositor de Macau Xian Xinghai, desenhou sorrisos de especial satisfação por parte da comunidade chinesa.

Mais contemporâneo, o festival ganhou ainda pelo conceito do espectáculo “Cidade do Nome de Deus de Macau”. A compositora da RAEM que reside em Nova Iorque, Lam Bun Ching, e o americano que trocou os Estados Unidos pela China, Eli Mashall, criaram duas peças inspiradas em Macau. Mas a Saudade de Macau II, de Lam, terá sido menos elaborada que a composição de Marshall, cantada na Igreja da Sé por Warren Mok. Até o director artístico do FIMM, que este ano preferiu o concerto à ópera, quebrou uma velha tradição.