África positiva

Flora Gomes, um nome grande do cinema africano, diz que o líder histórico Amílcar Cabral foi para ele “como um pai” e foi quem lhe “pôs nas mãos” uma câmara de filmar. A propósito do conteúdo dos seus filmes, considera que é importante “mostrar essa África positiva, que existe, e que tem muitas coisas para oferecer ao mundo”

Nascido em 31 de Dezembro de 1949, em Cadique, na Guiné-Bissau, mas com um longo percurso de vida feito no exterior até à independência, Flora Gomes é hoje, para muitos, o nome mais destacado da cinematografia africana. Menos de meia dúzia de filmes foram o suficiente para lhe conferir uma relevância que contrasta com a escassez de meios materiais de que dispõe e com os problemas enfrentados para exprimir o seu trabalho.

Filho de pais que nem sequer tiveram acesso à escola, fez uma árdua caminhada em que conheceu todas as dificuldades, desde os tempos do período colonial aos anos igualmente difíceis da consolidação da independência do seu país.
Exemplo do homem africano que encontra nas raízes culturais do seu continente a seiva de uma cinematografia que nos traz uma África emergente e positiva é também um cidadão do mundo. Entende que a riqueza de qualquer cultura é a sua capacidade de dar e receber sem se renegar a si própria.
O seu carácter e a sua personalidade forjaram-se no exemplo dos grandes líderes africanos, com destaque para Amílcar Cabral, que considera ter sido para ele “como um pai” e a sua grande referência humana, cultural e política, embora tenha conhecido todos os grandes líderes de Cabo Verde, da Guiné-Bissau e de outros países africanos.
Em 1972 estudou cinema no Instituto Cubano de Artes e Cinematografia e mais tarde no Senegal, com o realizador e crítico Paulin S. Vieyra, só regressando ao seu país após a independência. Consigo trazia alguma formação, muito pouca experiência, mas uma grande vontade de trabalhar através do cinema para dar a conhecer uma outra realidade da África e da sua cultura que, refere, “está escondida” atrás dos dramas que este continente tem vivido.
Em 24 de Setembro de 1973, filmou a histórica declaração unilateral de independência da Guiné-Bissau. Cumpria-se assim o desejo de Amílcar Cabral de serem os próprios guineenses a filmarem a proclamação. O seu primeiro emprego foi no Ministério da Informação, fazendo reportagens sobre a actualidade do país.
Na altura, a Guiné-Bissau era muito procurada por cineastas estrangeiros para aí realizarem filmagens e Flora Gomes sempre solicitado para os apoiar, quer como assistente estagiário, quer noutras funções, ganhando assim a experiência que lhe faltava.
Em 1987 consegue finalmente realizar o seu primeiro filme – “Mortu Nega” – que conta o percurso próprio da Guiné-Bissau para a independência.
A obra foi muito bem recebida em festivais internacionais. Flora Gomes rompia o anonimato e concentrava sobre este seu primeiro filme as atenções da crítica internacional.
Seguiu-se “Os Olhos Azuis de Yonta” (1992), um olhar sobre o conflito entre as gerações que viveram a guerra e as novas gerações.
“Po di Sangui” (1996) – nomeado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes – foi a terceira longa metragem do cineasta guineense e a que o lançou definitivamente nos circuitos cinematográficos internacionais. A partir deste filme Flora Gomes passou a ser uma presença constante e prestigiada entre Cannes, Veneza e outros importantes festivais, onde se sucederam os prémios para o seu trabalho.

Impacto

Se toda a sua obra havia surpreendido, o seu último filme “Nha Fala” (2002) – que em crioulo significa “minha voz”, “meu destino” ou “minha vida” – foi o que teve maior impacto, marcando definitivamente uma carreira notável, apenas limitada pelas dificuldades financeiras que todos os cineastas africanos enfrentam nos seus países e os impedem de ter um trabalho regular. “Nha Fala” foi candidata ao Leão de Ouro do Festival de Veneza de 2002, tendo recebido o Prémio Citta di Roma – Arco Íris Latino e o Prémio Lanterna Mágica.
No próximo ano Flora Gomes deverá começar a rodagem da “República das Crianças”, um novo filme que pretende ser um olhar das crianças sobre o mundo dos adultos. Mas a sua grande ambição e o seu projecto mais desejado é uma longa metragem sobre Amílcar Cabral, para que não se perca a memória e o exemplo dos grandes líderes que fizeram a história moderna do continente africano e moldaram as gerações que têm obrigação de a continuar.
“Não estou a fazer mais nada do que aquilo que um homem deve fazer quando lhe põem nas mãos esse instrumento que é a câmara, sobretudo porque foi Cabral que a pôs nas minhas mãos”, sublinha este cineasta que rompeu as fronteiras do seu país e agora divide o tempo entre a Guiné-Bissau, a Europa e os Estados Unidos, onde o prestígio o conduziu a professor convidado na universidade norte-americana de Brown, em Providence.
Mas o que mais impressiona na sua obra é a capacidade de traduzir a genuinidade da cultura africana numa linguagem universalista que não deixa ninguém indiferente.

“Nha Fala”

Classificado como uma comédia musical onde se cruzam o humor e o optimismo, “Nha Fala” é uma obra fascinante muito mais profunda do que parece pela forma como agita a sensibilidade do espectador. É a história de uma lindíssima rapariga africana – Vita – que está proibida pelos pais de cantar porque uma antiga maldição condena à morte qualquer mulher da família que o faça. Vita, personagem interpretada por Fatou N´Daye, uma jovem senegalesa descoberta pelo realizador em França, vai entretanto estudar para este país, onde se apaixona pelo jovem Pierre, que é músico. Vencendo iniciais hesitações, balançando entre respeitar essa ancestral tradição ou assumir a sua condição de jovem moderna, Vita resolve desafiar a maldição que pesa sobre a família. Começa a cantar, grava um disco e regressa para partilhar essa libertação com o seu povo. Com os seus irmãos africanos, no meio de cantos e danças, Vita é mesmo obrigada a encenar o seu próprio funeral para melhor poder renascer.
Uma parábola ou uma história? Flora Gomes assume-se como um contador de histórias e considera “Nha Fala” como a sua maneira de “homenagear essa juventude que não é africana nem é europeia”, resultante de todos estes cruzamentos culturais entre a Europa e a África e afirma que apenas quis “mostrar essa África positiva, que existe, e que tem muitas coisas para oferecer ao mundo”.