O francês que queria aprender chinês

Daniel Carlier veio para Macau como poderia ter ido para qualquer outro lugar. Calhou. E se ficou, não foi o território que o prendeu. Foi o mandarim.

 

Em meados de Outubro, Daniel Carlier publicou em Macau o seu primeiro livro. Com o apoio da Fundação Macau, do jornal português Tribuna de Macau e do chinês Ou Mun, “Ditos de Confúcio” mistura as suas grandes paixões de Carlier: o mandarim e a filosofia. Mas que se desengane quem pensar que este francês é homem de paixões. Nada o prende. Ou melhor, não são os lugares que o prendem. É algo mais, algo que um local lhe traz, um desafio. São os desafios que o prendem. Daniel Carlier nasceu no Norte da França e ali viveu até aos 22 anos, onde estudou filosofia. Uma viagem que fizera a Portugal,  ainda com 18 anos, não lhe saía da cabeça e decidiu rumar ao ‘jardim à beira mar plantado’.

Pouco conhecia do país, mais queria descobrir. No início deu aulas de francês na Alliance Française de Évora e a maior recordação que tem daquele primeiro ano foi de frio. Um frio terrível que nada tinha a ver com o de França, um frio que lhe entrava nos ossos. Os anos seguintes já foram passados em Faro, no Algarve. E aí já não teve frio. Teve tanto calor que decidiu pedir nacionalidade portuguesa e equivalência do curso superior de filosofia para poder dar aulas em Portugal.

“Esses dois primeiros anos foram muito difíceis. Uma coisa é falar português,  outra é dar aulas de filosofia numa língua que estamos a aprender. E nessa altura,  eu traduzia as minhas aulas de francês para português. Quando deixei de traduzir e passei a pensar em português, as aulas começaram a correr melhor. Adorei dar aulas de filosofia”.

Daniel Carlier esteve 14 anos em Portugal. Até ao dia em que um colega da Escola do Magistério Primário,  onde dava aulas a futuros educadores de infância e professores primários, lhe disse que vinha para Macau. “O Amílcar Martins, que hoje dá aulas na Universidade Aberta de Lisboa,  era meu amigo e disse-me para vir também”. E Daniel Carlier não pensou duas vezes. Estávamos em 1985 e pouco se falava sobre Macau em Portugal. “A televisão nunca falava em Macau e nem livros sobre o território consegui arranjar”. Carlier sabia que Macau estava sob a administração portuguesa,  mas pouco mais. Porque veio? Porque era uma novidade. Porque não tinha nada a perder. Porque tinha ânsia de conhecer mais mundo.

Os concursos para dar aulas na Escola do Magistério Primário abriam todos os anos. Em 1985, Carlier não foi aceite. Chegou a Macau em 1986.

 

Palavras vazias e palavras cheias

 

“Eu não me apeguei a França,  nem a Portugal e também não estou apegado a Macau. Se cá estou há 22 anos é porque queria saber se conseguia aprender mandarim. Depois de aprender português, queria saber até onde conseguia ir”. E foi longe. Ninguém o diria já que Daniel quis abandonar o território seis meses após ter chegado. “A adaptação foi muito complicada. Eu vinha do paraíso europeu, que é o Algarve, para aterrar nesta confusão toda. Só me queria ir embora mas tinha um contrato de dois anos, tinha de ficar”.

Durante esses dois anos obrigatórios, Carlier estudou cantonense. Queria tentar entrar na cultura chinesa e não limitar-se a vê-la como um peixe observa o mundo fora do aquário. Mas no fim do contrato,  entendeu que não queria aprender cantonense. Queria aprender a língua chinesa,  o mandarim. Foi aí que começou verdadeiramente esta fase da sua vida. Macau.

Carlier começou a estudar mandarim em 1988 e um ano mais tarde já conseguia uma bolsa da Fundação Oriente e uma autorização da administração para largar funções e ter aulas intensivas de mandarim em Xangai. O ‘estágio’ durou-lhe dois anos após o qual,  considera hoje,  sabia pouquíssimo de mandarim. Até agora, Daniel Carlier admite continuar a aprender. “Lendo, vendo televisão chinesa, conversando. O que é importante no mandarim é perceber a estrutura da língua,  e não tanto decorar vocabulário”.

O que mais incomodava o francês no início era a ausência do plural ou singular, a ausência da conjugação dos verbos, a ausência do feminino e do masculino. “E no meio dessas ausências, eu sabia que o português podia ser traduzido para chinês. Não entendia como isso era possível. Depois é que percebi que o chinês tem partículas sintácticas que dão sentido à frase. Os chineses chamam a isso palavras vazias, porque não querem dizer nada se estiverem isoladas,  mas podem colocar,  por exemplo,  uma frase no passado dando-lhe todo o sentido. As outras palavras, as que têm sempre significado,  chamam-se palavras cheias. E é a combinação das duas que faz a língua”.

Em 1999, Carlier sentiu-se preparado para deixar entrar Confúcio na sua vida. O domínio do chinês já o permitia entender os ditos do filósofo sem ter de recorrer às traduções. “Foi nessa altura que comecei a traduzir os textos de Confúcio. Era um hobby”. Pois o passatempo foi agora publicado.

Com 59 anos, 22 de França, 14 de Portugal e 22 de Macau,  Daniel Carlier reconhece que poderá não ficar no território chinês para o resto da vida. Pelo menos até aos 65 anos nada o tirará de Macau,  onde dá aulas de português na Escola Luso-Chinesa Técnico-Profissional, mas depois disso,  o mundo é dele.