As almas e as vidas

Entre o fumo dos incensos dos templos chineses de Macau, entre os labirintos de divisões e pátios a céu aberto que fazem a sua arquitectura, escondem-se séculos de uma cultura que foi passando de pais para filhos. Aqui, a religião não é só uma prática. É uma forma de vida

 

Dominic veio do Canadá, a convite de um amigo que trabalha no Cirque du Soleil, espectáculo permanente do hotel-casino Venetian Macau, desde Setembro. Nunca tinha estado em contacto com a cultura chinesa e não tinha qualquer ideia de Macau.  Às onze e meia da manhã, está sentado à sombra das árvores que enchem o templo de A-Má, ainda tentando entender o que vê. Dezenas de pessoas multiplicam-se na encosta ocupada pelo pagode. O fumo dos incensos acesos enche o ar de um cheiro acre. Os fiéis rezam de olhos fechados perante imagens que soam estranhas a quem só tem a referência da religião cristã, mais comum no mundo ocidental. Todo o cenário é simplesmente exótico.

E confuso. Meio caótico. Mas com alma. Com imensa alma. E naquela confusão há a mesma paz de uma igreja católica vazia, quando só a cera das velas queima pelos pedidos dos fiéis.

“Gosto muito do cheiro do incenso, faz-me lembrar as igrejas. Mas gostava mais de entender os rituais e conhecer a história do templo. Só sei que se diz que o nome de Macau veio deste templo”. Este texto é sobre os templos chineses de Macau. Mais do que uma lista, é uma história. Não fala sobre todos os pagodes, mas sobre aqueles que têm algo de especial, algo que pode servir de explicação. Para os Dominics desde mundo, para quem nunca tenha vindo à China. Para que entendam um pouco mais do que permanece calado atrás dos incensos dos templos chineses de Macau. Pois, sejam bem vindos.

 

A religião que rege a cultura chinesa

 

Comecemos pelo início. A cultura chinesa foi moldada por três correntes de pensamento: o Taoísmo, o Confucionismo e o Budismo. Resumidamente, o taoísmo considera que o Tao, princípio energético, criador e regulador do universo, só é entendido através da observação da natureza. O Confucionismo acredita num sistema de formação de cidadãos úteis à família, à comunidade e ao Estado para se evitarem conflitos. E o Budismo invoca a disciplina e a meditação para anular o sofrimento e, consequentemente, atingir a libertação. A partir do século XI, uma simbiose dos três resultou num sincretismo religioso que determina as práticas religiosas chinesas. O objectivo da crença chinesa é garantir a harmonia entre as ordens natural e sobrenatural. Não há resposta a questões puramente metafísicas nem verdades absolutas. Também não existem missas ou padres, e o diálogo entre os homens e as divindades é feito directamente. Os pagodes não são estanques, não servem só as práticas religiosas, tendo sido várias vezes palco de importantes acontecimentos históricos em Macau. E há dezenas, centenas de divindades, taoístas e budistas. Cada uma com a sua especificidade, um pouco à semelhança dos santos católicos. O panteão Taoísta, por exemplo, tem várias divindades ligadas à adivinhação e superstição, integrando personagens históricas ou lendárias, juntando espíritos e crenças populares. Muitos templos, aliás, têm lendas a si ligadas.

Os crentes na religião chinesa também têm orações, mas a maioria das crenças foi passada de pais para filhos através de contos de embalar e lenga-lengas cheias de significados escondidos. Não existe por isso um “livro sagrado”, mas centenas, milhares de livros que narram os feitos dos budas, das valentes personagens históricas que deixam exemplos a seguir, de figuras lendárias com uma moral intocável e das várias divindades. Quanto mais educado for o homem, quanto mais livros ler, mais sábio, tranquilo e disciplinado será. Para além de se basear num sistema ancestral de crenças e valores, esta ‘religião’ passa também pelo culto dos antepassados e aos espíritos da natureza, a quem os fiéis pedem desde boas colheitas, a bons empregos e ao nascimento de filhos varões. Ao morrer, um familiar tem muito poder sobre os destinos da família que deixa para trás. Será também ao defunto que se farão ofertas de estruturas em papel que representam o dinheiro, comida ou roupa que o espírito poderá usar no além. E por isso, nos templos, para além do fumo dos incensos e das cotoveladas para chegar mais perto dos altares das divindades, há ainda cinzas.

Milhares de pequenas partículas cinzentas que se colam à pele na época do calor húmido vindas das fogueiras onde os fiéis queimam as ofertas em papel, em honra aos seus mortos. Quanto mais felizes os defuntos estiverem, mais agraciada será a família.