Vinte anos de música

Desde 1987 que existe o Festival Internacional de Música de Macau, que se encena anualmente nos ambientes intimistas do Outono macaense. Estrelas dos palcos dos mundos vêm brilhar no território, cuja população vem acarinhando o, cada vez mais, seu festival

Foi para lançar a imagem cultural de Macau e afinar o tom das trocas entre Oriente e Ocidente que nasceu o Festival Internacional de Música, carinhosamente apelidado a nível local de FIMM. Arrancou com um programa de oito espectáculos e um conceito de intimidade único na Ásia. Ainda hoje, 20 anos depois, o FIMM marca a toada da cultura da Região. Já não por uma semana mas ao longo de todo o mês de Outubro. Sempre romântico e íntimo pelo cenário de Macau.
António Carmo foi o primeiro coordenador geral e Adriano Jordão o seu director artístico. No número 1 da Travessa do Paiva uma pequena equipa, o secretariado permanente, formado por técnicos dos vários serviços da administração, arrancava da estaca zero com um projecto único na Ásia. Mais tarde, o FIMM viria a ser organizado pela Direcção dos Serviços de Turismo e, em 1991, passava para sempre para as mãos do Instituto Cultural (IC).
Em parceria com o actual director do Museu de Arte de Macau, Ung Vai Meng, Carlos Marreiros assinava a ilustração do primeiro catálogo, que se multiplicou ao longo dos anos.
São actualmente concebidos por uma equipa de designers liderada pelo seu irmão, Victor Hugo Marreiros. A imagem gráfica do festival é de tal forma apreciada que tem sido premiada em concursos internacionais e locais.
Em 1992, Adriano Jordão passava a pasta da direcção artística a João Pereira Bastos. Foi algo insólita a forma como Bastos recebeu tamanho convite: “Estava de partida. Foi no terminal do jetfoil que me perguntaram se queria ser o director artístico do FIMM. Quando aterrei em Lisboa já tinha decidido aceitar o convite”, formalizado depois por Carlos Marreiros, que assumia em 1989 a presidência do IC.
“O festival passou a ser conhecido na Europa”. A influência de Bastos nos meios artísticos viria a concretizar um dos maiores sonhos para o FIMM, a internacionalização. E ganhou ainda fama na Ásia. Afinal, a primeira produção da ópera “Turandot” da China era encenada em Macau, mais precisamente no Fórum.
Foi nesses anos que se insistiu na “utilização dos cenários próprios de Macau”, ou seja, no património feito sala de espectáculos. Palavras de Carlos Marreiros que viaja às igrejas vestidas da música de grandes compositores. O arquitecto lembra as Ruínas de São Paulo, a Igreja de São Domingos e a Sé Catedral, que ainda hoje enobrecem os espectáculos do FIMM.
Pelo palco do festival desfilaram ainda grandes vedetas como a soprano Ileana Cotrubas, logo na primeira edição, e a meio-soprano Christa Ludwig, no mítico Jardim Lou Lim Ieoc, em 1990. “Macau não estava habituado a receber estrelas tão qualificadas”, adianta Carlos Marreiros. Michel Reis, actual programador do festival, recorda ainda a actuação do famoso maestro Sandor Végh: “Deve ter sido um dos seus últimos espectáculos”. Foi nesse ano, em 1988, que a actriz Audrey Hepburn aceitou o convite e veio a Macau como embaixatriz da UNICEF.
Para além de dar a oportunidade ao público de quase que privar com os artistas, dada a pequenez da cidade e dos seus palcos, o FIMM tem servido de trampolim a muitas carreiras. As duas orquestras de Macau aí todos os anos dão nota dos seus progressos musicais, mas também artistas de Portugal, de Macau e de Hong Kong daí têm saltado para o firmamento. Elisabete Matos é um exemplo. Actuou no festival quando ainda não conhecia a fama e “é hoje uma das nossas maiores sopranos”. Disso se orgulha Bastos que a descobriu. Outro exemplo é o tenor Warren Mok. Hoje em dia, é ele quem decide quem pisa e não pisa o palco do FIMM.

Variedade e qualidade

E é com “muito orgulho” que Warren Mok é, desde há seis anos, o director artístico do evento. Respeita as características essenciais do festival e acredita que o que hoje em dia o distingue dos outros eventos culturais do género na zona do Delta do Rio das Pérolas é a grande variedade de programas de grande qualidade: “Temos ópera, musical, concertos sinfónicos e de world music, pop e até rock.” O cruzamento cultural que existe em Macau entre as culturas chinesa e portuguesa é outra das características do FIMM, “é um privilégio que os outros não têm”.
Mok destaca actuações como a do maestro Lorin Maazel e da Orquestra Filarmónica de Nova Iorque. Também a ópera “La Bohème” e o musical “Chicago” merecem ser recordados com saudade. Este ano quer festejar o aniversário com romantismo e convida o prodígio chinês Lang Lang para a grande arrancada no dia 6 de Outubro. Trinta espectáculos sucedem-se até 5 de Novembro. Pelo Teatro Dom Pedro V passam os Musica Antiqua Colónia (16 de Outubro) conhecidos pela sua genuinidade na música barroca, aquecendo para o surpreendente jazz da Orquestra Instant Composers Pool que ali despertará a criatividade de todos dez dias depois. Pela Fortaleza do Monte vão ecoar os sons modernos da electrónica de “Insen”, o projecto do famoso Ryuichi Sakamoto e do jovem alemão Alva Noto.
Mais ecléticos do que nunca os programas do FIMM ganharam um carácter mais generalista. Já na sua nota de abertura da 14ª edição a presidente do IC, Heidi Ho, dava a conhecer as novas linhas que iriam coser o futuro do FIMM: “Privilegiou-se, por um lado, a divulgação de pessoas e países, por outro, a simbiose do clássico e do moderno, o que lhe traz um maior ecletismo, logo uma maior aptidão para satisfazer o diversificado gosto do público”.
Nesse primeiro FIMM depois da transferência, a programação incluía ainda uma série de actividades que ainda hoje perduram como workshops, palestras e actividades nas escolas, apostando assim na formação do público de Macau. Segundo uma fonte do departamento de promoção do IC, seis anos idos e já se colhem frutos desse esforço: “Cada vez mais jovens aderem ao FIMM. Essa é a meu ver uma das grandes mudanças”.
Muitos e famosos artistas de todo o mundo pisaram os palcos de Macau, mas mais do que quem os convidou foi quem promoveu esses concertos que merece o aplauso, depois de anos de casas por encher dada a excessiva generosidade na oferta de ingressos. Foi preciso inverter essa tendência, Carlos Marreiros recorda: “Nos últimos anos a venda de bilhetes aumentou muito e as taxas de ocupação são bastante significativas”. E prossegue: “Os objectivos da promoção mais atempada parecem mais bem marcados, há uma utilização de canais próprios e uma cooperação com instituições asiáticas”.
O IC partilha os louros: “Muito tem mudado em Macau. O público está mais aberto às propostas mas é ainda de louvar o trabalho de outras instituições como o Centro Cultural de Macau”.
Para a mesma fonte do IC, o festival tenderá a evoluir à medida do desenvolvimento de Macau, que nos últimos anos tem sido tão rápido. “Sentimos de facto a pressão das mudanças do mercado, mas estamos atentos e procuramos satisfazer as necessidades actuais”.
Warren Mok acredita que “o sucesso do FIMM deve-se ao apoio total do Governo. O público de Macau reconhece e aprecia a qualidade dos artistas que vêm cá actuar”. Em termos pessoais, o actual director artístico considera ainda que a visão do Governo e a liderança do Instituto Cultural fizeram deste festival uma janela para o mundo cultural. Por isso, vai seguir a política do IC e continuar a “atrair até Macau os artistas internacionais de grande qualidade, procurando fazer do FIMM um evento diferente dos outros da região circundante, usando a música clássica como a base estruturante, agregando uma variedade de estilos musicais e formas de arte”. E se os bilhetes quase que esgotam todos os anos, é porque a fórmula funciona: “O festival é bem aceite por todos”.

Fado e rock luso dão charme ao FIMM

Foram ainda muitos os artistas portugueses que passaram pelo Festival Internacional de Música de Macau, do grande Carlos Paredes ao Ballet, ao Coro e à Orquestra da Gulbenkian, passando ainda por Mísia, Pedro Burmester ou mesmo Maria João e Mário Laginha. Todos ajudaram a firmar os laços culturais entre portugueses e chineses em Macau. Este ano é a vez de Carlos do Carmo e Xutos e Pontapés darem a conhecer ao Oriente um pouco mais do seu Portugal.
“Pode acontecer que este seja o último espectáculo da minha carreira, mas não gosto muito de especular”. Afinal sempre são 43 anos de vida dedicada aos mistérios do fado, orgulha-se Carlos do Carmo, do alto dos seus 66 anos de idade. O fadista está ansioso por voltar ao Teatro Dom Pedro V, onde há cerca de 15 anos fez a sua estreia em Macau. É um regresso especial e, embora admita que “a água nunca corre duas vezes por debaixo da ponte”, promete reviver alguns dos êxitos desse tempo.
Cantar o fado no mundo lusófono “é absolutamente fantástico porque o português é forte na ausência. Gosta francamente da sua terra, o que é comovente para quem canta”. Já lhe aconteceu “ficar com a voz embargada por sentir a emoção que as pessoas estão a partilhar. Não é por acaso que a palavra saudade é portuguesa”. E se o público que o aplaudir nas noites de 11 e 12 de Outubro for mais chinês do que aquele que vibrou nas outras suas duas passagens por Macau, nada há a recear, porque “a linguagem da alma não requer tradutor”.
O mesmo sentem os Xutos e Pontapés, que no dia 27 de Outubro vão repescar os seus grandes sucessos nos Lagos Nam Van. Os chineses já não estranham o seu rock de pronúncia portuguesa, como nos anos 90. Para Zé Pedro, tocar para pessoas de culturas diferentes nesse tempo era diferente. Hoje em dia, com a Internet a exposição ao que se passa no mundo é maior. É tudo uma questão de atitude em palco”.