“O meu sonho era poder estudar”

O presidente do Instituto Politécnico de Macau formatou em Pequim a sua vocação para o ensino. Mas foi na RAEM que cimentou a carreira docente e descobriu a paixão pela língua e cultura portuguesas

Lei Heong Iok tinha seis anos quando se rendeu ao sonho do saber. Fixava os olhos nos livros que via passar às costas dos mais graúdos que, a caminho da Universidade da Indústria, no subúrbio norte de Pequim, passavam pela pequena vila onde nascera, sem bens nem perspectivas. “Ficava deslumbrado ao vê-los. Aquela era para mim uma imagem fascinante”. Soube aí o que queria ser. Mal sabia onde conseguiria chegar. Hoje preside ao Instituto Politécnico de Macau, onde lhe afagam o ego 2800 alunos inscritos em cursos superiores e mais de 20.000 que anualmente flutuam por cursos de curta duração. Seduzido na meninice pela ambição do conhecimento, apaixonou-se na vida adulta pela arte do ensino… à qual juntou o grande amor da sua vida académica: a língua e a cultura portuguesas.

“Alma minha gentil, que te partiste / tão cedo desta vida descontente, / repousa lá no céu eternamente, / e viva eu cá na terra sempre triste.” Cita Camões com brilho nos olhos e um sorriso que muito dificilmente lhe sai quando a conversa se fixa em memórias ou se deixa levar por projectos. “Camões não se esquece”, garante, desfolhando escritos laudatórios assinados por si, nos anos oitenta, numa época em que, na China, “louvar poetas que cantavam descobrimentos estrangeiros era ainda difícil”, recorda. “Mas eu sabia que ele cantava sobretudo o humanismo. E era isso que me interessava transmitir.” Em cima da mesa estão várias edições de “Os Lusíadas”, cada uma delas manipuladas com o cuidado de quem lida com bocados da sua própria vida. “Umas fui comprando ao longo dos anos, outras foram-me dadas por amigos que conheciam esta minha paixão”. O gabinete é espaçoso, moderno e luminoso, na nova ala construída com a recente expansão do Politécnico. Mas é o antigo edifício, de traça portuguesa, “o mais bonito da zona”, opina, que faz questão de escolher para o enquadrar na fotografia de exterior que lhe foi pedida. Lei Heong Iok declara-se acérrimo defensor do progresso económico em curso, mas ressalva: “É o património de Macau, assim como as suas gentes, que podem marcar a diferença em relação a Zhuhai, aqui ao lado, e ao resto da China”.

Memórias de Pequim

A arquitectura clássica polvilha de resto as suas poucas memórias de infância. Parece-me que foi há 300 anos! Lembro-me apenas que estudava muito e com muito afinco”, inspirado por aquele impulso de realização universitária. “A minha vida era casa/escola e escola/casa. Tenho saudades desse tempo, em que os professores eram muito exigentes e sabiam não só ensinar mas também educar e disciplinar. Ainda hoje me preocupo, por exemplo, quando vejo a minha filha ler toda curvada, cheia de vícios, a comer a qualquer hora e de qualquer maneira, sem postura nem disciplina. Nessa altura as coisas eram diferentes”. De Pequim, por onde várias vezes passeava com os pais, guarda imagens “dos belos edifícios antigos que entretanto foram desaparecendo, dos extraordinários monumentos que se erguiam um pouco por todo o lado, da Cidade Proibida, da Grande Muralha…. Foi sobretudo isso que ficou”, conclui.
Tinha 16 anos quando pela primeira vez saiu de Pequim. Empurrado pela Revolução Cultural, foi parar a Heilongjiang (Rio do Dragão Amarelo), perto da Sibéria. Para além do “frio inesquecível”, lamenta nesses “tempos muito difíceis” ter-se visto separado da família. “Éramos pobres, mas muito unidos. Os meus seis irmãos foram enviados cada um para seu lado, tendo uns ingressado no exército e outros sido colocados em campos de reeducação. Alguns nunca regressaram, acabando por casar e organizar a sua vida longe de Pequim”. Lei Heong Iok teve “sorte”. Dois anos depois, voltou para reencontrar o seu destino de docente. Viviam-se então tempos de recuperação do ensino superior e conseguiu vaga no Instituto de Línguas Estrangeiras, no departamento de Cultura Inglesa.

“Macau tinha muito de exótico”

Quatro anos depois, em 1975, já com o canudo na mão, foi convidado a integrar um grupo restrito de cinco bolseiros, enviados para Macau a fim de estudarem a língua e a cultura portuguesas. Era uma área que já nessa altura interessava ao Instituto de Línguas Estrangeiras de Pequim, que contudo se defrontava com falta de professores. Teve por isso de assumir que regressaria para depois leccionar. O que aceitou “de bom grado”.
Chegou a Macau e logo gostou do que viu. “Para um chinês do norte, esta pequena cidade tinha muito de exótico”. E tinha também uma comunidade portuguesa que, muito para além da língua, lhe proporcionou o contacto com uma cultura e formas de vida “muito interessantes e especiais”. Lei Heong Iok recorda com carinho os professores desse curso especificamente concebido para os bolseiros que vinham de Pequim: Luiz Gonzaga Gomes, “grande figura da cultura portuguesa”; Túlio Tomaz, director do antigo Liceu; Júlio Pereira Dinis, vindo de Leiria para o Liceu Afonso D. Henriques… Este último marcou-o particularmente, pois para além do conhecimento que lhe transmitiu da língua abriu-lhe as portas de sua casa e permitiu-lhe um convívio familiar; fez-lhe ouvir o fado; deu-lhe a provar a gastronomia portuguesa e pôs-lhe nas mãos “Os Lusíadas”. Ainda hoje, “a minha grande paixão!”, repete Lei Heong Iok, em jeito de perpétuo agradecimento.
Finda a formação, em 1978, cumpriu o estipulado e voltou a Pequim, assumindo aí o cargo que lhe fora predestinado, no departamento de Língua e Cultura Portuguesa. É um período que descreve com orgulho, pois o ensino, com falta de materiais, “dependia sobretudo do empenho e do rigor dos professores, que tinham de organizar as suas próprias sebentas”, recorda, mostrando um dos seus “tesouros”: folhas de cor sépia, comidas pelo tempo, batidas por si à máquina e distribuídas pelos seus alunos da altura. Nesses seis anos que leccionou em Pequim deslocou-se pela primeira vez a Portugal, onde, entre outros ídolos do mundo académico, conheceu aquele que ainda hoje faz questão de tratar como “grande amigo”: Malaca Casteleiro, um dos mais conceituados linguistas portugueses e que tem mantido forte ligação ao ensino universitário em Macau. Contudo, a passagem por Macau, em finais dos anos setenta, marcaria em definitivo o futuro de Lei Heong Iok, que acabaria por ser ditado pelas circunstâncias do processo de transição política no território.
Em 1984, novo chamamento ecoava de Macau. Em 1987, a China avisaria por canais oficiais as autoridades portuguesas que o processo de transição política teria de ser lançado, na senda de um calendário entretanto já em curso em Hong Kong. Mas três anos antes disso, Lei Heong Iok havia sido convidado a regressar a Macau, onde um grupo restrito de técnicos e diplomatas já se preparava para as negociações que em breve assumiriam formato oficial. A sua anterior passagem pelo território e o domínio da língua portuguesa qualificavam-no na perfeição para as funções de tradutor/intérprete no Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês Sobre a Questão de Macau, cargo que mais tarde desempenhou com a exigida discrição que, ainda hoje, o impede de falar publicamente sobre essa experiência. “Foi uma fase muito importante da minha vida e penso que hoje posso dizer que desempenhei o meu papel num processo histórico no qual conseguimos todos fazer de Macau o que é hoje, através de um diálogo diplomático que correu muito bem e contribuiu para que Portugal e a China sejam hoje países amigos”.

Escolher o ensino

Não foi o único professor vindo de Pequim a enriquecer, nesse contexto, o seu currículo.
Por coincidência, ou evidência, os quatro companheiros que com ele tinham vindo de Pequim para aprender português em Macau acabaram, de uma forma ou de outra, vendo-se envolvidos no processo negocial que se seguiu. Curiosamente, todos acabaram por seguir carreiras alternativas ao ensino, tendo integrado o Ministério dos Negócios Estrangeiros e aproveitado oportunidades surgidas nesse terreno, quer em Pequim quer em países de expressão portuguesa com os quais a China foi reforçando relações bilaterais e/ou multilaterais. Vocacionado para o ensino e para as questões da educação, Lei Heong Iok voltou costas aos caminhos que lhe abria a política externa, fixando-se em Macau à espera de oportunidades na via de ensino. Passou de forma mais ou menos discreta pelos Serviços de Educação e Juventude, até que foi colocado na Escola de Línguas e Tradução. “Era o cargo certo, para o homem certo”, pensou na altura em que aceitou o convite. Afinal, outros destinos o esperavam. Primeiro, como subdirector do Instituto Politécnico de Macau e, a partir de Setembro de 1999, na sua presidência, cargo que ainda hoje ocupa.

“Língua portuguesa é a minha segunda pátria”

Conheceu Eugénio de Andrade, num “encontro emocionante, na cidade do Porto”; em 1981 já reflectia sobre Camões; escreveu an­to­­lo­gias sobre literatura portuguesa; traduziu para chinês a “Crónica dos Bons Malandros”, de Mário Zambujal, em 1986, quando apenas se atrevia a assinar com pseudónimos… A língua portuguesa é a sua “segunda pátria”. Porque é “chinês” de alma e coração e como tal se assume, mas porque encontrou na língua portuguesa a sua “gran­de paixão”. Talvez por isso va­lo­rize tanto os novos passos que o Instituto Politécnico de Macau começa a dar na esteira do projecto que a China concebeu recorrendo a Macau como plataforma de relações económicas e culturais com os espaços de língua portuguesa es­palhados pelo mundo. O ano pas­sado a sua institutição, responsá­vel por um centro de formação profissional especializado na indústria do jogo, formou cerca de 7000 alu­nos. “É uma área importante e temos de integrar as novas reali­dades económicas”. Con­tudo, há outras alternativas nas quais “tam­­bém queremos apostar”. Por exemplo, o Centro de Estudos dos Países e Regiões de Expressão Portuguesa, projecto que acaba de ser oficialmente aprovado no passado mês de Abril, ou o protocolo com o Instituto Politécnico de Leiria, com o qual Lei Heong Iok lançou um projecto pioneiro: um curso de língua e tradução com currículos geridos em paralelo e troca de alunos a meio da formação. Ou seja, os de Macau começam aqui e acabam em Portugal, os de Leiria fazem o percurso inverso. “Para já estou concentrado em garantir que esta experiência corra bem, depois poderemos pensar em reproduzi-la com outros países de língua portuguesa”, projecta Lei Heong Iok.