Arte à moda da casa

Servir arte local à mesa, misturada com alguns sabores e um bom vinho a acompanhar. Foi com este apetite que nasceu o edifício St. Paul’s Corner. O restaurante foi o primeiro a estrear o complexo e, apesar de ter algumas obras expostas, disponíveis para venda, é na porta ao lado que é servido o prato principal. De facto, o complexo arquitectónico, recentemente renovado, para além do estabelecimento comercial, é também composto por uma galeria de arte, salas de reuniões e conferências, ateliers de artistas e um bar esplanada no terraço. O projecto, de um grupo de empresários que investiu na restauração, abriu assim uma oportunidade (e um espaço) aos artistas de Macau

 

Num dos cantos da zona das Ruínas de São Paulo, na travessa com o nome do mesmo santo, nasceu, no final de 2007, um espaço para os artistas locais. O edifício de valor histórico, da porta número três à sete, ficou com cara renovada e novos interiores, através do investimento de um grupo de empresários. O projecto comercial foi desenhado a pensar sobretudo na restauração, mas a arte teve desde início uma palavra a dizer. “Há uns quatro, cinco anos encontrámos este edifício capaz de tornar-se numa atracção turística, um ponto de encontro social onde podíamos juntar arte e gastronomia. Sentimos que podíamos dar-lhe um significado que pode durar séculos, criar uma imagem de marca que pode durar para sempre, já que o edifício é histórico e é para ficar”, explica Derek Lam, o coordenador do projecto.

Decidida que estava a combinação gastronomia-arte, iniciaram-se as conversações para escolher os inquilinos dos espaço artístico.

Apesar de estar de olho na comunidade artística local, o grupo de investidores começou por contactar artistas de  Hong Kong e do interior da China. “Os artistas de Macau eram o alvo inicial, mas como a indústria criativa local ainda não está desenvolvida, iniciámos contactos com as regiões vizinhas”, esclarece Derek Lam.

No entanto, esta corrida artística acabou por ser uma vitória para Macau, dado que “acabámos por aceitar a proposta de um grupo de artistas locais, porque juntos e com o passar do tempo poderemos dar um impulso à arte de Macau, aos produtos locais”, afirma o coordenador deste projecto comercial.

Segundo a proposta vencedora, o espaço artístico é totalmente destinado aos artistas locais. “Propusemos que os ateliers fossem alugados a um preço mais reduzido a artistas locais e que a galeria fosse gerida por nós”, explica James Chu, director artístico do projecto. A proposta foi aceite, tal e qual o esboço inicial, à excepção do prazo de acordo pretendido. Em vez de cinco, o grupo de artistas, entretanto baptizado de AFA (ver caixa), tem dois anos para mostrar o que vale. “Desde início que dissemos que queríamos transformar isto num espaço de arte contemporânea para os artistas locais”, refere com orgulho James Chu. Derek Lam também está optimista quanto à combinação e, por isso, acredita que “numa terra que está a perder o significado, repleta de casinos e dominada pelas questões comerciais, a arte poderá reduzir o efeito negativo do jogo. Temos potencial para criar uma imagem de marca”.

Bianca Lei, uma das seis artistas que ocupa os ateliers do segundo andar do edifício, é toda sorrisos quando fala do St. Paul’s Corner. “Mesmo que a arte possa não ser a área destes empresários, eles sabem o que querem, têm uma ideia clara. Querem criar uma certa atmosfera. Mesmo que indirectamente, eles também ganham algo através dos nossos trabalhos”, afirma a jovem que se divide por diferentes expressões artísticas, como a pintura ou a instalação.

Curiosamente, antes da Galeria das Ruínas de São Paulo ter-se cruzado no seu caminho, estes criadores locais já estavam à procura de um estúdio, onde todos pudessem reunir-se. Acabaram por encontrar seis vezes mais do que isso. ”Queremos muito fazer algo, não apenas ocupar o espaço. Queremos criar uma imagem, um símbolo de Macau”, garante Bianca Lei, aliás, Lei Sio Chong.

 

Como um Mestre Europeu

 

As mudanças foram feitas na recta final do ano, cerca de um mês depois do grupo de artistas ter criado a Associação “Art for All” (AFA) ou Arte para Todos, na versão portuguesa. A galeria, no rés-do-chão do edifício, paredes meias com o The Corner´s (Wine Bar & Tapas Café), abriu oficialmente as portas em Dezembro. Pintura, fotografia, instalação e litografia, dos seis criadores residentes, foram as primeiras formas de arte a ocuparem o espaço. A localização atraiu de imediato os (muitos) olhares que ali passam diariamente em busca das Ruínas. ”As primeiras reacções são de espanto. As pessoas, sobretudo turistas ocidentais, dizem logo que temos muita sorte, devido à localização e à dimensão da galeria”, conta Bianca Lei. Um interesse que não se tem ficado pela admiração, há cada vez mais quem queira comprar as obras expostas.

É preciso passar para a porta ao lado e subir um andar, para se chegar a uma espécie de ‘sala dos negócios’. Um local de reuniões, arquivo e onde se guardam peças de arte de qualquer artista da terra. Desta forma, os visitantes interessados em adquirir peças não estão limitados à galeria e à exposição do momento e, quem cria, tem um local permanente onde pode mostrar-se ao público comprador.

Mais uns degraus, até ao segundo (e último) andar,  encontram-se os seis estúdios, tantos quantos o número de artistas que os ocupam. Ng Fong Chao, à semelhança de Konstantin Bessmertny e James Chu, faz parte da metade vencedora, ou seja, do grupo que teve direito aos três maiores estúdios. “Eu adoro o espaço, quando estou a trabalhar sinto-me como um mestre europeu. Sinto que tenho um enorme poder para ser artista e tenho vontade de criar mais”, conta divertido o pintor, fotógrafo ou artista performativo, enquanto admira as paredes e janelas inclinadas das águas-furtadas.

Bianca Lei (como também Tong Chong e Kent Iong) não faz parte dos três “sortudos”, mas só tem palavras de felicidade. “Desde que regressei a Macau tenho trabalhado em casa, mas não gosto, é uma grande confusão. Agora que tenho o meu estúdio posso concentrar-me, gosto muito, faz-me lembrar os tempos em que tinha o meu atelier no Reino Unido. Comecei logo a criar coisas aqui”, revela com o tal sorriso.

A proximidade física entre os seis parece contribuir igualmente para o processo criativo, já que “mesmo que esteja a trabalhar sozinho, gosto de saber que há gente à minha volta”, admite Ng Fong Chao. Para Bianca Lei, “cria-se uma atmosfera especial, um local que é de encontro entre os seis e de troca de opiniões.”

Artista (nas horas vagas) 

 

Gostariam de entregar-se de corpo e alma, mas em Macau é missão (quase) impossível ser-se artista a tempo inteiro. Por isso, quem tem amor e se dedica à arte, vive de um outro emprego. “Macau é pequeno, não tem um mercado de arte, nem muitas salas de exposição. Temos que ter um outro emprego, o que nos tira a concentração”, lamenta Bianca. A jovem artista, formada no Reino Unido, refere ser preciso mostrar à população de Macau o que tem sido feito nesta área. “Muita gente pensa que a arte contemporânea limita-se à pintura e à escultura, os meios tradicionais. É preciso dar a conhecer as outras formas”.

Todos reconhecem que sem apoios e patrocínios, é difícil montar uma exposição ou uma arte performativa. “Para nós, a maioria artistas a tempo parcial, é duro. Neste momento, são precisas políticas culturais do Governo, não apenas apoios avulsos. Com a política certa, as coisas seguirão muito mais depressa”, garante James Chu, homem dedicado à pintura, à instalação ou litografia. O director artístico sugere, por exemplo, que sejam dadas bolsas de estudo a jovens talentos que queiram desenvolver os conhecimentos e as aptidões artísticas. James acrescenta que seria importante que os Serviços de Turismo incluíssem nas campanhas promocionais informações sobre a arte contemporânea de Macau. “Para que as pessoas de fora fiquem a saber o que se está a fazer cá nessa área e, caso visitem a RAEM, possam saber onde procurar e apreciar as criações artísticas”.

Não há, porém, uma atitude pessimista, como, aliás, a criação da galeria veio provar. “Durante muito tempo, os artistas locais criavam para se entreterem, para se sentirem felizes. Mas a sociedade mudou, agora temos uma outra responsabilidade, o nosso papel mudou”, esclarece Ng Fong Chao. Apesar da alteração de papéis, o artista com experiência na arte performativa, continua a insistir na total separação entre, por um lado, artistas e criatividade e, por outro, mercado e comércio. “Os artistas têm que estar concentrados no trabalho, não há relação directa com as galerias, vendas ou audiências”, sublinha o ‘mestre europeu’.

Os sinais de mudança já se reflectem também no próprio público de Macau. “Há pessoas novas no território, sobretudo estrangeiros que trabalham nas grandes empresas e casinos. Querem saber o que está a ser feito, querem conhecer o trabalho dos artistas locais, querem até comprar, porque vêem isso como um investimento. Ao contrário das pessoas de cá, estes estrangeiros estão mais habituados a apreciar e a comprar”, esclarece o director artístico. Por isso, não tem dúvidas, esta galeria “foi um grande e muito importante passo”.

 

AFA

 

Nasceu em Novembro de 2007, um mês antes dos seis artistas se mudarem para os estúdios e da galeria abrir as portas. De facto, a Art For All (AFA) ou, em língua portuguesa, a Associação Arte para Todos, não podia ser adiada. “Precisávamos de estar organizados para gerir a galeria, para negociar com a empresa proprietária do espaço, para dialogar com o governo possíveis cooperações”, esclarece James Chu.

O projecto, apesar de ter acelerado a sua criação, é apenas uma das muitas razões da AFA. A associação, actualmente com cerca de uma dúzia de membros, quer chamar e unir os artistas locais e criar um espaço privilegiado de discussão da arte contemporânea. “Não é uma questão de amizade ou de amigos, o que importa é juntarmo-nos para ganharmos mais poder, ter uma voz mais forte e ajudar a criarmos uma melhor carreira”, explica Bianca Lei.

Uma voz que, de acordo com James Chu, o também presidente da AFA, “quer promover os jovens talentos, mesmo aqueles que ainda estão a prosseguir os estudos. Juntos será também mais fácil encontrarmos apoios e patrocinadores, quer junto do governo, quer do mundo empresarial”.

Porque é de arte que se fala, a organização de exposições ou exibições públicas é um objectivo que não escapa à AFA. Numa primeira fase, a galeria e o espaço circundante vão ser os locais privilegiados da arte e da cultura, apesar de não existirem fronteiras. “Não queremos ficar parados, pretendemos participar em feiras e outros eventos sobre arte em Xangai, Pequim ou Hong Kong, onde podemos pesquisar, aprender e trocar mais”, adianta Bianca Lei.

A Associação marca ainda uma nova fase da comunidade artística local. “Não se trata de (gerir) um espaço, estamos num outro nível, é altura de olharmos para além de Macau, para toda a cena artística, para o mercado global”, defende Ng Fong Chao, para quem o mercado local é muito redutor. Segundo o artista multifacetado, não é importante onde se cria, mas para onde se está a olhar. E os olhos, mesmo os de Macau, devem estar focados em todo o mercado internacional.

A AFA espera poder crescer e conseguir lançar os alicerces de um modelo que faz sucesso em Hong Kong ou em Pequim. ”juntar todos os artistas numa zona da cidade. Alugar velhos edifícios industriais e armazéns, como acontece em Pequim, criando assim a zona cultural e artística do território”, revela Bianca. Uma única zona de criação, partilha e exposições, aberta ao público.

Enquanto essa zona não chega, a AFA oferece-se para ser a porta de acesso aos artistas locais. ”Se alguém quiser conhecer determinados artistas ou trabalhos, pode vir até nós”. O convite está feito.

 

“… são precisas políticas culturais do Governo, não apenas apoios avulsos. Com a política certa, as coisas seguirão muito mais depressa” 

James Chu

 

É um raciocínio elementar: se a galeria pretende estar aberta todos os dias do ano, então, é necessário existirem sempre obras expostas, de preferência nunca as mesmas. Por essa razão, os membros da AFA, que gerem o local, planearam todo o ano de 2008, estando a agenda de exposições já sem espaços de sobra, com todos os meses preenchidos.

No início deste ano, ainda estava patente a exposição colectiva que inaugurou a galeria, com obras dos seis artistas residentes no The Corner’s.

Ng Fong Chao teve direito à primeira exposição individual, Tong Chong e, logo a seguir, James Chu foram os nomes seguintes a entrar em cena. De facto, as exposições individuais vão dominar o ano, à excepção do Verão, reservado para uma colectiva com sabor a festival. “Haverá uma colecção de arte, não só de nós os seis mas também com mais artistas locais e com estudantes que já revelem grandes qualidades artísticas”, explica o director artístico.

Apesar do cenário ser animador, pelo menos no que respeita à agenda dos trabalhos, James ainda não está satisfeito. “É muito cedo, ainda não temos nome, temos que ir devagar, precisamos de pelo menos um ano para termos o nosso lugar próprio de qualidade”, defende o artista e director. Um ano durante o qual será preciso apostar na promoção, no contacto com os órgãos de comunicação social, inclusivamente de Hong Kong e de outras cidades vizinhas, como explica James, “para chegarmos a um grande número de pessoas. Depois desse primeiro ano, o segundo será para melhorar e consolidar”. E esperar que o projecto se prolongue para lá dos dois anos acordados com o grupo de empresários. Criada a fama, será depois mais fácil obter os apoios das várias instituições e empresas.

“Para nós tudo isto é novo e fresco. Apesar deste conceito não ser novo, para nós acaba por ser porque é a nossa estreia. Em Macau, não existem sítios de iniciativa privada como este. Este é um local e um projecto únicos”, elogia um dos principais líderes da iniciativa. A julgar pelas palavras de James, a AFA tem até ao final de 2008 para captar as atenções, factor determinante para o futuro desta galeria made in Macau.