Castelos de Terra

No Sul da China, na província de Fujian, as casas do povo Hakka conservam-se como uma maravilha arquitectónica com séculos de história. Construções que nasceram para serem colectivas, os Castelos de Terra são a herança cultural de um grupo que há centenas de anos chegou em visita… e ficou.Hoje, são Património da Humanidade

 

“Vem ver os tulou?”. A pergunta é feita no autocarro ainda a caminho de Yongding, um dos locais onde se concentra o maior número de casas do povo Hakka.                                                                                                  Chamadas de “Tulou” – que significa literalmente “Casa de Terra”, em mandarim – algumas das primeiras habitações do género remontam ao século XII, durante a dinastia Song.

Conhecidas pela particularidade da construção, as aldeias das famílias Hakka têm-se tornado nos últimos anos na maior atracção da região montanhosa no centro da província de Fujian. Por ano, há centenas de chineses e estrangeiros a percorrer as estradas íngremes das montanhas para conhecer os castelos de terra – únicos no mundo e famosos, muitos, por à primeira vista não terem esquinas.

“Nasci e cresci aqui”, diz o senhor Chen, com 38 anos, ao olhar a grande casa em frente.

Actualmente, vive do outro lado da rua, num hotel com dois pisos que dirige juntamente com a mulher. Na antiga Tulou, a casa circular, vive ainda a sua mãe. Chen conta: “vou lá todos os dias, mas durmo deste lado”.

A estrutura circular com uma altura de quatro andares e feita a partir de terra crua, desafia todas as ideias conhecidas de construção. Mas se o edifício com pisos concêntricos e sobrepostos, admira pela rudeza do material que sobreviveu tantos anos, dentro de cada uma das casas, a verdadeira surpresa está no detalhe técnico.

As casas Tulou são habitações familiares. Inicialmente imaginadas para a segurança de quem as habitava, são projectos que nasceram numa época em que não havia arquitectos ou engenheiros. Porém, hoje impressionam quer arquitectos quer engenheiros que as visitam todos os anos quase com sentido de estudo.

Destinadas a clãs familiares, as casas Hakka chegaram a juntar mais de vinte famílias em comunidade. Numa organização semelhante em todas elas, as habitações circulares subsistiram às mudanças da China durante mais de seis séculos.

Sem se reflectir num isolamento, esta forma de habitação criou naturalmente uma separação entre os Hakka e o resto da população. E a origem da subcultura Hakka dentro da nação Han, começou aqui.

 

As “famílias visitantes”

 

“As casas foram imaginadas para garantir a segurança”, explica o senhor Chen.

Com paredes que chegam a metro e meio de espessura e pequenas janelas apenas nos andares superiores, as Tulou provaram, de facto, ser à prova de tudo. Devido a serem circulares e sem possibilidade de alguém se agarrar a pedras para trepar, garantiam que nem ladrões nem animais atacavam as casas à noite.

Há quem diga que o gosto pela exuberância inspirou o primeiro a mandar fazer um tipo de casa como nunca até então se tinha visto. Porém, os Hakka, que na prefeitura de Yongding são oitenta por cento da população, negam esta teoria. “Gostamos de casas mais arejadas”, defende Chen que tem agora o sonho de poder reconstruir um dos velhos castelos de terra para o transformar num novo hotel.

Com um dialecto próprio, o povo Hakka chegou da China central, das províncias de Henan e Shanxi. As primeiras migrações para Sul datam de há cerca de dois mil anos e para Chen os Hakka “são o início da cultura chinesa”.

Descendentes de oficiais da Corte Imperial, tinham na verdade muitas diferenças do povo local das províncias às quais chegaram como Fujian e Guangdong. Chamados de “Kejia” em mandarim, cujo significado se lê como “família visitante” – numa tradução do que quer dizer “Hakka” –, os grupos cedo se começaram a agrupar em clãs próprios.

Estabelecer-se entre as montanhas veio pela necessidade de distância porque nas terras baixas, os autóctones não gostavam da sua presença. Conhecidos pela persistência, ainda hoje os Hakka se orgulham de ter assegurado a subsistência através da agricultura nas zonas montanhosas. Com culturas individuais como arroz, chá e tabaco, os mais velhos continuam a seguir a vida tal como há muitos anos. “Vendemos o que cultivamos”, refere um habitante mais antigo na aldeia de Chuxi. Ao visitar uma Tulou, as ofertas para provar o chá da região são normais. Na verdade, em Yongding, numa área que passa pelas aldeias de Hongkeng, Chuxi, Gaobei, Tianluokeng, entre outras, a visão da cultura do chá é constante. E, naturalmente, defende-se que o melhor aroma está nas plantas que crescem nos socalcos das montanhas.

Quando chegaram há vários séculos, outra das diferenças Hakka passou pela autonomia reconhecida às mulheres que eram responsáveis pela casa e pela agricultura. Uma independência que levou a que as mulheres Hakka ficassem conhecidas por se terem recusado sempre a enfaixar os pés, um hábito que durou do século X até ao século XX na China. Perante o argumento da beleza de ter uns pés pequeninos, defendiam-se com a necessidade de trabalhar no campo, algo que com os pés enfaixados tornar-se-ia impossível. Os homens estavam fora de casa onde protegiam o território de ataques e exploravam as montanhas para novas plantações.

Histórias como esta mantêm-se até hoje na tradição oral. Sem um registo escrito nas aldeias de Fujian, o dialecto Hakka tem alguma relação com o cantonês e é sobretudo falado pelos mais velhos apesar de conhecido por todos. Nas Tulou ainda habitadas nem sempre se ouve o mandarim uma vez que todos comunicam pelo dialecto hakka que deriva de uma adaptação de outras línguas.

Para Chen, que vive a menos de um quilómetro da casa chamada Zhengfu Lou datada do século XX e hoje transformada em museu, apesar da língua falada poder vir a estar ameaçada na região, a cultura Hakka não corre o risco de desaparecer.

Embora se brinque que apenas chegaram de visita, há muito tempo que são parte integrante de províncias como Fujian, Cantão e Jiangsu. “Não há razão nenhuma para falar em grupo minoritário”, comenta Chen, que afirma a sua pertença à etnia Han. Na verdade, na visita que dura há séculos, os “visitantes” tornaram-se família. Por tradição, muitos Hakka continuam a casar com gente do mesmo povo mesmo que não haja requisito nenhum neste sentido.

Com um grande instinto de migração, os Hakka espalharam-se pelo mundo e por toda a China. Hoje ainda há grandes comunidades em Hong Kong e Taiwan. Uma gastronomia particular levou a que os restaurantes Hakka se alargassem a todo o mundo. A senhora Luoqiao, esposa de Chen, conta que cedo começaram a cozinhar com tofu porque no Sul não encontravam a farinha que usavam quando saíram de Henan nas primeiras migrações.

Os pratos hakka têm, contudo, diferenças entre si mediante o local de origem do povo. Longe das montanhas, muitos preferem confeccionar pratos de peixe como em Hong Kong ou Taiwan. Mas em Yongding aprendeu-se a cozinhar com o que se plantava. Rica em sabores de especiarias e doces, a culinária dos Hakka enche hoje restaurantes em cidades como Pequim, onde um dos restaurantes mais famosos pertence ao “povo das Tulou”.

Longe do bulício das cidades, em Yongding à noite o silêncio é total apenas cortado pelos sapos a coaxar. O tamanho do universo surge entre as casas redondas abertas ao centro. Quando às nove da noite já não há ninguém na rua, Chen explica “durante o ano somos 400 pessoas nesta aldeia e só no ano novo chinês chega mais gente a visitar os familiares. Nessa altura, chegamos quase a mil.”

Porque se trata de um meio rural, muitos jovens saem das aldeias em direcção às cidades mais próximas para trabalhar ou estudar. O exemplo estende-se a toda Yongding onde em dezenas de aldeias a população só cresce uma vez por ano e enche as Tulou, contabilizadas em cerca de vinte mil entre três províncias.

 

De acordo com a Natureza

 

Terra, bambu, arroz glutinoso, madeira e pedra – o suficiente para fazer uma casa. Sem nenhum recurso a pregos, toda a madeira utilizada surge por umas peças encaixadas nas outras. Se à primeira vista, parece difícil de aceitar a segurança de aguentar mais de seis lances de escadas apenas por encaixe, para os Hakka este tem sido um segredo bem guardado da construção.

O senhor Kexin vive na vila de Chuxi, uma das mais conhecidas no que se refere às construções. Apesar do orgulho que sente por habitar ainda uma das antigas casas, Kexin refere a falta de negócios e investimentos na região. Para além da cultura do arroz e da folha de chá, quase não se encontra comércio.

Os vizinhos vendem o chá que plantam e o dinheiro pago para visitar as Tulou reverte a favor da comunidade. Cada entrada ronda os 30 renminbi. Em alguns locais, há pequenas lojas a vender postais ou algum artesanato local. Frequentemente, são os mais velhos que exploram este pequeno comércio.

Em círculos, elipses, quadrados ou rectângulos, há Tulou para vários gostos. As que mais impressionam os visitantes são, normalmente, as circulares onde o diâmetro tem até 82 metros, numa das maiores Tulou e que já foi casa de mais de 600 pessoas. A mais pequena, com 20 metros de diâmetro também é uma atracção mas, ao contrário das maiores, está hoje totalmente abandonada. Por uma questão estrutural e do próprio método de construção, as paredes são mais largas na base que no topo e há quem refira como outro exemplo, as pirâmides do Egipto onde também é a base que sustenta o resto. Na estrutura que faz lembrar uma praça de touros, pessoas e animais compartem o mesmo espaço e no grande pátio interior no centro da casa, é normal ver as galinhas a passearem na divisão que funciona para o encontro da comunidade.

Antigamente, as pessoas que viviam numa mesma Tulou partilhavam o mesmo apelido mas hoje, depois de tantas gerações, o princípio já não é o mesmo. Em todas, independentemente do formato que têm, os andares diferenciam-se por funções.

No rés-do-chão ficam as cozinhas, salas de comer e espaços para os animais. O primeiro andar destina-se aos armazéns e o terceiro aos quartos. Cada família divide a vida diária entre os três andares, com direito a uma divisão, respectivamente, em cada um. As janelas existem unicamente nos andares superiores dedicados aos quartos. Algumas casas dispõem de um quarto andar onde ficam as salas de repouso. A maioria das divisões tem aproximadamente dez metros quadrados.

Todas as casas dispõem unicamente de uma grande porta de entrada. Até hoje, as pesadas portas de madeira que protegeram várias gerações, mantêm-se inalteráveis e ao contrário de outros tempos os habitantes lembram “agora já não temos necessidade de fechar a porta central porque não se corre perigo”.

Chuxi tem cinco grandes habitações circulares e mais um conjunto de rectangulares. Vários das Tulou na aldeia remontam à dinastia Ming no século XV. Também ali a população não é numerosa e, numa forma de revitalizar o local, alugam-se quartos a turistas que passam pela região.

As casas dividem-se entre pequenas, médias e grandes, com diferenças que vão dos 18 quartos no último piso até aos 72 para as maiores. Mas se as casas de terra têm a vantagem de se terem mantido inalteráveis, têm, por outro lado, a desvantagem da falta de casas de banho interiores, algo que não se usava à data da construção. A forma de construção tradicional é um charme, mas também uma dificuldade para aqueles que esperam que as casas não percam de vez os seus habitantes, hoje já em número reduzido. De bicicleta ou de carro é a melhor maneira de conhecer a arquitectura Hakka. As aldeias ficam a vários quilómetros umas das outras, nos vales escondidos entre as montanhas. Integrado em livros de turismo rural na China, as casas Hakka existem como habitações próprias, mas onde se deixam entrar viajantes de fora. Verdadeiras fortalezas, são construções que intrigam quem as visita. Os grandes círculos, com diâmetros variáveis, obedecem no interior ao símbolo do “Bagua”, um mapa energético com oito lados e onde o Yin e o Yang estão ao centro.

Originário do “Livro das Mutações” do I-Ching, o “Bagua” corresponde aos oito trigramas em conjunção com a teoria dos cinco elementos – madeira, fogo, terra, metal e água. Trata-se de uma representação mística das energias do Yin e do Yang. Uma busca da harmonia que não foi esquecida quando se empreendeu a primeira construção.

Testemunhas do tempo e da História, as Tulou pertencem a uma arquitectura tradicional que já não se repete.

Tratava-se de uma forma de vida colectiva onde a privacidade tinha um papel secundário. Actualmente são parte de uma linguagem comum, partilhada agora apenas por quem os habita.

 

Um património a proteger

 

Qualquer conversa nas aldeias leva ao tema das antigas habitações estarem propostas para integrar a lista de património da Humanidade da UNESCO. Para Chen, esta é uma mudança que pode estar para breve. No entanto, não foi em 2007 e não se sabe se será em 2008.

Qualquer investimento para transformar uma Tulou num hotel é dinheiro que ao fim de dois anos já foi recuperado. De momento, alugam-se quartos para turistas por uma ou duas noites. Porém, Chen sabe que as condições não são as melhores e sonha com um hotel com mais categoria. Só que estas casas não estão à venda. Para o empresário, a serem classificadas pela UNESCO, as Tulou só têm a ganhar. Só que se, por um lado, seria proveitoso para o turismo, por outro, há quem receie que as casas a esvaziarem-se de habitantes, acabem lentamente transformadas em peças de museu sem possibilidade de atraírem novos habitantes.

Chamada de “relíquia cultural da China rural” é certo que atrai poucos jovens que escolhem as cidades próximas como Yongding, Xiamen ou até Cantão para viver, locais onde podem encontrar mais novidade.

Nas montanhas de Fujian, as histórias famosas são as mesmas desde há décadas.

Em plena guerra-fria, satélites norte-americanos encontraram as casas Hakka e, incapazes de perceber o que eram, classificaram-nas como as bases de lançamento de mísseis pelo governo chinês. Uma teoria que se manteve por muitos anos e que só com a visita do Presidente Nixon em 1972 à República Popular se esclareceu o mal entendido quando o líder norte-americano pode, ele mesmo, ver as Tulou.

A história é contada em pequenos painéis de explicação aos turistas. De facto, as habitações Hakka são um registo vivo de muitos anos de História. Na porta de algumas casas ainda se podem ler slogans da Revolução Cultural e “Longa Vida ao Presidente Mao” aparece pintado nas velhas paredes de terra.

“O Presidente Mao era Hakka”, garante um visitante chinês. Natural da província de Hunan, Mao Zedong teria antepassados Hakka. Os posters com a imagem do antigo presidente continuam colados nas salas de algumas Tulou, espaços onde o tempo se manteve sempre o mesmo. Chen é peremptório: “nós gostamos do Presidente Mao”. Independentemente da pertença ao grupo Hakka, que comunica no seu dialecto e tem uma culinária específica, continua a haver uma grande identificação com o trabalho desenvolvido por Mao Zedong. Mas há o sagrado e o profano coexistem com o mesmo sentido e o pátio central de muitas casas está reservado a Buda, protecção para toda a comunidade.

Hoje, os Hakka, um povo agrícola entre as montanhas, já não temem ataques dos vizinhos. A integração está consolidada tão fortemente como os castelos de terra que são silenciosas testemunhas da História de outras épocas. Desenvolver o meio rural tem sido cada vez mais uma aposta do governo chinês. As casas Hakka reúnem um potencial único para atrair mais gente à região. Actualmente protegidas a nível nacional, têm a característica do formato e do material usado na construção. Chen defende que as casas assim redondas dão um sentido de abertura. E ao abrir os braços como que para abraçar o Universo, termina: “é que daqui podemos sempre olhar o céu”.