Os verdes anos do cinema chinês

  Após o surgimento no Ocidente de uma nova forma de expressão que associava tecnologia às artes visuais e esboçava os primeiros passos apoiada nas experiências de pioneiros como os irmãos Lumière, que apresentaram em estreia mundial no Grand Café de Paris o seu invento, em 28 de Dezembro de 1895, causando enorme furor e […]

 

Após o surgimento no Ocidente de uma nova forma de expressão que associava tecnologia às artes visuais e esboçava os primeiros passos apoiada nas experiências de pioneiros como os irmãos Lumière, que apresentaram em estreia mundial no Grand Café de Paris o seu invento, em 28 de Dezembro de 1895, causando enorme furor e entusiasmo na assistência, a grande novidade foi introduzida em Xangai em 1896, um ano após o seu lançamento. Um conjunto de curtas-metragens foi apresentado nos Jardins Xu, durante um espectáculo de variedades, por um cameraman/projeccionista vindo de França para o efeito. Era de nacionalidade americana o próximo showman a exibir-se em Xangai. James Ricalton adquiriu diversos filmes ao inventor Thomas Edison e mostrou-os em várias casas de chá, restaurantes, teatros e jardins da cidade em 1897. O público podia assim apreciar imagens da visita do czar Nicolau II a Paris, uma das fitas existentes nessa colecção. Estas sessões públicas conquistaram rapidamente a atenção de inúmeros espectadores ávidos por conhecer o novo meio. De início, os filmes eram mostrados como interlúdio, durante os recitais musicais e de ópera chinesa. A assistência continuava a manter hábitos antigos adquiridos noutro tipo de espectáculos, de conversar, comer e beber durante a projecção. Divertiam-se com este entretenimento exótico que chamavam de “teatro de sombras ocidentais”, para o distinguirem das tradicionais “sombras chinesas”. Nos anos seguintes, sucederam-se as projecções de filmes estrangeiros nas principais cidades chinesas. As películas francesas e americanas eram as preferidas dos frequentadores dos teatros e salas de cinema que começaram a proliferar no primeiro quartel do século XX.

As primeiras experiências de produção na China decorreram através da realização de documentários. A companhia de Thomas Edison destacou um operador de câmara em 1898 com o intuito de captar imagens para filmes de actualidades. No final do século tinham chegado também os primeiros operadores da produtora francesa Pathé. A China exercia um enorme fascínio no Ocidente devido ao seu exotismo peculiar e em particular, ao eclodir da Rebelião Boxer (1899-1901) contra as forças imperialistas da Aliança das Oito Nações.

Os operadores não tiveram mãos a medir para cobrir as atrocidades. Entre eles estava Ricalton, o pioneiro de Xangai que continuava na China ao serviço da Underwood & Underwood. Eram os primeiros registos cinematográficos de um conflito a correr mundo. Cedo se descobriu que o drama da guerra era um produto muito apetecido em matéria de actualidades porque fazia encher as plateias dos cinemas ocidentais.

 

Xangai, meca do cinema

 

Em 1908, o espanhol Antonio Ramos, recém-chegado das Filipinas (onde protagonizou as primeiras sessões de cinema munido com um cinematógrafo), construiu no international settlement de Xangai, a primeira sala dedicada exclusivamente à projecção cinematográfica. Assim nascia o Cinema Hongkew que dispunha de 250 lugares. Era o início de um negócio florescente, dando origem à cadeia de teatros Shanghai Ramos que perdurou durante praticamente duas décadas, até ao advento da revolução popular em 1927, que precipitou o regresso do empresário a Espanha. Em 1929, havia 233 salas de cinema espalhadas por sete cidades, cabendo a Xangai um lugar de destaque, com 53 espaços públicos consagrados à exibição cinematográfica e uma capacidade de trinta e sete mil lugares sentados.

O maior centro de produção chinês nesta época, Xangai era uma cidade vibrante e cosmopolita, onde as elites intelectuais dedicavam uma atenção especial aos filmes domésticos, em contraponto com a avassaladora tendência de Hollywood, em inundar os ecrãs com os produtos que exportava.

Até à I Grande Guerra (1914-1918), as películas europeias dominaram os circuitos de distribuição chineses, principalmente as que eram produzidas pelos estúdios Pathé e Gaumont, tendo sido gradualmente substituídas por fitas americanas após a celebração do armistício.

 

Primeiros passos

 

A rodagem do primeiro filme chinês, Conquering Jun Mountain, teve lugar nos derradeiros anos da dinastia Manchu. Realizado em 1905 por Ren Jingfeng, proprietário de um pequeno estúdio fotográfico em Pequim (Fengtai Photography Studio), após ter estudado fotografia no Japão. Sentindo-se atraído pelo cinema, adquiriu o seu próprio equipamento de filmagem numa loja alemã da capital chinesa. O filme registou para a posteridade, um acto de ópera chinesa protagonizado pelo famoso actor, Tan Xinpei. As filmagens decorreram no pátio do seu estúdio com o recurso a luz natural e o actor a executar uma série de movimentos acrobáticos perante uma câmara estática. A recepção do público foi calorosa o que entusiasmou Ren a rodar mais filmes com episódios de ópera e a projectá-los noutras cidades, incluindo as províncias mais a sul de Jiangsu e Fujian.

Os bilhetes para as sessões de cinema eram bastante acessíveis, possibilitando ao grande público apreciador de ópera assistir à actuação das suas estrelas favoritas, o que de outra forma não estava ao seu alcance. A grande popularidade deu origem a um novo género: versões filmadas de espectáculos de ópera chinesa.

Um esforço mais ousado para produzir uma obra de ficção não se materializou até 1912, quando o investidor Zhang Shichuan e o realizador Zheng Zhenqiu (1) dirigiram The Difficult Couple, em colaboração com os americanos da Asia Film Company, criada em 1909 por Benjamin Brodsky. Tratava-se de uma curta-metragem de 45 minutos que ironizava os ritos tradicionais das cerimónias de casamento da província de Cantão. Do ponto de vista histórico é interessante notar que esta é a primeira co-produção sino-americana. Os realizadores deste período preocupavam-se em mostrar aspectos etnográficos da cultura chinesa, numa perspectiva exibicionista que se enquadrava com o teatro tradicional e com o “cinema de atracções” tão comum noutros países, durante as primeiras décadas do século vinte.

O modelo de produção usado em The Difficult Couple foi aplicado com sucesso a outras obras. Os americanos eram responsáveis pelo investimento, equipamento de filmagem e pós-produção. Os chineses tinham a seu cargo o argumento, a realização e os protagonistas. A percepção de que ninguém faria melhor do que os realizadores chineses, para lidar com as idiossincrasias culturais do seu próprio país, permitiu-lhes explorar temáticas que cativaram o público local, tanto na China como em Hong Kong, onde a Asia Film Co. também desenvolvia a sua acção. Em 1913, o cineasta e actor de Hong Kong Lai Man-wai, chegou a acordo com Brodsky para a produção de Zhuangzhi Tests His Wife, que se baseava num episódio de ópera cantonense.

Apesar de não ter estreado em Hong Kong, Brodsky apresentou-o em Los Angeles em 1917. Ao sucesso das duas obras não é alheio o facto de ambas se inspirarem em temas tradicionais, que eram familiares às plateias chinesas e potencialmente atraentes para os espectadores estrangeiros, o que os transformou em projectos emblemáticos, devido à fórmula encontrada, duplamente segura em termos de produção e distribuição. Outro pormenor a reter é que ambos veiculavam valores da cultura cantonense, que encontraram um profundo eco no mercado do Sudeste Asiático, onde a diáspora chinesa marca uma presença incontornável e venera os filmes domésticos, pelo forte apelo nostálgico e nacionalista que despertam entre os chineses ultramarinos, a maioria dos quais mantém laços fortes com a província de Cantão.

A Asia Film Co. teve que cessar abruptamente a sua actividade em 1914 devido à impossibilidade de se importarem mais fitas de celulóide para filmagem provenientes da Alemanha, país que abastecia habitualmente os stocks desta região, em virtude da eclosão do conflito mundial. Xangai só voltou a receber mais bobinas a partir de 1916, quando os americanos passaram a assumir o papel de fornecedores.

 

O desenvolvimento do cinema chinês é até certo ponto, a história de uma luta titânica contra a tentativa de domínio cultural desempenhada pela produção estrangeira, especialmente americana. Este pleito da emergente indústria de cinema nacional acompanha isomorficamente a irrupção da China como potência tout court do século XX. Modernidade, anti-feudalismo, anti-imperialismo, nacionalismo, reunificação e outros conceitos hodiernos de identidade e de afirmação nacional estão entre os temas centrais da sua cinematografia. Como expressão artística, o cinema ajudou a forjar uma nova e positiva atitude para com o acto cultural made in China. Perante a proliferação de sub-géneros de entretenimento em que o cinema se desdobra (romance, fábula, fantasia, drama de época e artes marciais, entre outros) os seus autores souberam aproveitar todo o potencial deste novo instrumento, extremamente poderoso, particularmente como arma de difusão ideológica e de propaganda. À semelhança de outras cinematografias, o cinema chinês foi uma alavanca mobilizadora dos mitos nacionais e do mito da própria China como nação poderosa. Através da criação de um mosaico coerente de imagens e conceitos, a narração de uma história colectiva, a recriação dos dramas e vidas de gente comum, o cinema permitiu alcançar uma unidade simbólica para o que de outra forma seria um conceito heterogéneo: a China moderna.

Os produtores de The Difficult Couple, Zhang Shichuan e Zheng Zhenqiu, reataram a sua colaboração em 1922, ao decidirem formar em Xangai o estúdio Star Film Studio (Mingxing), com os lucros que tinham obtido em investimentos bem sucedidos na bolsa de valores. De facto, a produção de filmes nos anos 20, era encarada como um mero negócio de especuladores, como se depreende pelo elevado número de pequenos estúdios que produziram somente uma obra e fecharam após arrecadarem as receitas obtidas com a exibição e distribuição. As curtas-metragens cómicas com que a Mingxing decidiu iniciar a sua actividade não obtiveram o sucesso desejado junto do público, pelo que os responsáveis pelo estúdio mudam de estratégia e apostam numa longa metragem dramática, Zhang Xinsheng, baseada numa história verídica relacionada com um parricídio que abalou muitos xangainenses, tendo suscitado ampla cobertura pela imprensa local. Mas o grande sucesso só acabou por chegar em 1923, com Orphan Rescues Grandfather que cimentou a posição da Mingxing como líder da indústria cinematográfica nesse período.

A Mingxing especializou-se em dramas familiares, através de um tipo de registo comovente sobre as adversidades da vida numa sociedade em mudança que tendesse a glorificar as virtudes confucianas tais como a castidade das mulheres e a piedade filial.

No entanto, a presença estrangeira fazia-se sentir através dos filmes que eram exibidos nos melhores teatros e também nas empresas produtoras. A maioria delas recrutava técnicos e consultores, principalmente americanos. O mesmo se passava nos negócios relacionados com a distribuição. Por exemplo, a British-American Tobacco Company exercia um grande controlo sobre as salas de cinema, ambicionando apoderar-se do monopólio de exibição em Xangai e Tianjin, dando-se ao luxo de só autorizar a projecção de filmes estrangeiros nos seus teatros, menosprezando outras obras produzidas localmente.

Ir ao cinema passou a ser um entretenimento ao alcance de todos. Com o aumento de popularidade, crescem vertiginosamente as receitas de bilheteira. O público tornou-se mais rigoroso e exigia naturalmente mais longas-metragens com temas e actores chineses. Assistiu-se a um grande fluxo de capital canalizado para a criação de estúdios e empresas cinematográficas, por parte de produtores e empresários chineses, numa perspectiva de conseguirem lucros incalculáveis para o seu investimento, face ao grande boom que o sector atravessava.

De 1922 a 1926, foram constituídas 175 companhias, das quais 145 estavam baseadas em Xangai. Muitas não sobreviveram ao impacto que teve a rodagem do seu primeiro filme, mas houve um número razoável de produtoras que singraram, permanecendo em actividade com bons índices de produtividade e gozando de estabilidade.

A Minxin (The China Sun Motion Picture Co. Ltd.) foi fundada em Hong Kong em 1923 por Lai Man-wai, tendo sido transferida para Xangai três anos mais tarde, em conjunto com o estabelecimento de ensino, Minxin Film and Drama School. Desde a sua fundação que esta empresa se associou aos ideais nacionalistas defendidos por Sun Yat Sen. De 1923 a 1927, rodou uma série de importantes documentários sobre a actividade política do pai da China moderna, nomeadamente sobre a sua Grande Expedição do Norte. Produziu também filmes dramáticos de grande apuro formal, é o caso de Pure as Jade, Clean as Ice (1926), Romance of The Western Chamber (1927) e Poet by the Seaside (1927).

A Tianyi (Unique) Film Company é fundada por Shao Zuiweng, Shao Yifu (Run Run Shaw) e irmãos em Xangai, corria o ano de 1925 (transferiu-se para Hong Kong em 1937, após a ocupação japonesa, dando origem posteriormente ao estúdio Shaw Brothers em 1958). Foi a produtora mais prolífica, com uma plêiade de filmes muito populares, especialmente as reconstituições de episódios históricos e de lendas como The Butterfly Lovers (1926) e Legend of White Snake (1926).

Em 1928, deu-se a fusão de seis produtoras (Mingxing, Great China, Minxin, Youlian, Shanghai e Huaju) que deu origem à Liuhe (United Six) Film Company para desafiar o domínio que a Tianyi assumira gradualmente na indústria.

A rodagem de The Nightclub Colours em 1931, o primeiro filme sonoro chinês, constitui um marco admirável para a Tianyi, devido ao avanço tecnológico que demonstrara possuir e que consolidou a sua liderança no meio.

Xangai era então a grande Meca do cinema a Oriente.

* Realizador/Artista Plástico 

 

N.A.: (1) Zheng Zhenqiu é considerado 

o “pai do cinema chinês”