Hora de Vanessa cumprir destino que Fernanda Ribeiro lhe abriu…

Vanessa Fernandes, Naide Gomes, Nelson Évora, Telma Monteiro João Neto, Rui Silva, Francis Obikwelu, Álvaro Marinho-Miguel Nunes e João Rodrigues. Nomes portugueses para conquistar medalhas em Pequim

 

O pai deixara um rastro de empolgamento pelas estradas de Portugal, ciclista que ia sempre, montanha acima, até ao fundo da alma sempre a agigantar-se – e que assim ganhou, à beira dos 40 anos, a Volta – Venceslau Fernandes, o velho Lau. Vanessa tinha seis anos quando foi para a natação do Sporting de Espinho. Por lá andaria até 1996. De súbito, sentiu o destino a puxar por si: “Em casa vi a Fernanda Ribeiro ganhar os Jogos Olímpicos de Atlanta, deu-me um flash e pensei: quero ser campeã olímpica também!”. Correu para o atletismo do FC Porto, fez corta-matos, provas de pista, ganhou taças, medalhas. Em 1999, volta dada ao destino: um amigo de Venceslau desafiou-a para um triatlo em Espinho. Com 14 anos apenas foi a segunda mulher da classificação geral. Era ali que estava a quimera, que logo agarrou, apoteótica – feita de espanto. E não só. Talvez ninguém tenha explicado melhor que o pai, quando disse: “Só quando lhe saltar uma perna é que vai dizer: dói-me a perna! Sente-se à vontade na natação e na bicicleta e corre bastante bem, mas é com o seu poder anímico que vence o que vence, como vence, superando todas as fraquezas…”                                                                                                    Olha-se ao espelho, revela-se: “No fundo, sou um bocadinho parecida com o meu pai em termos de exigência. Sou perfeccionista. Não gosto de falhar, sou bastante ambiciosa, isso joga a meu favor. Gosto de sentir o corpo, a máquina que temos, a atingir situações espectaculares. Acho que é o sofrer, que, às vezes, torna isso possível, leva-nos a ultrapassar muitas coisas. É preciso ter uma grande paixão por aquilo que se faz. Ter objectivos e ter um espírito que se sobrepõe a tudo quando tudo se torna bastante difícil. Há alturas em que não se está bem e é aí que se revela o verdadeiro campeão…»               Claro, foi assim que Vanessa Fernandes se tornou em 2007 a mais deslumbrante desportista portuguesa. Nas 19 competições de duatlo e triatlo em que participou só perdeu a primeira etapa da Taça do Mundo, em Mooloolaba, foi terceira – daí arrancou para o recorde de vitórias na competição, 19, igualando a lendária australiana Emma Carney e para a medalha de ouro no campeonato mundial, em Hamburgo, prata ganhara no ano anterior. Ah! E no Campeonato da Europa de duatlo, que vencera em 2005 e 2006, mais uma medalha de ouro, o tri. Antes de fechar o ano, mais um ponto de exclamação na sua glória: a Associação da Imprensa Estrangeira em Portugal concedeu-lhe o Prémio de Personalidade do Ano, que antes de si consagrara apenas dois outros desportistas: Fernanda Ribeiro e Luís Figo.                                                                                      Com Pequim cada vez mais ao virar da esquina – é nela que está o sonho mais sublime de Portugal. E nesse dia, se ela descobrir o paraíso que parece estar à sua mercê, como é óbvio, não lhe passará apenas pela cabeça aquilo que habitualmente lhe passa quando cruza a linha de meta e se embrulha na bandeira de Portugal que Cavaco Silva lhe ofereceu: “Ganhei mais uma, ainda bem! Esta já está, correu bem, mas para a próxima pode correr mal, por isso tenho de trabalhar mais, mais ainda…” – e talvez algures por aí uma menina qualquer, sentada diante do televisor, chorando de emoção, murmure: “Quero ser campeã olímpica também”!

 

Naide, das cabeças cortadas de São Tomé…

 

Nenhuma dúvida: é em Vanessa Fernandes que estão depositadas as maiores esperanças nacionais – para a conquista do ouro. Mas, claro, há outras. Naide Gomes, por exemplo. Nasceu em São Tomé e Príncipe: Enezenaide do Rosário Veracruz Gomes, a baptizaram. Cresceu a brincar com rapazes: trepando árvores ou cortando cabeças às bonecas que… odiava. “Sabe o que é que eu queria mesmo: ser jogadora de futebol! Era uma maria-rapaz”. Pouco depois dela, nasceu Ludomila, a irmã. A mãe jurou que haveria de fazer delas doutoras. E para isso decidiu tentar Portugal. Naide e Mila ficaram com a avó na ilha. Ernestina empregou-se numa loja e cinco anos depois achou que já tinha dinheiro amealhado para isso – e mandou vir as filhas para junto de si, para Almada. “Encontrei um país completamente diferente, com melhores condições, claro, da primeira vez que fomos à escola achámos tudo estranho, por exemplo os alunos com grande à-vontade, barafustando com professores, sei lá… Mas sentia muito a falta – daquela outra forma de viver de São Tomé, os espaços mais livres, as brincadeiras diferentes, enfim… Comecei a ficar com a lágrima fácil, chorando por tudo e por nada, se tivesse uma negativa então, ninguém imagina. Depois passou. Era uma aluna média, sempre fui…”                                         Na escola descobriram-lhe um jeito. Para o salto em altura, acharam. “Com 13 anos já tinha 1.78, agora são só mais três centímetros. Um professor de Educação Física chamou-me e disse-me: “Naide, tu tens um dom, sabes saltar, tens jeito e acima de tudo tens um físico que te pode ajudar muito. Não duvides, podes ser famosa!” Eu disse-lhe que, sim, que tentaria…”                                                                                                                    Andou pelo Clamo, passou pelo Ginásio do Sul, pelo Belenenses, pelo JOMA – e, como é óbvio, Moniz Pereira não poderia resistir ao seu fascínio e levou-a para o Sporting. A caminho do paraíso…                                                                                                   Primeiro sinal de glória? Medalha de prata no pentatlo dos Campeonatos da Europa, em Viena-2002. Tornara-se portuguesa pouco antes, deixara de ser Enezenaide, passara a Naide… “porque não achava muita piada ao facto de ver que o meu nome não cabia nos placards electrónicos dos estádios”. Di-lo e desmancha-se a rir. Em 2004, sagrou-se campeã mundial em Budapeste. E em 2005, campeã europeia em Madrid – e logo depois medalha de bronze nos Mundiais de pista coberta no salto em comprimento.  Ainda em 2006, de prata foi a sua primeira medalha ao ar livre, nos Campeonatos da Europa – e já com a coração e a cabeça em Pequim, em Março, pulou para lá da fronteira mágica dos sete metros e sagrou-se campeã mundial de pista coberta. Sim, anda há dois anos com um problema nas costas, precisa de ser operada para o resolver – decidiu que será só depois dos Jogos Olímpicos, do que ela acredita que possa ser a sublime emoção do pódio, afinal a única coisa que lhe falta, numa carreira fantástica…

 

Évora, depois de ter vencido Cristiano Ronaldo… 

 

E nas asas do mesmo sonho anda Nelson Évora, que os portugueses votaram Desportista do Ano de 2007 em Portugal, batendo Cristiano Ronaldo, depois de, em Osaka, ter conquistado o título de campeão mundial de triplo-salto, com 17,84 metros, o equivalente a dois carros Smart colados um ao outro. “Sê generoso na prosperidade e grato no infortúnio” – é o primeiro de alguns dos princípios do ba´aismo, religião que data pelo menos de 1844, oriunda da Pérsia e fundada por Bahá `ú`lláh. Os bahá`ís acreditam na Unidade, que a “terra é um só país e a humanidade os seus cidadãos”. Ele e João Ganço, o seu treinador, partilham a crença com mais seis milhões de pessoas em todo o mundo. Os pais são de Cabo Verde, ele foi trabalhar como contramestre de navios para a Costa do Marfim, por lá acabou Nelson por nascer. Tinha seis anos quando a família decidiu que o seu futuro seria em… Portugal. Foram viver para Odivelas – no andar de cima morava João Ganço, que fora o primeiro português não africano a passar os dois metros no salto em altura, nos princípios dos anos 1970. Pegou nele e pô-lo a voar… Ainda o desafiaram para jogar futebol no Benfica, Nelson não quis…                                                                             O seu primeiro pulo para a imortalidade foi quando venceu o comprimento na Jornadas Olímpicas da Juventude Europeia em 2001, a caminho dos 17 anos. Depois veio a confirmação com o bronze nos Europeus de sub-23, mas no triplo salto. Não tem os tiques das grandes figuras públicas e a prova disso foi o facto de ter aceite, sem grandes alaridos, convite de Nuno Gama para desfilar na primeira edição da moda Lisboa/Estoril. Em roupa interior, mas de medalha ao peito encantou a plateia. Este ano entrou para a Escola Superior de Comunicação e Marketing, para o curso de publicidade e marketing, recusando vários convites para ir estudar e treinar para os Estados Unidos. Confessou que não se separaria da família nem por nada e que acreditava que em Portugal tem condições para estudar e se treinar – apesar de continuar à espera que o governo construa uma oficina de treino coberta no Estádio Nacional, que o afaste do perigo de, ao frio e à chuva, poder lesionar-se, perdendo, assim, o sonho…

 

Telma e Neto, a operação e a surpresa…

 

Sim, claro – e apesar de o destino lhe ter sido aziago, de a obrigar a uma paragem de quase dois meses para se sujeitar a uma operação de emergência, Portugal ainda tem Telma Monteiro no judo. Judo que não foi amor à primeira vista. Tinha 12 anos quando a irmã a desafiou para isso, foi mas acabou por sair, preferiu jogar futebol. Era avançada mas… marcava poucos golos. Dois anos depois, farta de estar sentada no banco das suplentes, tentou de novo – e descobriu que afinal lutar era a sua paixão, o seu destino. Campeã da Europa em 2006 e 2007, não revalidou o título em… Lisboa simplesmente porque nessa altura ainda estava de muletas. Mas crê que vai ainda a tempo de conseguir em Pequim –  aquilo por que anda a lutar desde Atenas…                                                              Pois, se Lisboa não viu o encanto de Telma – descobriu, fulgurante, João Neto. Campeão da Europa, tornou-se, assim, mais uma arma portuguesa. É o primeiro do ranking mundial de menos de 81 quilos e avisa que a medalha é difícil, mas não a descarta… “Claro que isso é aposta, mas atenção, o judo é uma lotaria e os adversários de Pequim vão ser todos muito fortes”, foi o que ele disse mal saiu do pódio no Pavilhão Atlântico, emocionado ainda com os acordes de A Portuguesa, tendo a seu lado Cristina Fernandes, a namorada, farmacêutica em Seia. Conheceram-se há seis anos na faculdade de Farmácia – ele ainda tentou levá-la para o judo, mas… “Percebi que não era coisa para mim quando o João me explicava uma técnica que me deixou um hematoma na perna…”

 

Heróis de Atenas, traídos pelo destino…

 

Sim, claro, por problemas físicos também têm passado dois medalhados de Atenas.  Rui Silva, bronze nos 1500 metros, que apenas voltou a correr a 100 dias dos Jogos, depois de longa paragem, após ter ganho, auspiciosamente, a medalha de bronze nos Campeonatos da Europa de Corta-Mato, na primeira vez em que disputou competição assim, tão longa e sem o tartan da pista – tem aberto o maior desafio da sua vida: conseguir chegar a Pequim em condições de ser uma vez mais Rui Silva, o terrível terminador… Francis Obikwelu, que em 2004 juntou à prata o recorde europeu de 100 metros, nunca mais mostrou os pés em fogo como então – mas não, não mostra toalha atirada ao tapete, bem pelo contrário, larga aos quatro ventos que vai chegar ao Jogos se calhar ainda mais forte do que há quatro anos…

 

Marinho e Nunes, o perigo do vento fraco…

 

E mais fortes do que há quatro anos estão visivelmente Álvaro Marinho e Miguel Nunes, na vela, na classe de 470. Em Atenas foram sétimos classificados, em Sydney tinham sido quintos. Juntos andam desde 1997 – e em 2007 arrecadaram a medalha de ouro nos Campeonatos da Europa e já em 2008, deixaram as águas de Melbourne com prata nos Mundiais – sonhando assim muito mais largo para Quingdao, que é onde se hão-de fazer as regatas olímpicas. Por lá, em prova de preparação já foram terceiros – e perceberam que o vento fraco e as correntes traiçoeiras poderão ser os seus principais obstáculos. Acham, contudo, que o Tejo tem cenário parecido – e por lá se têm treinado, aconchegando o desejo de à terceira ser de vez: “Sim, o primeiro objectivo aponta para os oito primeiros, depois para a medalha, claro… Ou melhor, não escondemos que melhorar Atenas é meta mas a ambição é ganhar. É para isso que temos trabalhado muito. Sabemos que, com ventos fracos há tripulações muito mais fortes do que nós, mas temos melhorado o nosso desempenho nessas condições, sabemos que vamos chegar à China entre os favoritos e um diploma, que é o prémio entre o quarto e o oitavo lugar, saberá a pouco, já temos dois…”

 

João Rodrigues, a engenharia e o ego…

 

Ainda na vela, outro sonhador: João Rodrigues. Aos 36 anos vai para a sua quinta participação olímpica, sendo sexto em Atenas-2004 e sétimo em Atlanta-1996 – abriu 2008 com a medalha de prata nos Campeonatos do Mundo de RS:X que se disputaram na Nova Zelândia. Ah! E ele que, entre Maio de 1997 e Abril de 1999 já ocupara lugar assim na classe Mistral (tendo-se sagrado campeão do Mundo em 1995 e campeão da Europa em 1996 e 1997) – galgou para o topo do ranking mundial.  Tem 36 anos e a vela entrou-lhe na vida quase como um capricho: “Abria a janela todos os dias e apenas via mar, era aquilo que estava ali a chamar-me e eu… fui. Sim, sei que se fizesse no futebol, no ténis ou no golfe o que faço na vela seria multimilionário. Mas, sinceramente, não é isso que me faz estar no desporto. Claro, era engraçado ganhar uma medalha nos Jogos Olímpicos de Pequim, mas não sei… Era uma forma de agradecer a todas as entidades que há tantos anos me apoiam. Felizmente já tenho algum discernimento para não fazer disso a dependência da minha felicidade, mas, seguramente, vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para trazer a tal… medalha. É, tenho um ego como toda a gente e é isso que também me faz querer ganhar uma medalha. Portanto, uma grande parte de mim vai à procura disso, tenho de admiti-lo… Tenho títulos mundiais e europeus, mas os Jogos Olímpicos são um sonho diferente – e uma medalha aí mais ainda… Foi por isso que trabalhei o que trabalhei…”

 

Sonho que pode chegar a 11?!

 

… Sim, mas como os Jogos Olímpicos têm também um misticismo especial – pode muito bem acontecer que, de lá, do fundo da caixinha mágica, salte uma surpresa qualquer, que embasbaque o mundo, como embasbacou em Atenas, Sérgio Paulinho, vice-campeão olímpico de ciclismo – que só entrou em prova porque José Azevedo não se quis dar à aventura. Por isso é que Vicente de Moura, presidente do Comité Olímpico de Portugal, já revelou que espera sair de Pequim com quatro ou cinco medalhas – mas, logo depois, acabou por alargar o campo à quimera, admitindo que até há 11 portugueses que podem sonhar com o pódio, esse sublime espaço onde se toca a eternidade…

 

* Jornalista de “A Bola”