Corredor de fundo

A sua sagacidade política e capacidade de negociador hábil não podem ser dissociadas do que aprendeu nos tempos quentes de 1974-1975 na Faculdade de Direito em Portugal. Com assento no Conselho Executivo e na Assembleia Legislativa, Leonel Alves assume-se agora como um experimentado maratonista, que se prepara para alcançar novas metas

Olha com emoção para os tempos de estudante universitário.“Influenciaram a minha maneira de ser e de pensar”, observa aquele que é hoje o político, oriundo da comunidade macaense, mais influente na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).
As agitadas reuniões gerais de alunos (RGA) e toda a efervescência que então se vivia na universidade, e em Portugal, fazem parte de um passado que lhe deixou boas recordações. Durão Barroso, António Vitorino, Santana Lopes, José Lamego e Ana Gomes são alguns dos colegas da Faculdade de Direito que desempenham ou exerceram funções de relevância política no Mundo e em Portugal. De Macau, lembra-se de José Manuel Rodrigues e Artur Robarts.
Em Outubro de 1974, Lisboa vivia dias de grande movimentação e agitação política. Os primeiros meses foram de análise, expectativa, embate perante uma nova conjuntura. “Integrei-me com muita facilidade no meio universitário e comecei a ler os livros da moda (Lenine, Marx e outros grandes pensadores)”. Em Março de 1975, a audácia revolucionária que Leonel Alves então evidenciava obrigou o pai a ordenar o regresso a Macau, já que o patriarca não concordava com as ideias que o filho defendia.
Menos de um ano depois regressa à Faculdade de Direito. Para recuperar o tempo perdido pede à primeira colega com quem se cruza os apontamentos das primeiras aulas. Começava ali uma ligação que ainda hoje se mantém, pois antes de voltar a Macau casa com Maria do Céu, uma setubalense de personalidade vincada e fortes convicções. Dessa união nascem Duarte e Bernardo. Não sabe se os filhos, que estudam em Inglaterra, vão ou não regressar a Macau. Tem, no entanto, uma certeza: é fundamental que aprendam mandarim.
Alunos de todos os quadrantes políticos frequentavam então a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Participou em muitas reuniões, comícios ou manifestações organizadas pelos partidos e movimentos de esquerda, mas nunca se filiou em nenhum deles.«Uma experiência aliciante, que influenciou a vida de toda uma geração», reconhece.
A caminho dos 50 anos, que completa em Abril próximo, Leonel Alves lembra com satisfação a infância, que viveu na avenida da República, perto da Meia-Laranja (próximo do Palácio de Santa Sancha ) um local por onde ainda hoje passa quando tem necessidade de se “inspirar, de reflectir, para ganhar alento para o dia de trabalho que se segue”.Mais tarde, foi viver para o antigo bairro Albano de Oliveira (“uma zona muito tranquila, com espaço para andar de bicicleta e jogar à bola”) que o antigo governador Almeida e Costa decidiu demolir para dar lugar a um auto-silo.
Em 1963 e 1964, viveu em Lisboa. O pai, funcionário dos Serviços de Saúde, foi a Portugal gozar a chamada licença graciosa. “Fiz parte da instrução primária na Escola do Restelo. Esses anos e, sobretudo, a viagem, que demorava um mês e meio para ir e o mesmo tempo para voltar, foram muito marcantes”, recorda.
De novo em Macau frequenta a Escola Comercial e o Liceu e no ano da Revolução dos Cravos volta à capital portuguesa para frequentar a Faculdade de Direito. “Para a juventude era extremamente emocionante, pois tínhamos acesso a toda a literatura política e, finalmente, podíamos ver os filmes proibidos. Permitiu a abertura da mente, que marcou a minha geração.”
Concluído o curso, é convidado para monitor da Faculdade de Direito e frequenta o estágio de advocacia. Em 1983 regressa, definitivamente, para trabalhar no Banco Comercial de Macau. A 2 de Maio abre o seu escritório.
As polémicas entre o antigo governador Almeida e Costa e parte da comunidade portuguesa mobilizava então a Cidade do Nome de Deus. “Não participei nesse conflito, pois era muito novo, mas penso que era tudo bastante escusado. A dissolução da Assembleia Legislativa visou atingir determinadas pessoas da comunidade portuguesa de Macau. As feridas estão hoje mais do que saradas, mas não esquecidas. Cada um mantém a sua posição”, nota, sublinhando que a confrontação devia ter sido evitada. De Almeida e Costa ficaram algumas medidas estruturais, como o lançamento de projectos essenciais ao desenvolvimento de Macau, nomeadamente o Aeroporto Internacional e a viabilização da CEM.
Em Outubro de 1984 entra pela mão de Carlos Assumpção, na Assembleia Legislativa. Com o então líder da comunidade portuguesa vive o que classifica como o melhor período da sua vida política. “Não é possível encontrar um sucessor do dr. Carlos Assumpção. Não vivemos a mesma época, a conjuntura é diferente. As qualidades intelectuais de Carlos Assumpção não são superáveis por qualquer macaense da minha geração», afirma com convicção. Trabalhar com Carlos Assumpção foi um privilégio. «Aprendi muito com ele, como jurista, político e homem. Não tenho dúvidas, como, de resto, reconhecem muitos portugueses e chineses, que o período de transição teria sido diferente se Carlos Assumpção não tivesse morrido tão cedo.”
Quase sete anos depois da transferência de administração assume as responsabilidades que tem perante a comunidade. No actual quadro político de Macau, “tenho a obrigação de transmitir os anseios e defender as perspectivas desta nossa comunidade específica. Sinto esse encargo e tento cumprir com lealdade e transparência essa tarefa”.
Quanto ao futuro, é hábil na resposta. “Em 1984 entrei para a política com a missão de ajudar a minha terra e por um período de quatro anos apenas, mas várias circunstâncias obrigaram-me a continuar. Não tive, nem tenho ambições políticas. Estou disponível para trabalhar em qualquer cargo que os governantes e as pessoas de Macau entendam ser útil. Tenho total disponibilidade para contribuir para o bem da Região Administrativa Especial de Macau.”
No seu escritório trabalham hoje cerca de 30 pessoas. “Não pretendo que se transforme numa firma de advogados”, frisa, admitindo que espera reformar-se mais cedo da advocacia do que da política.
Nos últimos meses tem participado num dos casos mais mediáticos do actual momento da vida local: o diferendo entre Stanley Ho e Winnie Ho. Leonel Alves confessa ser amigo pessoal dos irmãos Ho e, por isso, espera que o conflito entre Stanley e a irmã acabe em breve. “Não esperava que houvesse esta evolução. Tenho enorme admiração por Stanley Ho e espero que ambas as partes cheguem a acordo com celeridade».
Benfiquista desde que nasceu, “é congénito, aqui não tive a possibilidade de ter outra opção”, comprou algumas acções da SAD com o objectivo de ajudar os encarnados a regressar aos bons velhos anos de glória e fama.
Quase não tem tempos livres, pois a actividade profissional e a política obrigam-no a trabalhar muitas horas por dia. Desde que entrou para a Assembleia Legislativa que não se lembra de tirar um mês de férias completo. Contenta-se com uns fins-de-semana na Malásia ou na Tailândia ou pequenos périplos pela Europa.
Amante de carros desportivos, tem um Ferrari e um BMW M3, mas falta-lhe tempo para acelerar. O que de vez em quando faz do outro lado da fronteira, nas avenidas da vizinha Zona Económica de Zhuhai.
Em Macau, as corridas são outras, mas Leonel Alves não revela o percurso que o vai conduzir até à meta.

O “luso-chinês” da política de Macau

Com mais de 20 anos de actividade política, assume que quer continuar a servir Macau. Apontado como o delfim do antigo líder da comunidade portuguesa, Carlos Assumpção, está há mais de duas décadas na Assembleia Legislativa e integra desde 2005 o Conselho Executivo, órgão que se destina a coadjuvar o Chefe do Executivo na tomada de decisões.
Leonel Alves clarifica a opção pela nacionalidade chinesa (que era uma condição para poder integrar o Conselho Executivo) e garante que não se sente hoje menos português. “Continuo a sofrer e a vibrar com as derrotas e as vitórias do Benfica, a emocionar-me com os êxitos da selecção de futebol, a pensar em português, mas se a minha escolha foi continuar a viver em Macau é lógico e natural que queira ser um cidadão de pleno direito. É verdade que tenho o handicap de não saber ler e escrever chinês e não conhecer muito bem a cultura chinesa, mas a opção não podia ser outra, pois, desde que nasci, a 5 de Abril de 1957, que em face da legislação sou um cidadão chinês.”
A mãe de Leonel Alves é chinesa, com sangue paquistanês, enquanto que o pai é já fruto da miscigenação, pois o avô paterno era oriundo de Trás-os-Montes e casou em Macau com uma residente natural de Cantão.
A entrada no Conselho Executivo não foi decisiva. “Independentemente do cargo teria feito essa opção com naturalidade”, assegura, revelando que a mulher e os filhos aceitaram a decisão, “apenas estranharam porque demorei tanto tempo a formalizar a questão”, mas confessa que foi obrigado a dar explicações a alguns dos irmãos. De resto, responde com um sorriso quando o jornalista lhe chama o “Deco da política de Macau”. “Ele é melhor no futebol do que eu na política, mas é verdade que sou luso-chinês”, diz no seu escritório, situado no coração da cidade, poucas horas antes de partir para a Europa para assistir à graduação do filho mais velho (Duarte).
“Não tenho dúvidas que em termos de sangue e culturalmente sou um luso-chinês”, afirma com precisão. E, em jeito de brincadeira, deixa escapar outro comentário: “Os amigos tratam-me por Neco, o que acaba por ser muito parecido com Deco…”. O actual primeiro secretário da Assembleia Legislativa (AL) é um dos deputados mais antigos do Hemiciclo, uma vez que iniciou a carreira política em 84, na primeira eleição depois da polémica dissolução da AL. A lista da União Eleitoral, liderada por Carlos Assumpção, integrava Mesquita Borges (recentemente falecido), Lau Cheoc Va (hoje vice-presidente do órgão legislativo), Anabela Ritchie e Morais Alves. “Conseguimos 18 mil votos e elegemos quatro deputados”, lembra.
Do seu percurso político nota ainda para a participação na Comissão Preparatória, o órgão que ajudou a lançar a RAEM. «Nas reuniões das comissões dos assuntos jurídicos e assuntos políticos houve um diálogo muito enriquecedor, que permitiu ficar a conhecer melhor a Lei Básica».
Leonel Alves destaca o debate com os legisladores de Pequim e sublinha que o contributo dos membros oriundos da comunidade portuguesa (Raimundo do Rosário, Philip Xavier e ele próprio) foi decisivo para encontrar algumas soluções, como na questão da nacionalidade dos macaenses. “O importante era que de 19 para 20 de Dezembro não houvesse perturbação social, ansiedade ou intranquilidade psíquica. Que as pessoas não fossem obrigadas a optar entre a pátria e a mátria. A opção da nacionalidade não foi exigida a ninguém, o que acabou por ser uma deliberação que agradou a todos os membros da comunidade”.

“Macau reforçou o estatuto de local de encontro”

Leonel Alves considera que, com o lançamento da política de cooperação com os países de língua portuguesa, Macau reforçou o seu estatuto de local de encontro e de plataforma de negócios

– Como classifica a sua experiência no Conselho Executivo?

– Tem sido uma óptima experiência, pois representa uma nova vertente da actividade política na Região Administrativa Especial de Macau. A participação no Conselho Executivo possibilita um diálogo diferente, outra análise da vida de Macau. Tem sido muito útil para compreender melhor Macau, as aspirações da população da RAEM.

– O modelo de desenvolvimento económico está a levantar algumas incertezas em certos quadrantes da população…

– No início do século, Macau atravessou um período crítico na sua economia e as bases para um novo ciclo foram lançadas em 2002 e 2003. O processo de liberalização da principal indústria foi bem sucedido. O carácter capitalista liberal da economia acentuou-se.
Há que saber resolver as contradições que existem. Uma parcela da comunidade tem revelado dificuldades de adaptação às novas contingências do desenvolvimento económico e social. Não está, de facto, preparada para o actual quadro de crescimento de Macau.
O Governo deve apostar, como aliás tem feito, em políticas educacionais e sociais, de modo a preparar o embate que este ciclo de desenvolvimento vai provocar.

– Como perspectiva o futuro da comunidade portuguesa?

– Com a ligação aos países de língua portuguesa, Macau reforçou o estatuto de plataforma de negócios e local de encontro de pessoas de várias nacionalidades. A comunidade portuguesa terá um papel importante em Macau nas próximas décadas.

– Que balanço faz da actividade da Assembleia Legislativa?

– Penso que deve existir um diálogo mais profícuo entre os deputados e o Executivo. A Assembleia Legislativa não deve abdicar da sua função de produção legislativa.
Como cidadão espero que a vertente legislativa ganhe preponderância ou pelo menos não ceda muito espaço à vertente política.
Para o equilíbrio dos poderes e o normal funcionamento de Macau no quadro da Lei Básica gostaria que a AL pudesse desempenhar melhor o seu papel de órgão legislativo.

– Que matérias devem passar nos próximos tempos pe­lo Hemiciclo?

– A Lei Eleitoral para as eleições do futuro Chefe do Executivo, a regulamentação do artigo 23º e a revisão de matérias que integram os Grandes Códigos. Não devemos caminhar pela revisão global dos Grandes Códigos, mas é prioritário introduzir mexidas.
O Direito de Família tem que ser revisto, assim como o regime de arrendamento, pois para combater a especulação imobiliária é necessário salvaguardar os interesses das pessoas que não têm residência própria.
Ao nível do Código de Processo Penal é também adequado melhorar as garantias dos direitos e liberdades da população.

– Como é que perspectiva o desenvolvimento da vida política?

– Temos que olhar para a população de Macau e perceber a sua génese. Como todos sabem há uma enorme percentagem de novos imigrantes e não podemos pensar em introduzir alterações no modelo vigente porque é moda alterar o que está em vigor. Temos que saber se a população está preparada para um novo enquadramento da estrutura política. É fundamental que Macau continue a ter capacidade para progredir e autogerir-se. Não quer dizer, contudo, que não possam ser encontradas soluções de melhor auscultação da opinião pública. É prioritário que exista uma melhor interacção entre o Governo e a população.

– Como está a funcionar a Justiça em Macau?

– Não há rupturas no sistema judicial, o que não representa que não haja necessidade de melhorar. O que é preciso é encontrar alternativas à justiça clássica. Temos que olhar para a experiência de outros países e apostar, por exemplo, em centros de arbitragem. O Tribunal de Pequenas Causas tem dado resultados positivos e, portanto, o caminho a seguir é encontrar fora dos tribunais soluções que permitam que os conflitos sejam resolvidos de forma mais eficaz e rápida.

– Como vai ser Macau depois de 2009, ano em que vai escolhido o novo Chefe do Executivo?

– As pessoas de Macau demonstraram, de Dezembro de 1999 até agora, que têm capacidade de se governar a si próprias, como estipula a Lei Básica. 2009 marca o início de um novo ciclo político. É fundamental contar com o contributo das pessoas experientes e que conhecem bem Macau para que a RAEM continue a desenvolver-se tranquilamente. Macau sempre se pautou por uma vida tranquila e temos que perspectivar que o futuro de Macau seja vivido com tranquilidade, sem interrupções, sem quebras de con­­tinuidade.