Entre culturas

O português é uma das línguas oficiais de Macau até 2049, mas o cantonês domina as ruas e as conversas. Valem os tradutores, única ponte entre os portugueses que vivem em Macau e o mundo chinês

 

“Hoje a tradução vai ser em inglês, francês e alemão”. Os quatro jornalistas portugueses olham uns para os outros, de sobrolho levantado, e voltam os olhares para a cabine escura, onde Catarina Kuan não pára de se rir. A intérprete fala de novo pelo microfone. Estava a brincar. Acena com um sorriso aos profissionais, que já conhece. Eles sorriem de volta. Conhecem-lhe mais a voz, normalmente pelo canal 2 do aparelho de tradução simultânea.

“Hoje, a segunda Comissão Permanente discutiu a Reestruturação de Carreiras nas Forças e Serviços de Segurança”, diz Fong Chi Keong, presidente da segunda Comissão Permanente, sentado à ponta da enorme mesa de uma sala de reunião da Assembleia Legislativa (AL).

Catarina vai traduzindo, com hesitações na escolha das palavras, sotaque de língua estrangeira na ponta do português aprendido. Os dez jornalistas chineses escrevem, fazem perguntas, conseguem até brincar com Fong Chi Keong. Os portugueses só ouvem Catarina, é por ela que sabem das notícias da Assembleia.

Catarina é uma das principais pontes entre os portugueses, que estão hoje em Macau, e o Governo da RAEM.

Segundo a Direcção de Serviços de Estatística e Censos de Macau residiam no território, em Março de 2008, 543 mil pessoas. Para estas, só se estimam existirem 65 tradutores oficiais de cantonês para português e vice-versa, sendo que dez trabalham na Assembleia Legislativa e os outros 55 fazem parte dos quadros da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública, dos quais 32 são funcionários internos e outros 23 estão destacados em outras entidades públicas. Estes números são meras estimativas, já que não existem dados oficiais sobre o assunto.

Fora da função pública, Leo Stepanov, director da empresa de tradução Macau Translations, explica que “dos tradutores de português para cantonês, e vice-versa, no mercado livre, que conseguem fazer trabalho de qualidade aceitável, só conheço dois”.

Para o bem e para o mal, com maior ou menor relevância, a verdade é que o português ainda será língua oficial em Macau nos próximos 41 anos. E até lá, são pessoas como Catarina que farão rolar negócios, investimentos, boas e más notícias.

Aos 39 anos, é mulher magra e alta, sorriso pronto mas tímido. Como assessora e coordenadora do gabinete de tradução da AL, tem a seu cargo sete tradutores de português, todos chineses, alguns macaenses, que tanto fazem interpretação de sessões plenárias ou reuniões de trabalho de comissões, como tradução de legislação, ofícios ou comunicados de imprensa. E, no entanto, o português entrou-lhe na vida por acaso.

“A escola luso-chinesa era oficial, e portanto gratuita. E estava mesmo ao pé de minha casa, ali junto ao Jardim Vasco da Gama”, conta. Ninguém na família falava a língua das aulas e a menina achava difícil tanto verbo, tanta conjugação. Cantonês decorava-se. Português era preciso entender. Catarina teve de mudar o seu esquema mental de aprendizagem, mas era moça ainda, numa idade em que novas palavras parecem colar como por magia. Finda a primária, entrou na escola comercial, onde hoje é a Escola Portuguesa, onde todas as disciplinas eram dadas em português. Mas mais crianças macaenses tinha à sua volta, já ia para casa de português feito.

Quando o curso de tradução da Escola Técnica da Direcção dos Serviços dos Assuntos Chineses abriu, Catarina não pensou naquilo que queria fazer da vida, que os chineses são práticos. Trabalho é trabalho, dinheiro é dinheiro. “Eu sabia falar as duas línguas, e o curso abriu naquele ano. Entrei”, recorda. Esteve ali três anos, até que a Direcção a mandou para Portugal, na derradeira prova. Foi a única vez que esteve na terra que traduz. Em Coimbra.

“Fui para o Centro de Estudos e Formação Autárquica, onde estive um ano. Aquilo era muito diferente de Macau, mas gostei das pessoas, era um ambiente muito agradável”. Voltou para Macau em 1992 e, um ano mais tarde, foi trabalhar como tradutora da Assembleia. Até hoje.

 

Faltam tradutores

 

À pergunta: “gosta do que faz?”, Catarina hesita, muito. É trabalho. E sim, acha que gosta, acaba por dizer. Não é um emprego fácil. Sobretudo porque a necessidade é muita e os tradutores escasseiam. “Não há muita tendência ou vontade em escolher esta profissão. Há pessoas que mostram interesse, mas quando percebem a quantidade de trabalho que dá, deixam logo a ideia”.

Só nas Linhas de Acção Governativa, realizadas todos os anos na Assembleia para planear o ano seguinte, são necessárias equipas de quatro intérpretes. Nas Primeiras Jornadas de Direito e Cidadania da Assembleia Legislativa de Macau, em Janeiro, foi necessário recorrer aos serviços de uma empresa de traduções. “Acho que o trabalho mais difícil para mim foi ainda em 1999, quando durante a administração portuguesa ainda funcionava a Assembleia Legislativa de Macau, , mas também já existia a Assembleia da Região Administrativa Especial de Macau. Na madrugada de dia 20 de Dezembro tivemos de aprovar toda a Lei de Reunificação. Foi um trabalho duro, que durou muitas horas. Mas há outros assim”.

As queixas acalmam e o esforço parece compensar quando Catarina fala na tradução para jornalistas. “É muito bom sentir que somos a ponte entre os portugueses que cá vivem e a AL. É um trabalho importante, mas difícil, sobretudo a interpretação simultânea”. Traduzir ao minuto, começar uma frase antes de saber para onde ela vai, e, muitas vezes, ter de adivinhar o que o político vai dizer. “É muito complicado traduzir alguém que tenha um discurso confuso, pouco coerente. Muitos não acabam as frases, passam logo para outra ideia”, conta, acrescentando que gosta de traduzir o deputado Cheong Chi Keong. “Ele expõe as ideias de uma maneira clara e fala a um ritmo razoável”. E ainda assim, mesmo com tempo para escolher a palavra mais adequada, mesmo conseguindo, com uma margem de erro controlada, adivinhar o que vai dizer, há sempre o problema inerente a qualquer tradução: a cultura.

“É que há expressões em cantonês que simplesmente não existem em português e vice-versa”. A única solução é conhecer bem a cultura de ambos os povos, mas não é uma solução fácil para quem só esteve em Portugal uma vez. Catarina defende-se, lendo jornais portugueses, falando com portugueses. E chegando à conclusão de que “os portugueses são mais abertos, percebemos logo o feitio das pessoas. Os chineses são reservados, mas também brincalhões”. Catarina admite que já tem um pouco das duas culturas dentro de si. Aliás, pensa em cantonês, mas apanha-se a sonhar em português.

 

Entre Trás-os-Montes e Macau

 

Leonardo Correia tem 32 anos e é o mais fashion dos intérpretes de português. Trabalha na Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública (SAFP) e traduz, muitas vezes, conferências de imprensa oficiais. Os jornalistas portugueses conhecem-no como “o rapaz novo, óculos de massa pretos, brinco na orelha”. Reconhecem-lhe mais a voz, ou o sotaque meio abrasileirado, que nem lhe vem do pai transmontano, nem da mãe sino-japonesa. A história dos pais é o cliché das missões ultramarinas: ele era militar, veio para Macau, conheceu a mãe, nasceram cinco filhos. Leonardo é o mais novo. E conhece bem a cultura portuguesa.

Nas licenças prolongadas do pai, a família rumava ao outro lado do mundo. Desde pequenino que Leonardo come chouriços e alheiras. Mas, academicamente, o seu percurso não é muito diferente do de Catarina. Esteve no Colégio Dom Bosco, inscreveu-se no curso de tradução da Escola Técnica da Direcção dos Serviços dos Assuntos Chineses, “porque um amigo lá estava”, e acabou em Coimbra, no mesmo Centro de Estudos e Formação Autárquica. “Macau não tem uma vida académica tão intensa, eu lembro-me de passar pelas cantinas universitárias e aquilo estar cheio de gente trajada”. Aos fins-de-semana, lá ia ele de comboio para Lisboa, onde os pais moravam. Cidade interessante, mas só para aposentados. “Não gostaria de viver em Lisboa, é uma cidade muito grande, uma pessoa tem de sair duas horas antes de casa para chegar a horas ao emprego. E é uma cidade muito cara também”.

Para Leonardo, não há outra como Macau, e mesmo que existam cada vez mais oportunidades de emprego nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, progressivamente invadidos por investidores chineses, não é para lá que quer ir. Já está há dez anos nos SAFP e “se ainda precisar do dinheiro, quero fazer isto para o resto da vida”. Mesmo que cada ano que passe signifique mais trabalho, mesmo que, também ele se queixe de falta de colegas.

“É uma profissão muito cansativa. Não sou capaz de saber tudo, mas tenho esse dever. E quem fala, sabe sempre mais do que nós”.

Os intérpretes gostam de se inteirar do assunto que vão traduzir, até porque, não raras vezes, os jornalistas ligam mais tarde a tirar dúvidas. Mas nem sempre há tempo para o trabalho de casa. Em Janeiro, houve 30 serviços, que raramente tocaram no mesmo assunto.

Valem-lhe as lembranças e os famosos, como Cristiano Ronaldo e José Sócrates, que já traduziu. “Lembro-me quando aconteceu a liberalização do jogo. Houve tantas propostas que trabalhámos naquilo durante dois ou três dias. Mas tivemos uma participação activa num dos momentos mais importantes da nossa história recente. Lembro-me também da primeira manifestação laboral que houve depois da transição. Aconteceu num fim-de-semana, nós fomos para lá a correr. A conferência de imprensa foi feita pelo próprio Chefe do Executivo”.

Por estas e por outras, Leonardo considera que, como intérprete, tem acesso a muitas oportunidades e “tenho muito orgulho na minha profissão”.

Nos SAFP existem três intérpretes fixos. E são todos chineses. A maioria veio de escolas portuguesas ou luso-chinesas.

 

O russo que ajuda os portugueses a entenderem chinês

 

“Um bom tradutor é free-lancer. Está sempre em viagem e conhece muito bem a cultura do país que traduz. O problema dos tradutores em Macau é que não saem daqui. Por mais que pratiquem, é sempre português aprendido”.

Leo Stepanov é o homem a quem ligar quando há falta de tradutores. É russo, está em Macau desde 1991 e fala português, inglês, russo, cantonês, mandarim, alemão italiano e está a aprender coreano. A sua empresa, a Macau Translations, abriu em 1999 na avenida da Praia Grande, mas está um pouco por todo o mundo, trabalhando com cerca de 40 profissionais. As Primeiras Jornadas de Direito e Cidadania da Assembleia Legislativa de Macau, em Janeiro, contaram com ele, assim como os Jogos Asiáticos em Recinto Aberto, em Outubro do ano passado.

Para além de interpretação simultânea, a Macau Translations também traduz artigos chineses para publicações portuguesas. Em contrapartida, a comunicação social chinesa pede traduções de jornais russos e árabes, por achar que “a população local não se interessa por informação europeia”.

Neste momento, Leo recebe três candidaturas por dia de potenciais tradutores em Macau. E mesmo assim, considera que há poucos. “Macau ainda tem muito por onde se desenvolver e a procura vai ser cada vez maior. Saem 100 tradutores de português por ano de Pequim e eles acham que é suficiente”. O inglês, aprendido na infância europeia, também é pouco falado nesta zona da Ásia. Mas a explicação é simples. Saída da claustrofóbica Revolução Cultural, a China só se começou a abrir para o mundo nos anos 80, e ninguém esperava que o mandarim fosse a língua mais falada do mundo no espaço de duas décadas.

“Chinês quer dizer o homem do país que está no centro do mundo. E é assim que ele se vê”, explica Leo, acrescentando que um chinês não pensa que pode ser útil aprender inglês, mas aprende um idioma consoante as circunstâncias. “Tem aulas de sueco se está a pensar em integrar uma empresa sueca, ou aprende checo porque têm uma namorada checa”, admite.

E, no entanto, a Rádio Internacional da China transmite diariamente programas em 38 línguas estrangeiras. “Porque o chinês é prático e curioso. Interessa-lhe saber o que acontece no mundo, o que os outros fazem, para fazer melhor”, responde Leo.

No anuário da Universidade Autónoma de Lisboa de 2001, Janus 2001, Inês Costa Pessoa, Assistente de Investigação no Observatório de Relações Exteriores da UAL, apresenta um inquérito aplicado a uma amostra de 226 chineses que estudam português. A maioria dos inquiridos são do sexo masculino, falam cantonês e têm idades compreendidas entre os 25 e os 30 anos. Estudam português para aceder “a uma língua que lhes é útil ou pelo desejo de promoção profissional”.

Stepanov contradiz o estudo dizendo que o português é, muitas vezes, aprendido por acaso. Segundo o tradutor, muitos chineses acabaram numa aula de português, porque a da língua escolhida estava cheia. “E eles não querem perder o lugar na universidade”. Em vez do inglês ou do português, Leo diz que os chineses querem aprender russo ou árabe. “Aliás a tradução para árabe é das mais baratas, por haver tanta oferta”, admite. A sorte é que, tal como os russos ou os portugueses, os chineses têm o dom de aprender línguas com facilidade, e, segundo Leo, dom natural garante dez por cento do sucesso na profissão. O resto é o tempo que dá, os livros que se lêem, as pessoas que se conhecem. “É preciso ter treino e um grande conhecimento geral, sobretudo quando se faz tradução simultânea onde não há tempo para pensar, para procurar a melhor palavra. E este é um dos grandes problemas de Macau. A juventude consegue ser boa, mas nunca será muito boa porque não viaja”.

Ler livros e jornais pode ser uma solução para o problema, mas não o faz desaparecer. Por exemplo, por melhor que se saiba inglês, como adivinhar que, em Hong Kong, existe um tribunal, mas também existe um court? Existe um juiz, mas também existe um magistrado?

 

Traduzindo os clássicos

 

Em 1993 o Instituto Cultural de Macau queria dar o pontapé de saída à colecção Biblioteca Básica de Autores Portugueses, que passava por traduzir os maiores clássicos lusos para chinês. “Nessa altura encontrava-me em Portugal, como docente da Faculdade de Letras de Lisboa e fui convidada para coordenar o projecto. Fazia-o à distância, entre viagens para Macau”, explica Ana Paula Laborinho. Em arquivo já existiam algumas traduções que aguardavam edição, mas faltava um projecto viável. Mais do que tudo, uma editora chinesa de confiança.
A tradução chinesa de autores portugueses já não era nova, tendo explodido em força nos anos 80. Antes disso, já Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, e alguns contos de Eça de Queiróz e Fernando Namora tinham sido publicados, mas todos de outras línguas estrangeiras para chinês. Só na década de oitenta, começaram a ser traduzidas as obras originais, nomeadamente Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, o Crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz, e As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis.

Mas mesmo com uma já provada abertura do mercado chinês à literatura portuguesa, a missão de Ana Paula Laborinho não se revelava fácil. “O primeiro passo consistiu em envolver uma editora chinesa, Montanha das Flores, de uma cidade próxima de Pequim. As negociações foram difíceis por causa da barreira linguística e porque havia uma série de condições a acertar e formas de trabalho a conjugar”, recorda Ana Paula. Valeu-lhe o apoio de um dos decanos da tradução, Fan Weixin, hoje tradutor de José Saramago, na China. Ele estava envolvido desde o início no projecto, seria dele a primeira tradução, O Primo Basílio (Eça de Queiroz), e acabou por ser ele a fazer o contacto com a editora. “O livro do Fan Weixin saiu e passámos a lançar quatro volumes por ano”, recorda Ana Paula. Não era difícil encontrar os tradutores necessários. Afinal, havia poucos e todos se conheciam. “Entregávamos várias obras para lerem e deixávamos que escolhessem. Quase todos os tradutores residiam em Pequim, eram tradutores seniores e muitos professores na Universidade de Línguas Estrangeiras de Pequim”, lembra Ana Paula, que, a partir de 1996, se tornou presidente do Instituto Português do Oriente, em Macau. Dois anos mais tarde, o projecto mudou-se para a tutela deste organismo no quadro da transferência de competências no domínio da língua e cultura portuguesas.

O projecto Biblioteca Básica de Autores Portugueses foi suspenso em 2000, mas Ana Paula, que vive hoje em permanência em Portugal, sendo professora na Faculdade de Letras de Lisboa, ainda recorda o ponto alto do seu esforço. “A melhor notícia surgiu com o prémio Lu Xun atribuído à tradução de Fan Weixin do Memorial do Convento, ainda antes de José Saramago ter ganho o prémio Nobel”. O galardão é atribuído de dois em dois anos à melhor tradução de uma obra estrangeira e é o maior prémio da China, entregue numa grande cerimónia realizada no Palácio do Povo.

 

Heróis de uma vida

 

“Nas vésperas da partida da minha segunda visita a Lisboa, em 1987, onde ia frequentar um curso de língua e cultura portuguesa na Faculdade de Letras, Jorge Amado visitou a China a convite do Ministério da Cultura chinês. Num banquete que ofereceu em Pequim, perguntou-me se ia estudar em Lisboa, até hoje não sei como ele sabia disso. Respondi que sim. Perguntou-me se conhecia a literatura e os escritores de Portugal, ao que citei uma expressão chinesa ‘tenho apenas escuridão diante dos olhos’. Então, perguntou-me se queria que escrevesse uma carta de recomendação. Pode-se imaginar a minha reacção: alegria e agradecimento. Estavam na carta os nomes de Miguel Torga, José Saramago e muitos escritores e críticos literários portugueses”. E foi assim que Fan Weixin acabou por conhecer José Saramago.

Em 1960, Weixin entrou na Faculdade de Línguas Estrangeiras do Instituto de Radiodifusão de Pequim para estudar português, onde encontrou um “curso dificílimo”. A professora era brasileira, de origem italiana, e não sabia uma palavra de chinês. Os 14 alunos não sabiam uma palavra de português. O único dicionário que existia era de português-japonês, mas o curso lá se foi fazendo devagar devagarinho. Quando saiu, Weixin foi trabalhar para secção portuguesa da Rádio Pequim, actual Rádio Internacional da China, como locutor e jornalista. “Só comecei a profissão de tradutor de literatura em 1978, após o término da famigerada ‘grande revolução cultural’. Eu disse em muitas ocasiões que sou um tradutor de literatura ‘amador’, pois traduzia obras literárias apenas nas horas de folga”. Começou com autores brasileiros, nomeadamente Jorge Amado. E foi com a carta de recomendação deste autor que acabou por chegar a José Saramago, em 1987.

“Eu disse-lhe que não iria traduzir o Memorial do Convento, não queria estragar uma obra de que tanto gostava. Na altura, não imaginava que levaria seis anos para tomar a decisão. Foi na cerimónia do lançamento da minha tradução do Primo Basílio, de Eça de Queiroz, em Macau, salvo erro em 1994, que a imprensa me ‘metralhava’ com perguntas. No meio da confusão, um jornalista português perguntou-me qual ia ser o próximo livro que iria traduzir. Nesse momento, não sei porquê, a resposta saiu-me na ponta da língua: o Memorial do Convento. Houve um murmúrio na sala que me levou logo a dizer: Sei que a tradução de um livro como este é um osso duro de roer, mas farei o possível para oferecer aos chineses um Memorial com os mesmos cheiros e sabores do original”.

Weixin demorou dois anos a completar a árdua tarefa, experimentando as maiores dificuldades da sua carreira de tradutor. Faltavam-lhe os conhecimentos da cultura portuguesa, sobretudo de história e religião. “Devido à situação chinesa e à tradição familiar, sou ateu e nunca pus os pé numa igreja”. O Memorial do Convento saía em 1996 e em 1998 recebia o Prémio Lu Xun. Em 2002, Fan Weixin traduziu o Ensaio sobre a Cegueira, também de José Saramago. Hoje não há quem encontre estas obras em lado nenhum. Totalmente esgotadas.

A obra de Fan Weixin não se resume a José Saramago, mas foi o prémio Nobel que lhe valeu o nome de herói. “Os chineses premiaram a tradução do Memorial do Convento seis meses antes da atribuição do Prémio Nobel a Saramago, de forma que um artigo que comenta a atribuição de Nobel ao escritor português no jornal Vespertino de Pequim leva o título ‘Os heróis têm semelhante visão’”.

 

Palavras adormecidas

 

“Quando eu conheci o Eugénio de Andrade ele já era um velhote. Dizia-se que era muito inacessível, mas comigo sempre foi simpático”. Yao Jingming é poeta de alma e tradutor de profissão. Trabalhava no Instituto de Estudos Literários de Pequim quando a Fundação Gulbenkian enviou um livro do autor português para a instituição. “Comecei a traduzi-la espontaneamente e enviei o resultado para o Instituto Cultural de Macau”. Era uma pequena antologia de poemas, e acabou por sair em 1991 sob o nome Com as Palavras Amo. “Foi publicada em Macau e depois em Portugal. Foi lá, na apresentação do livro que Eugénio de Andrade recitou em português e eu em chinês. Eu dizia-lhe que receava cometer erros porque não tivera tempo de rever o trabalho, mas ele respondia-me que não fazia mal, para continuar a declamar que ninguém ali entendia chinês”, recorda a sorrir.

Com uma longa carreira atrás de si, que incluiu a tradução de vários autores de renome, Yao ainda mantém o fascínio inicial por Eugénio de Andrade. E ainda consegue ficar abismado com alguns versos. “Procuro a ternura súbita, os olhos ou sol por nascer, do tamanho do mundo, o sangue que nenhuma espada viu”, lê, enternecido.

“Na presença dele, a língua portuguesa torna-se mais sensível. Às vezes as palavras estão a dormir e os poemas dele têm a capacidade de acordá-las com a sua sensibilidade”.

Como todos os tradutores, Yao admite que a grande prova que a profissão tem de passar é a questão da cultura. “É a língua que carrega a cultura, mas acho que o mais importante é que o tradutor não perca o poema entre a língua de partida e a língua de chegada”.

 

M. C.

 

Português ensinado

 

Todos os anos, a licenciatura em tradução e interpretação chinês-português do Instituto Politécnico de Macau (IPM) aceita 40 estudantes e todos os anos há listas de espera, sobretudo no que diz respeito a candidatos oriundos da China continental. “Este curso tem muita procura, sobretudo da China continental que tem cada mais empresas a investirem no mundo de língua portuguesa. Por outro lado, os alunos de Macau fazem este curso para entrarem nos serviços públicos, é o seu objectivo”, admite Li Changsen, coordenador do programa do curso, adiantando que a maioria dos estudantes são chineses. “Com sangue português, só temos os macaenses, que têm ascendência portuguesa”, refere o coordenador.

Em Portugal, no entanto, há também quem esteja interessado em especializar-se no domínio das duas línguas e, por isso, o Instituto Politécnico de Macau assinou, há dois anos, um acordo com o Instituto Politécnico de Leiria, onde ficou acordado que todos os anos seria enviada uma turma portuguesa para praticar o seu chinês em Macau. Ir a Portugal também é um desejo dos alunos do politécnico de Macau. “Muitos vão no final do ano por 15 dias ou três semanas. Querem conhecer o país que vão traduzir e isso é muito importante para formar um bom tradutor. Nós temos disciplinas dedicadas à cultura dos dois países, mas é sempre bom visitar Portugal”, diz Li Changsen.

Do seu lado, a Universidade de Macau (UM) criou um bacharelato em Língua e Cultura Portuguesa em 1990. “O curso tem pouco mais de 60 alunos, todos chineses, e a maioria quer ser tradutor quando se licenciar”. Márcia Smaltz é brasileira e chegou a Macau há um semestre para dar aulas na UM. Admite que, embora a licenciatura de quatro anos não forme tradutores, a principal incidência do curso é tradução e interpretação. “A maior dificuldade deles é a falta de background cultural. Mais do que a língua, a tradução baseia-se no entendimento da outra cultura, já que uma mesma palavra pode ser usada em vários contextos. Para isso, um chinês que queira ser tradutor de português tem também de ter noções de mitologia grega, história romana e outros temas que influenciam grandemente a cultura portuguesa”.

No ano lectivo de 2007/2008 a instituição abriu um mestrado em letras, variante tradução, que conta com 20 inscrições, tanto de estudantes chineses, como portugueses, segundo Christina Chan, porta-voz da Universidade. E o curso de Verão dedicado à tradução de chinês para português já tem 20 inscrições. “Há interesse nesta formação, mas ainda estamos a anos/luz da tradução de inglês para chinês, que está muito mais desenvolvida”. O português é  língua oficial de Macau, mas o inglês é a língua universal.

O Centro de Língua Portuguesa do Instituto Português do Oriente (IPOR) também oferece Cursos de Língua Portuguesa, organizados em Cursos Gerais e Cursos Específicos. Paula Costa é professora de português no IPOR há três anos e adianta que a maioria dos seus alunos são chineses de Macau, que trabalham na função pública, mais precisamente na Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública.

Nestas aulas não há falta de alunos já que entender português é uma mais-valia na carreira. A exigência profissional é benéfica porque cria mais bilingues em Macau, mas a verdade é que estes alunos estão mais preocupados em saber ler e escrever português, de forma a traduzir documentos oficiais chineses, do que falá-lo correctamente, já que raramente terão ocasião de o fazer no dia-a-dia. O resultado são alunos relutantes em praticar o português na oralidade. “É muito difícil fazê-los falar nas aulas, o que dificulta a aprendizagem nos primeiros módulos, onde o aluno está a entender as bases da língua”. Outra das dificuldades da aprendizagem é a cultura. Não a cultura dos dois países, mas a cultura dos dois sistemas de ensino. “O sistema de ensino do cantonês é baseado na memorização, portanto é natural que, no início, os alunos estranhem o nosso sistema mais baseado na oralidade e no raciocínio lógico da língua. Por outro lado, no cantonês não existe flexão verbal ou de número, nem feminino ou masculino, e nas primeiras aulas os alunos chineses sentem algumas dificuldades em entender o português”.

 

M. C.