Estima e a Macau do Nosso Tempo

Foi em Novembro passado.O poeta veio à cidade com um sorriso nos lábios, a afabilidade e a doçura de sempre. Despediu-se de Silveira Machado (1918-2007), um amigo e companheiro de letras, vadiagens e tertúlias. Disse-nos adeus a todos e partiu apressado para prosseguir a luta. Pela vida que sabia já não lhe reservar um regresso físico à cidade que trazia no coração.A cidade do nosso tempo que ele quis ver relembrada. Eu não deixei.Alberto Estima de Oliveira, devolvo-te o teu texto, para ser lido, relido, por muitos mais:

 

 

Navega-se na arrogância das diferenças pela emaranhada teia de ruelas que constituía o centro da pequena cidade quase flutuante. misturavam-se os cheiros das especiarias com o hálito morno dos detritos. fervilhava a vida nos contornos das faces opacas e nas paredes roídas pelo tempo. tudo se movia convulsionando as veias deste pequeno corpo, largos e esquinas de tendas de “min”, pato assado, frutos e vestuário. macau, 10 horas de uma manhã húmida de um julho espesso. caíu a noite absorvendo o dia. 

 

o sono emergia das janelas veladas. no asfalto vivia-se ainda o chiar dos pneus e sob as árvores da praia grande mantinha-se a troca amorosa das carícias, restos das escassas horas de trabalho imposto. o tufão passou ao largo, somente as águas castanhas do delta do rio das pérolas se mostraram impacientes, ondulando em pequenas cristas, balançando as panelas de caldo suspensas nos juncos ancorados.

 

tudo se passa em termos inconsequentes, sem margens. o lodo e a muralha habitam a noite concretamente. a cidade ilumina-se num carrossel de cores, liquidando o lixo e a miséria. não há espaços. nova vida se inicia nas ruelas e esquinas procurando no prazer a solidão dos neons embriagados. os olhos escondidos na penumbra das fábricas surgem agora na aposta possível do sorriso passivo e terno duma jovem que passa.

 

esconde-se a cidade na noite curta reduzindo o tempo. macau nasce dos restos da lua multiplicando as células nos ventres tensos, nas mãos hábeis, nos corpos lívidos.

 

secam-se-me os lábios de falar a noite curta reduzindo o tempo. macau nasce dos restos da lua multiplicando as células nos ventres tensos, nas mãos hábeis, nos corpos lívidos.

 

secam-se-me os lábios de falar a noite.e o poema vem, bardo, das entranhas.

 

O poema vem, bardo, das entranhas de um poeta de corpo (con)sentido quando inicia o percurso do Encontro, ultrapassando e rompendo, noite a dentro, os muitos silêncios comodamente encasulados na crisálida das diferenças. Intenta a viagem iniciática. Da mera presença no local para o início do diálogo, mesmo que de uma solitária deambulação ou de um monólogo se trate. Aí sim, apreenderemos o espaço, em toda a sua pujança, multiplicidade e contradição.

Cruzo-me contigo nas ainda antigas vielas. Encontro-te na vadiagem nocturna. Secos os lábios de falar a noite. Partilhamos um min no pequeno restaurante nas imediações da Rua da Felicidade. Despedes-te com um até já e segues ligeiro Almeida Ribeiro acima. Apoiado na bengala, páras, voltas-te para trás e com o teu sorriso rasgado, terno e doce. Repetes acenando: até já!

Alberto Estima de Oliveira faleceu em 1 de Maio de 2008.

Ao seleccionar um texto seu para declamação no sarau literário que decorreu no Clube Militar de Macau em 30 de Novembro de 2007 procurei um poema já traduzido para chinês. Era essa a regra, motivada por um único sentido: o entendimento, já que se tratava de dar a conhecer aos investigadores, escritores, críticos e publicistas participantes do Simpósio Internacional “O Indivíduo e a Sociedade na Literatura Chinesa Moderna”, alguns escritores e poetas de Macau. Participantes esses na sua maioria oriundos da República Popular da China, mas também ocidentais, todos falantes do chinês. Não havia tempo para arriscarmos as sinuosas veredas de novas traduções.

Estima teria tido gosto na leitura desta prosa poética sobre a cidade do nosso tempo, publicada em 1988 no seu livro O Diálogo do Silêncio 1, mas submeteu-se afável e irónico à minha decisão:

 

faz o que achares por conveniente, o meu cantonense não dá para dizer poesia só para mandar vir chau min. 

por favor decide por mim como se eu não estivesse presente… e na eventualidade de estar sigo a tua orientação.

 

Felizmente esteve presente, e feliz, naquele que terá talvez sido o seu grande último momento de partilha poética à escala internacional.

O texto que a saudade trazia ao coração deste poeta sem espaços, esse aí está.

 

Alberto Estima de Oliveira (1934-2008)

 

Alberto Eduardo Estima de Oliveira nasceu em Lisboa em 1 de Julho de 1934. Faleceu na mesma cidade a 1 de Maio de 2008.

Frequentava o Ensino Comercial, quando, jovem de apenas 14 anos, se vê forçado a iniciar a sua carreira profissional na actividade seguradora, a que permanecerá ligado até ao fim da vida. Matriculando-se no ensino nocturno prossegue os estudos, concluindo o Curso dos Liceus. De assinalar também a sua passagem, sem grandes consequências, pelo curso de Pintura Decorativa da Escola António Arroio e pela actividade teatral.

Após terminar o serviço militar em 1957 vai para Angola, onde se fixa na região do Bocoio (Vila de Sousa Lara), dedicando-se durante alguns anos à agricultura. O contacto com a natureza desenvolve nele uma outra vertente cultural, mas acaba por regressar à profissão em 1965, vivendo então no Lobito e em Benguela. Passados dez anos, em 1975, regressa a Portugal. Ingressa na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que abandona em 1977 quando parte para a República da Guiné-Bissau onde reside durante cerca de três anos. Aí, de par com a sua carreira profissional, empenha-se no conhecimento de uma nova realidade pluri-étnica recolhendo junto das populações com quem contactou um apreciável acervo cultural.

Os primeiros versos remontam aos seus 18 anos, tendo poesia publicada nos cadernos Vector II e III (Huambo, Nova Lisboa) e na Kuzuela III─1ª Antologia de Poesia Africana de Expressão Portuguesa (Luanda), coligida por David Mestre. O primeiro livro, Tempo de Angústia, produto dos tempos difíceis como o próprio título o sugere, saiu em 1972.

Em 1982 fixou-se em Macau, onde residiu até 2002 e dirigiu a Companhia de Seguros de Macau. Em Macau, sob a chancela do Instituto Cultural, publicou a maioria dos seus livros, todos eles de poesia, colaborando também nas revistas Macau e Revista de Cultura.

Alberto Estima de Oliveira está traduzido em chinês e em inglês, nomeadamente na colectânea com o título Fly, publicada em Portugal em 1986 e apresentada pelo autor, nesse mesmo ano, no 1º Festival Internacional de Poesia de Las Palmas, Gran Canaria, no quaI também representou o então Território de Macau.

Em 1997, o ACTO/Instituto de Arte Dramática, adaptou uma das suas obras O Corpo (Con)Sentido e levou-a à cena, em três sessões, no Teatro Municipal de Estarreja.

No final do mesmo ano editou a Tradison o disco compacto Diálogos do Silêncio, com alguma da poética de Estima de Oliveira publicada entre 1987 e 1996, dita por Helder Fernando e acompanhada por improvisos de violino de Carlos Damas.

Estima de Oliveira conquistou em 1999 o Grande Prémio de Poesia no Festival Curtera de Arges na Roménia, publicando em Lisboa, em 2003, com o apoio da Fundação Oriente, o seu último livro MESOPOTÂMIA.

Visitou Macau pela derradeira vez em Novembro de 2007 no âmbito do  Encontro das Comunidades Macaenses tendo então participado no Sarau Literário organizado pelo Instituto Ricci de Macau no decurso do Simpósio Internacional “O Indivíduo e a Sociedade na Literatura Chinesa Moderna” que decorreu nas instalações do Clube Militar no dia 30 de Novembro.

 

1 Macau, Instituto Cultural de Macau, pp. 17-18.

* Investigadora-Coordenadora do Instituto Ricci de Macau

 

Principais obras

 

Poesia – Tempo de Angústia, Angola,1972 (esgotado); Infraestruturas, Macau,1987 (esgotado); O Diálogo do Silêncio, Macau, 1988; O Rosto, Macau, 1990; O Corpo (Con)Sentido, Macau,1993; Esqueleto do Tempo, Macau,1995 e Estrutura I – O Sentir, Macau, 1996 e MESOPOTÂMIA – espaço que criei, Lisboa, 2003.

CD – Diálogos do Silêncio, Macau,1997

Obras de conjunto – Fly, 1996.

 

Mais do que um projecto de vida, ou mesmo um projecto poético, Alberto Estima de Oliveira protagonizava um projecto humano

 

com dedos charrua

escreverás o poema

com mãos de girassol 

inventarás o poente

aos sulcos ressequidos

lançarás a semente

 

Antes de tudo, devo ao leitor esta declaração de interesses: Por mais de duas décadas fui amigo de quem, por convite do editor desta Revista, irei escrever as próximas linhas. Amigo consequente e em plenitude. Por coincidentes acasos da vida, mesmo antes de nos encontrarmos em Macau já nos conhecíamos em outro continente, se bem que vivendo em costas opostas, sem nos conhecermos. Continuo a ouvi-lo numa das suas sentenças: É urgente ter asas.  Oiço-o constantemente, sabendo bem não estar sozinho nesta minha permanente escuta dos seus segredos moldados em poemas.

ouço

através dos meus segredos

os mistérios

do inconsciente

percorre-me o corpo

essa voz

pulsa-me nas têmporas

o delírio do sangue

 

Podem existir várias maneiras – pelo menos duas – na abordagem da vida e obra de Alberto Estima de Oliveira. Uma é do ponto de vista estético-criativo ou do crítico literário, para o qual, naturalmente, não possuo sabedoria. Outra é como leitor integral e fiel, atento, jornalista que tanto o entrevistou em jornais, na rádio e em televisão, companheiro de viagens reais e imaginadas, confidente, cúmplice, amigo solidário que tanto o admirou. Assim ficarão, pois, as próximas linhas.

 

(…)

e as folhas descobrem-se

na escuridão da floresta

nas asas dos pássaros que emigram

e nos olhos dos homens

que sabem sonhar

 

O que mais nos encantava no Alberto (ou Estima para a maioria) eram os seus gestos de patriarca meigo, a quem, espontaneamente, se reconhece autoridade com tranquilidade.

O que mais nos encantava no Alberto era o seu jeito de falar e de ouvir. De nos ver, mesmo quando molhava o olhar.

O que mais nos encantava no Alberto era a sua cristalina capacidade de amar.

O que mais nos encantava nele era a sua poesia.

 

tanta água

contida

nesta

vertida gota

dos meus olhos

tanto mar 

tanto amor

feitos de sol

e dor

 

Moldavam-nos as emoções do poeta e do homem. Cercavam-nos, interferiam no dia a dia dos mais próximos, em tantas tertúlias que surpreendiam os que a elas chegavam pela primeira vez, sempre com a sua bênção prévia.

O Alberto, na amizade, praticava adultério. E nós gostávamos! Era um enorme leque de afectos cúmplices, mesmo os nunca sequer segredados.

Quando o seu poema denunciava estádios de felicidades efémeras, pouco daquilo era concreto; preferindo ele os cambiantes vários, o fingimento fingido, o seu modo de enigmática absorção, para o interior, da aparente realidade cá de fora.

No “Tai Sam Un”, restaurante chinês que já não há (depois noutro, também junto à Rua da Felicidade) sempre com um gigantesco quadro representando peónias, enchíamos a alma, bebíamos, com apuro, o vinho, sem deixar que o vinagre chegasse para azedar-nos a palavra.

Pedaços, rasgados, de papel, de mão em mão, de boca em boca, ao rubro, borbulhando com exaltação, com a fluidez dos cânticos sagrados da amizade.

 

aquela porta fechada

tem peónias por dentro

forrando um outro horizonte

da densidade da vida

é uma janela aberta

no abismo da saudade

local de encontros

que tive com a cidade

 

Nos Cadernos Vector II e III (Huambo, ex-Nova Lisboa, Angola), em Kuzuela III com a 1ª Antologia de Poesia Africana de Expressão Portuguesa publicada em Luanda, e ainda “Tempo de Angústia” nos Cadernos Capricórnio, tudo pelos anos 70 do século passado, Estima de Oliveira iniciava a longa caminhada poética de mais de 40 anos.

Caminhada prosseguida em Macau desde o início dos anos 80 com “Infraestruturas” (ICM); “O Diálogo do Silêncio” (ICM); “O Rosto” (ICM); “O Corpo (Com)Sentido” (ICM/IPOR); “Esqueleto do Tempo” (Livros do Oriente); “Fly” (colectânea em língua inglesa, traduzida por George Till, editada pela Tertúlia Internacional”); “Estrutura” I-O Sentir” (edição de autor); registo áudio de selecção de poemas em CD, ditos por Helder Fernando “Diálogos do Silêncio” (Tradisom);“Infraestrutura-Keitcho” (ICM); “Estrutura II-(In)Tolerância”; “7 Poems” (selecção traduzida para inglês por Rui Cascais, apresentada pelo poeta no IV Festival Internacional de Poesia na Roménia em Julho de 2000); “Mesopotâmia-Espaço que Criei” (Arion. Também traduzida para romeno e editada pela Academia Romena Internacional Oriente-Ocidente).

Premiada em Festivais internacionais (em Las Palmas de Gran Canaria, 1996 e 1998, na Roménia em Julho de1999 e no Congresso Mundial de Poetas em Acapulco, México, em Outubro do mesmo ano), a poesia de Alberto Estima de Oliveira navega por jornais e revistas de cultura, e ainda em Antologias Poéticas de Espanha, Itália, Portugal, México, Croácia, Brasil, Roménia, China Continental e Macau.

Chegou também ao Teatro, sob várias formas, a sua poesia. Por exemplo, no 1º Festival Internacional de Teatro realizado em Estarreja, Portugal, em Maio de 1999, onde foi encenada uma abordagem à sua poesia, posteriormente passada a vídeo.

O Estima foi, como tantos de nós, um exilado voluntário. Por Angola, Guiné-Bissau e Macau, principalmente. Mas nunca errante. Exilado sem fugas, sem nomadismos, sem desterros; mesmo assim com diásporas.

As raízes do homem sentia-as ele em Lisboa, mas as raízes do poeta e do pensador tinhas-as ele em África, com sofreguidão.

Eternamente com a família mais chegada no pensamento – e na acção, diga-se – foi poeta e homem exilado de várias Pátrias neste Oriente Extremo chamado Macau, que um dia nos recebeu e nos acolhe. Por força da História, do sangue, da necessidade, da ideia, do acaso.

 

porque me desfaço nesta onda

e me recomeço na seguinte

e torno a desfazer o que parece

ser de mim próprio feito

porque não fico estático

imperfeito

no meio do receio da paragem

envolvido em segundos

horas séculos

 

O campo de actuação do poeta era, sobretudo, as pessoas, a sua estrutura – o que ele via ou imaginava nelas. Com as pessoas, Alberto sedimentava os poemas. Como um artífice, guilhotinava as frases do poema, cada palavra, por vezes cada sílaba. Não os empalidecia, criava-lhes a mais cristalina evidência. E, a tempos, a mais acutilante ironia, como ele próprio.

 

pulsa-me

nos punhos

ondas de serena força

os dedos

pássaros

migratórios

circulam

destros

no branco

espaço

do poema

 

O Alberto sempre foi muito guloso de afectos. E o melhor é que o enchiam de guloseimas. Por isso mostrava quase sempre o sorriso doce, mesmo quando lhe saltavam águas dos olhos claros. Na sua poesia, a palavra escrita ou dita, morre quase sempre cheia de sede nos lábios à beira de gretar.

 

secam-se-me os lábios de falar a noite

e o poema vem, bardo, das entranhas.

 

Alberto Estima de Oliveira viveu como um refinado vivedor. Sem pressas, sem exuberâncias, sem ampulheta nas mãos. Escreveu praticamente até à morte, mesmo quando já se lhe arrefecia a barba branca e os olhos de céu e água iam secando.

Poetava por espiritual necessidade extrema, mas também porque, para ele, criar poesia era uma tarefa voluntária e voluntariosa.

Como a todos os poetas maiores, a poesia que escreveu, nas suas imagens dialéticas e outras, no seu pólen, mantê-lo-á suspenso no tempo.

Restam-nos todos os seus poemas. Como este, onde escutamos a sua voz:

 

se no segundo exacto

a graça fosse

de minha eternal posse

prendia

a forma da manhã

formando um dia

à dimensão da vida

 

 

 

NOTA – Poemas de Alberto Estima de Oliveira, extraídos das obras: “Infraestruturas”, “Diálogo do Silêncio”, “Esqueleto do Tempo”, “O Rosto”, “O Corpo (Con)Sentido” e “Mesopotâmia”