O diplomata da transição

Macau, Timor-Leste e Bósnia. Três percursos de Pedro Moitinho de Almeida, o diplomata da transição, que agora vai para o Canadá

 

Depois de oito anos de permanência na RAEM, Pedro Moitinho de Almeida prepara-se para a estreia diplomática no continente americano. A partir de Outubro vai ser o embaixador de Portugal no Canadá.

Na primeira passagem por Macau, na fase final da administração portuguesa, quando integrou o Grupo de Ligação Conjunto, ajudou a moldar o modelo que tem estado a ser concretizado na região administrativa especial. Nos últimos cinco anos e meio, como cônsul-geral de Portugal, acompanhou o desenvolvimento de Macau.

Alfacinha de gema, nasceu há 57 anos em S. Sebastião da Pedreira, filho de um engenheiro de minas, de 92 anos de idade, especialista em pratas portuguesas (com livros publicados). Teve uma infância feliz, na companhia dos seus seis irmãos,  “foram anos sem dificuldades e problemas, mas sem luxo”.

 

Râguebi: escola de carácter

 

Aos 15-16 anos começou a jogar râguebi, a modalidade da sua paixão. É, de resto, presença assídua no grande torneio da variante de sete, o Hong Kong Sevens, “a melhor e mais carismática prova do mundo, pela qualidade das partidas e pelo ambiente que durante o fim-de-semana contagia Hong Kong. O entusiasmo com que a população vive o campeonato não tem qualquer comparação com outra parte do mundo. É um autêntico carnaval”.

Em Macau veio reencontrar o advogado Pedro Leal, com quem jogou durante vários anos e também Oliveira Paulo, quadro da Companhia de Electricidade de Macau, e João Costa Antunes, director dos Serviços de Turismo, também eles antigos praticantes.

“É um desporto duro e se as pessoas não forem leais na maneira como actuam pode tornar-se perigoso”, reconhece, mas afasta a ideia de que se trata de uma modalidade disputada por rufias. “Não quero ser elitista mas os jogadores são tratados por senhores, dado que há grande correcção e desportivismo no râguebi, que é, de facto, uma escola de carácter”, nota. “Tenho recordações magníficas desse tempo, sobretudo de jogar no sul de França, onde havia boa comida e boa bebida. Em grupo há de vez em quando alguns excessos, mas cenas de violência são raras”, garante.

O antigo praticante (foi internacional júnior e envergou uma vez a camisola da selecção principal) destaca a importância da terceira parte dos desafios. “A cerveja, com ou sem gasosa, a seguir aos jogos, fortalece os laços de amizade entre colegas e adversários. Criam-se amizades que permanecem durante toda a vida e uma série de ligações que mais tarde são utéis em termos profissionais”, sublinha o adepto do Sporting, que também tem uma paixão pelo futebol.

Licenciado em economia, Pedro Moitinho de Almeida terminou o curso pouco tempo depois da Revolução dos Cravos. “Em 1974 andava à procura de emprego quando vi num jornal um anúncio para o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). Pensei que podia ser uma coisa interessante e não estou nada arrependido”, lembra hoje passados mais de 30 anos. Seixas da Costa (actual embaixador de Portugal no Brasil), Fernando Neves (secretário-geral do MNE) e Álvaro Mendonça e Moura (representante permanente de Portugal junto da União Europeia) entraram também nessa altura para o MNE.

O primeiro posto diplomático fora de Portugal, entre 1979 e 1984, foi em Atenas. “Uma excelente experiência, num país lindo. Estava ainda solteiro e foi a primeira vez que me afastei da família”, conta.  

 

Cabo Verde: o seu segundo país

 

Em 1984 parte para Cabo Verde, que considera ser o seu segundo país, já que foi na Praia que conheceu uma bonita cabo-verdiana, com quem veio a casar. “Além dos laços familiares (tem duas filhas) tenho muitos amigos em Cabo Verde. Quando vou lá sou recebido como se tivesse saído ontem”, realça com grande emoção.

“Quando cheguei à Praia, para desempenhar as funções de secretário da embaixada, havia apenas um partido. Foi muito marcante ter assistido à transformação do PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde) e à consolidação da democracia no país. Uma situação que está a ter enormes repercussões no desenvolvimento do país que, infelizmente, não é muito vulgar em África, onde há muitas nações em que a agitação política prejudica o crescimento”, acrescenta.

Quatro anos volvidos regressa ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, onde desempenha vários postos. Em 1992 participa na primeira presidência portuguesa da União Europeia, era Durão Barroso secretário de Estado. Recorda que nesse período Angola e África do Sul atravessavam momentos importantes da sua história recente e destaca as deslocações à Somália, “período particularmente interessante da minha carreira, pelo que foi posível fazer em prol da população”.

Em 1993 parte para Barcelona, “onde o sul do norte da Europa se cruza com o norte do sul da Europa”. Para Pedro Moitinho de Almeida, “uma cidade magnífica e vibrante, com enorme actividade cultural. Tem a qualidade de vida do norte da Europa e a intensidade das cidades espanholas. Nessa altura estava em franco desenvolvimento urbanístico, provocado pela realização dos Jogos Olímpicos de 1992”.

No Futebol Clube Barcelona jogavam Figo, Vítor Baía e Fernando Couto e José Mourinho integrava a equipa técnica. “Tive muita interacção com Luís Figo. Tenho muito apreço por ele como pessoa e homem e também pela esposa”, frisa.

 

De Barcelona para Macau

 

Em 1997 é colocado em Macau: número dois do Grupo de Ligação Conjunto, o órgão de consulta entre Portugal e a China para tratar do período de transição (1987-1999) e líder do Grupo de Terras.

“Pela relevância e intensidade do trabalho foi uma fase muito significativa da minha carreira”, recorda, revelando que até ao fim da transição (Dezembro de 1999) conheceu pouco Macau. “O trabalho era tão intenso, de manhã à noite, que não havia tempo para nada”, lembra.

“Tenho enorme satisfação em ter dado o meu contributo para que o processo decorresse bem e por ter ajudado Portugal a cumprir as suas obrigações”, diz, adiantando que era certo que a China “tencionava respeitar os seus compromissos”.

Quando iniciou funções tinha sido rubricado um dos mais complexos “dossiers” das negociações: o acordo da Fundação Oriente. Pedro Moitinho de Almeida destaca, contudo, o trabalho desenvolvido no âmbito das localização dos quadros, das leis e da língua. “Foi feito um trabalho notável de adaptação, para o qual era preciso obter o apoio da parte chinesa. O espírito do sistema português ficou a vigorar em Macau, o que para os negociadores portugueses era fundamental”, nota, admitindo que a legislação tem que ser adaptada às circunstàncias e, por isso, “é natural que se façam correcções pontuais”.

A localização dos quadros (nomeação de funcionários locais para os cargos superiores da administração) não foi tarefa fácil. “Era necessário lidar com pessoas, o que é sempre muito complexo. Nalguns casos foi bem sucedida, noutros nem por isso. O mal foi não ter começado mais cedo. Dentro dos condicionalismo fez-se um bom trabalho”, admite.

Quase nove anos depois da transferência de administração, o diplomata realça que o português continua a ser língua oficial. “Durante as negociações chegaram a existir algumas interrogações, mas nunca tive dúvidas que a China tinha interesse nisso e um objectivo claro: Macau podia ser útil a Pequim no futuro”, sustenta, numa referência clara à criação do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa.

Recorde-se que o acordo (regulamentação das línguas) estabelecido no Grupo de Ligação Conjunto “é mais favorável” do que a Declaração Conjunta no que se refere ao português como uma das línguas oficiais da Região Administrativa Especial de Macau.

A Declaração Conjunta não dizia que o português era língua oficial depois de 1999, mas a Lei Básica da RAEM estipula que “além da língua chinesa, pode usar-se também a língua portuguesa nos órgãos executivo, legislativo e judiciais da Região Administrativa Especial de Macau, sendo também o português língua oficial”.

Depois da Lei Básica garantir que o português era língua oficial foi necessário regulamentar a questão das línguas. Um trabalho árduo no GLC, que só na fase final foi concluída, “com satisfação para ambas as partes”.

 

Negociadores chineses bem preparados

 

Como é que Pedro Moitinho de Almeida classifica a experiência no GLC? Sem hesitação, a resposta é clara: “os negociadores chineses estavam extraordinariamente bem preparados, falavam quase todos português, tendo um grande conhecimento da nossa língua. O que nas reuniões dava mais tempo para preparar as respostas. Tinham os minutos da tradução para estudar o que iam dizer a seguir. Muitos estavam no processo desde as negociações da Declaração Conjunta (documento assinado em Abril de 1987 por Portugal e a China que determinou a transferência de administração de Macau em Dezembro de 1999) e, por isso, tinham grande conhecimento dos documentos e dossiers”.

Confessa que não se recorda de nenhuma crise no período das negociações e classifica como muito positiva a actuação dos diplomatas portugueses e chineses que trabalharam no período de transição. “Só não foi feito o que não foi possível. Se algumas matérias não foram regulamentadas foi porque não houve tempo ou margem de manobra para chegar a consenso”, sustenta.

Quando a 20 de Dezembro entrou no avião de regresso a Lisboa não pensava voltar, de novo, a Macau. É, de resto, pouco usual isso suceder na carreira de um diplomata. Mas em 2005 o então ministro português dos Negócios Estrangeiros, Martins da Cruz, decidiu que Pedro Moitinho de Almeida substituisse Carlos Frota no cargo de cônsul-geral de Portugal na RAEM.

“O conhecimento que tinha de Macau foi fundamental para desempenhar as novas funções. Reconheço que nessa altura estava à espera que me fosse entregue a chefia de uma embaixada, mas não estou nada arrependido, já que tive a oportunidade de assistir a uma transformação assombrosa de Macau”, considera a poucas semanas de partir para Otava (Canadá).

O diplomata português diz ter a obrigação de ser um espectador atento, classificando como normal algumas referências menos positivas que tem feito a um ou outro aspecto da vida de Macau, como sucedeu com a questão do património e urbanismo. “Faz parte das minhas obrigações chamar a atenção para aquilo que me parece estar menos bem. As autoridades locais, nomeadamente o Chefe do Executivo, estimulam a crítica positiva. Nessa linha de raciocínio falei das construções desenfreadas e na necessidade de ter maior cuidado com a preservação do património”, recorda.

 

Comunidade portuguesa “tem que se afirmar”

 

Quanto à comunidade portuguesa faz um balanço positivo. “A macaense está a regressar para se reintegrar e tem um papel a desempenhar. Os chamados expatriados sentem-se bem e nos últimos anos muitos jovens quadros vieram para Macau e estão a desenvolver várias iniciativas, demonstrando grande interesse em participar na construção da nova RAEM”, reconhece Pedro Moitinho de Almeida, que defende, uma vez mais, a necessidade de os portugueses se consolidarem na RAEM. “Têm que criar mecanismos de afirmação, de modo a ser mais acarinhados pelas autoridades locais, que têm demonstrado sempre grande apreço pelos portugueses”.

O futuro embaixador de Portugal no Canadá reconhece que o Executivo liderado por Edmund Ho tem tido grande consideração por Portugal e o seu representante. “Posso dizer que se não fui estragado com mimos, foi quase isso que aconteceu…”.

Relativamente ao “dossier” Escola Portuguesa, o cônsul-geral admite que gostaria de ter o processo encerrado, mas reafirma que Portugal tem apenas um objectivo: “a transferência tem que ser melhor para alunos, professores e pais”. O estabelecimento de ensino “é uma boa escola, com bons resultados e, portanto, só se muda para dar melhores condições à comunidade escolar”.

Depois da transição de Macau, Pedro Moitinho de Almeida acampanhou de perto o nascimento da mais jovem nação lusófona. “Foi muito gratificante assistir a todos os momentos que levaram à criação de Timor-Leste como país independente. Vivemos momentos de tensão e de grande emoção. Vinte e tal anos depois as pessoas recebiam com grande fervor os portugueses”, lembra. Portugal inteiro “apoiava também o que estava a ser feito, o que ajudava a ultrapassar algumas dificuldades. Durante meses vivi, por exemplo, numa casa com mais dez pessoas”.

 

O charme de Sérgio Vieira de Melo

 

“Sem o charme e o contacto pessoal que tinha com os dirigentes timorenses o processo tinha sido mais difícil”, frisa quando se refere a Sérgio Vieira de Melo, o representante do secretário-geral das Nações Unidas que teve um papel preponderante na independência de Timor-Leste, que acabaria mais tarde por perder a vida no Iraque.

No percurso profissional de Pedro Moitinho de Almeida está também uma passagem de cinco meses pela Bósnia. “Vivi momentos difíceis e de elevada tensão, dado que a situação era muito complexa. No Kosovo, por exemplo, só na missão mista da União Europeia os albaneses e os sérvios podiam comer em conjunto”, recorda.

Em Outubro, Pedro Moitinho de Almeida deixa, definitivamente, Macau e vai dirigir pela primeira vez na carreira uma embaixada portuguesa. Em jeito de despedida deixa uma mensagem aos residentes de Macau: “Gostaria de aproveitar esta ocasião para me despedir – não definitivamente pois tenciono regressar com a regularidade que as minhas novas  funções me permitam, para rever os amigos e testemunhar a continuação deste notável progresso económico por que atravessa esta terra – e, em especial, para agradecer a toda a população da RAEM, e aos seus dirigentes, todas as amabilidades que para mim tiveram ao longo destes mais de cinco anos e meio. Este apoio e o calor do acolhimento foram fundamentais para tornar a minha estadia memorável e para me permitir dizer que levo Macau no coração”.