O Ano do Búfalo

A chuva clara inunda as terras altas Onde um homem com uma capa de palha Ainda lavra à meia-noite Ele e o seu búfalo estão exaustos, Mas a oriente não parece haver sinais do nascer do dia Cui Daorong, dinastia Tang (618-907)

 

No ciclo zodiacal chinês, quatro dos signos que o integram são traduzidos, na literatura não chinesa, por diferentes nomes: Lebre ou Coelho; Cabra ou Carneiro; Javali ou Porco; e Búfalo ou Boi, enquanto que a literatura chinesa atribui indistintamente o mesmo carácter aos membros afins da respectiva espécie. A opção por qualquer das denominações ocidentais desses quatro signos podendo parecer uma questão aparentemente irrelevante não o é porque o recorte ‘personalístico’ de cada um dos animais em confronto, ainda que aparentados, pode revelar diferenças significativas, como tivemos oportunidade de evidenciar no nosso artigo A Lebre, a Mítica Habitante da Lua (II série, n° 82, Fev. 99).
Concretamente no que respeita ao Búfalo, o carácter chinês 牛(niú) é indistintamente utilizado para designar a maior parte dos membros da subfamília dos bovídeos como o boi, a vaca, o touro, o búfalo de água, assim como parentes asiáticos menores.
Mas há razões históricas e culturais chinesas que nos levam a acreditar que a escolha do animal que melhor representa o signo Lunar Chinês do ano 4706-4707, e que no calendário gregoriano se inicia a 26 de Janeiro de 2009, é o Búfalo de Água que, de resto, é adoptado também no ciclo zodiacal vietnamita.
Quem viaja pela China e pelo Sudeste asiático rurais retém facilmente, ainda hoje, a imagem tranquila, pacífica e paciente do Búfalo de Água imerso no lamaçal das margens dos campos de arroz.
O Búfalo de Água teve, e tem ainda, um papel decisivo como colaborador directo dos seres humanos nos mais árduos trabalhos agrícolas na China e em vastas regiões rurais da Ásia, da mesma forma que o cavalo e o boi tiveram no Ocidente. A cultura chinesa reconhece na sua tradição popular este valioso contributo do Búfalo de Água, ao longo dos séculos, para a sobrevivência dos seres humanos, prestando- lhe a justa homenagem em eventos e manifestações culturais mais diversas.
Valerá a pena visionar o filme do violinista americano Robert Thompson, 4 Generations: The Water Buffalo Movie, disponível no site http://www.t2.com/waterbuffalo/ watch/water_buffalo_flash_hi.html, para se compreender a importânda económica, ainda hoje, do Búfalo de Água nas recônditas comunidades rurais da China muito pouco conhecidas da maioria das pessoas.
O Búfalo de Água será, porventura, também, entre todos os animais representados no dela zodiacal chinês, o animai mais directamente relacionado com a história e a arte da China.
Vestígios arqueológicos, encontrados a sul da foz do rio Yangtze na província de Zhejiang, comprovam a utilização do Búfalo de Água (Bubalus bubalus) nos trabalhos agrícolas desde há 6000-7000 anos, embora alguns paleontólogos defendam que tais vestígios possam pertencer a uma espécie diferente do Pleistoceno, o Bubalus mephistopheles, já encontrado também em escavações na província de Henan.
Convém recordar a este propósito que os mais antigos registos de caracteres chineses escritos, datados do ano 1300 a.C. da dinastia Shaog, foram encontrados em ossos (骨 gu) de búfalos e carapaças  de tartarugas, escrita esta que se passou a designar de  甲骨文 jiaguwén. É naquela dinastia e na dinastia seguiate, a dinastia Zhou (1100 – 256 a.C.), que o Búfalo se torna um dos temas favoritos de adorno nos vasos de bronze.
O Búfalo de Água está intimamente ligado à cultura popular e aos ritos rurais da Primavera, nomeadamente à festividade de celebração da chegada desta estação e ao culto da fertilidade, designada de 立春 Lichun, que corresponde no calendário lunar ao 15° dia do 10 mês do Ano Novo Chinês. No Primeiro Encontro Nacional de Agricultura e Florestas que teve lugar na capital de Chungking (actual Chongqiag), no dia 12 de Março de 1941, o Executivo Yuan da República da China decretou o 40 dia do mês de Fevereiro do calendário solar, como o feriado dos agricultores.
Embora não sendo um feriado ofidal, é um feriado dos trabalhadores rurais em muitas regiões da China. É nesta festividade que encontramos as figuras de búfalos da Primavera (春 牛 chunniú), feitas de argila ou de papel colorido, estas úitimas recheadas com cinco diferentes tipos de sementes, e que se destinam a ser batidas com pequenas varas para estimular o renascimento da Primavera em toda a sua pujança e das boas colheitas. A tradição diz que se devem bater seis vezes nas figuras e ir-se dizendo: Com a primeira vem o tempo favorável e no momento certo; com a segunda vem a terra fértil e as chuvas tépidas; com a terceira vem um pacífico começo do novo ano; com a quarta vem a paz através das quatro estações; com a quinta vem a boa colheita das cinco sementes; com a sexta chega a Primavera às Seis Unidades ou ao Universo.
o culto do Búfalo de Água ou dos seus familiares bovídeos encontra -se em muitas civilizações e tradições populares da Antiguidade tais como na Babilónia, no Egipto, no vale do Indo, na Grécia, em Roma, na índia, bem como entre os Fenícios, os Celtas p os Assírios, os Hititas e outros, e sempre associado ao culto da fecundidade e do renascimento da Primavera, fenómenos tão vitais a sociedades totalmente dependentes da agricultura.
Na índia, onde os bovídeos são objecto de protecção e de culto, o deus Shiva, que representa, na trindade Hindu, o eterno ciclo da destruição e da (re)criação, tem como montada o touro branco sagrado Nandi. Também o deus Krisbna, a figura principal da épica, poética e sagrada escritura hindu, o Bhagavad Gita (literalmente em sânscrito, “A Canção de Deus”), é frequentemente representado em companhia de touros ou vacas, tocando uma flauta, conotando-o com Govinda, o Supremo Ser ou Divino Pastor.
Na tradição popular chinesa, com as suas histórias e lendas, o Búfalo está muitas vezes associado à água e aos rios.
Muitos locais na China usam o carácter牛 (niú) nos seus nomes, pois estiveram de um modo ou de outro relacionados com os búfalos de água e cada um tem a sua própria história ou lenda, como, por exemplo, o desfiladeiro Huangniu (literalmente, Búfalo Amarelo), no rio Yangtze. Conta-se que este desfiladeiro terá sido construído pelo Imperador Yu, o Grande, fundador da dinastia Xia (2200-1750 a.C.), tendo recebido uma Importante ajuda de um búfalo amarelo não apenas neste empreendimento mas também na regulação dos rios e dos cursos de água na China.
Uma das histórias de amor mais belas na tradição popular chinesa, que apresenta inúmeras variantes, é a que nos conta da paixão entre o pastor de búfalos Niulang e Zhinü, uma das sete donzelas do Palácio do Céu. Tendo descido à Terra, na sua curiosidade de jovem, para ver como era, Zhinü encontrou Niulang, um humilde e pobre pastor. Apaixonou-se por ele, casou-se, teve dois filhos e vivia uma vida feliz.
Um dia um velho búfalo já moribundo e às portas da morte informou o casal de que a sua pele permitia um homem voar até ao mais recôndito lugar do Céu. Pediu, por isso, que após a sua morte a guardassem cuidadosamente.
Zhinü, ao descer à Terra, violara uma importante regra do Palácio. Ao darem conta do seu desaparecimento do Palácio do Céu, a Rainha-Mãe do Céu, sua avó, desceu à Terra com os seus soldados e levou-a de volta para o Palácio.
Ao regressar do campo, Niulang encontrou os dois filhos a chorar. Interpelados pelo pai, estes disseram-lhe que uma senhora idosa tinha levado a sua mãe para o céu.
O pastor lembrou-se, de imediato, do que o velho búfalo que havia dito. Colocou os  dois filhos em dois cestos, carregou-os nos ombros, vestiu a pele mágica e voou em direcção ao céu. A sua velocidade permitiu ainda aproximar-se da sua mulher. Quando estava prestes a agarrá-la para a trazer de volta à Terra, a Rainha-Mãe, com um gancho de cabelo, riscou o céu traçando uma linha branca entre os dois. Um caudaloso rio nasceu, separando-os definitivamente, ficando cada um na sua margem.
A Rainha-Mãe desafiou, então, Niulong a atravessar o rio para se juntar à mulher amada.
A Fénix (Fenghuaog), que reina sobre todas as aves, comovida por tão verdadeiro amor, ordenou a todas as pegas azuis do mundo que se reunissem e formassem uma ponte entre as duas margens do rio, permitindo assim que os amantes se reencontrassem. Da! a expressão chinesaencontrar-se na ponte das pegas azuis. A Rainha-Mãe ao ver isso aceitou relutantemente que o casal se reencontrasse uma vez por ano, fixando o 7° dia do 7° mês de cada ano do calendário lunar chinês para tal reencontro. Nos restantes dias do ano, Niulong pastava os seus búfalos e cuIdava dos seus dois filhos numa das margens do rio e Zhinü tecia no outro lado do rio. Diz a tradição que esta história está escrita no Céu, pois se contemplarmos a noite escura do 7″ dia do 7″ mês lunar veremos no céu a estrela A1tair (Niulong), com os seus filhos próximos (as estrelas Beta Aquilae e Gamma Aquilae), e a estrela Vega (Zhinü) olhando-se em cada margem do rio branco e largo, que não é senão a Via Láctea.
O auspicioso duplo 7  (七夕Quixi, “a noite dos setes”) é afinal a versão oriental do dia de São Valentim para os amantes chineses.
Neste dia costuma-se dizer que não é fácil encontrar pegas azuis porque estão todas a tecer a ponte entre as duas margens do rio. Diz-se também que se nessa noite chover, são as lágrimas de felicidade do reencontro do casal.
Esta festividade chamada na China de 乞巧 芥 ou de 七夕七巧芥, uma festa dedicada às jovens para demonstrar as suas prendadas qualidades, é também conhecida na Coreia como Chilseok e por Tanabata-Sama no Japão. Na Coreia celebra-se o reencontro de Jinguyeo (Vega) com Gyeonu (Aliai) e no Japão de Orlhime (Vega) e de Hikoboshi (A1tair).
Um outro aspecto muito interessante referente ao Búfalo de Água é a inclusão frequente da sua imagem na iconografia Taoísta e budista Zen.
Segundo a tradição Taoísta, Laozi terá atravessado o desfiladeiro Hangu para Oeste, na província de Henau. montado num búfalo de água. E terá sido na companhia deste venerando animal que Laozi redigiu o famoso livro clássico chinês da Via e da Virtude, o Dàodéjing ou Tao Te King. Esta lenda ou história oral entre os Taoístas levou a que multas devotos do TaoÍsmo utilizassem o búfalo de água como meio de traosporte na tentativa de imitar Laozi. É o caso do monge taoísta Feng Juda que se terá deslocado à montanha Niaoshu, na província de Gansu, quando jovem, para aprender os ensinamentos da doutrina Taoísta. Regressou à sua terra natal, cem anos depois, montado num búfalo preto, ficando conhecido como o Monge Taoísta que Monta um Búfalo Preto.
Também no Japão o Búfalo de Água é muitas ve7.es associado à árvore do pessegueiro e utilizado como silnbolo do Budismo Zen.
Nas 101 Histórias Zm, compiladas por Paul Reps, (trad. porto de Zm Flesh, Zen Bom, Pelican Book, 1971) foi incluído um capítulo com dez ilustrações de pastoreio de búfalos do mestre chinês Juefao Hulhong (em jap. Kakuan, 1071-1128). O mesmo tema foi adoptado por outros mestres Zen: Fumyo com dez ilustrações de pastoreio de búfalos: Jitoku com seis ilustrações de pastoreio de búfalos; e um monge desconhecido, também com dez ilustrações de pastoreio de búfalos brancos. Todas estas ilustrações tentam explicar o espírito do treino Zen e o resultado espiritual esperado com esse treino. Aqui o Búfalo representa o eterno princípio da vida, a autenticidade na acção e cada uma das ilustrações é um passo sequente na realização da verdadeira natureza de cada um.
O Búfalo de Água tornou-se, assim, para o Zen, tal como para o Taoísmo, um símbolo de quietude, de tranquilidade, de força, de generosidade, de mestria da natureza humana e de aprendizagem contemplativa.
Um vitelo recém-nascido não tem medo do tigre. É um ditado comum na China que quer significar que um jovem com elevadas ambições mostra, tal como o tigre, muita força e muita coragem para enfrentar as dificuldades. É também utilizado para descrever as crianças nascidas no ano do Búfalo, predizendo-lhes um futuro brilhante, designadamente em actividades que impliquem uma grande destreza manual como, por exemplo, a cirurgia.
Embora os indicadores económicos e financeiros apontem para um ano de 2009 difícil, o Ano do Búfalo é geralmente considerado como um bom ano desde que as dificuldades sejam ultrapassadas com esforço, perseverança e vontade de mudar.
Algo semelhante ao ‘Yes, We Can'” de Barack Obama.