A primeira vez que chegámos à capital da província de Guangdong passeámos pelos quarteirões entre as pessoas que ocupam as estreitas ruas, pavimentadas com enormes blocos de granito, como a extensão das suas casas. As árvores davam sombra a muitas mesas com idosos, que todos os dias ali jogavam mahjong. A maioria das pessoas vestia roupas azuis e cinzentas de um corte chinês. Os casacos eram do tipo usado por Mao Zedong ou de um estilo mais antigo sem botões, com calças largas e sapatos pretos de sarja e sola de corda. Nas esquinas das ruas principais formavam-se longas filas em frente a quiosques com jornais, para se poder usar o telefone. Os quarteirões tinham os seus quartos-de-banho comunitários que eram usados logo às primeiras horas do dia por habitantes, alguns ainda de pijama.
Em frente ao rio Zhu assistimos ao movimento intenso das sampanas, onde famílias viviam, e dos barcos que faziam cruzeiros ou colocavam na outra margem os passageiros, havendo muitos que ancorados serviam de casa ou de restaurante. Na ilha Shamian, com uma arquitectura ocidental, ficava hospedada a maioria dos estrangeiros de visita, já que o reboliço da cidade aí não se fazia sentir. Atravessando o canal fomos ao mercado Qingping onde, para além dos produtos de medicina tradicional, encontrámos um arsenal zoológico raramente observado. Mamíferos, répteis e aves, enjaulados, e peixes em bacias, que nadavam ou esperneavam à espera da faca que os iria dividir, ainda com os corações a bater. Às pessoas, só lhes interessava comprar carne ainda viva, pela garantia da sua frescura. Costuma dizer-se que, para os chineses do sul todo o animal que vive com as costas voltadas para o Sol é comestível. A gastronomia da província de Guangdong, que tem Cantão como capital, mesclou-se com os gostos de outros países e regiões e fez-se uma das mais ricas em variedade de produtos e técnicas para os preparar.
Toda aquela zona fronteiriça com a ilha de Shamian, em 2004, foi completamente reabilitada.
Mas voltemos ao passado. Após o movimentado mercado, calcorreámos estreitas ruas onde não faltavam árvores. Até chegar a Beijing Lu – a rua comercial de Cantão – passámos por quarteirões que viviam da venda de diferentes produtos.
Cada rua tinha a sua especialidade e os produtos das lojas-armazéns estavam expostos nas soleiras das portas. Eram produtos secos como cogumelos em grandes sacos plásticos, plantas medicinais em enormes sacos que se expunham pelos passeios e roupa, sobretudo jeans, que tinham grande procura. Pelas ruas viam-se muitas pessoas que não pertenciam à cidade e pelo seu aspecto percebia-se virem do interior pobre e agrícola à procura de trabalho. Em Beijing Lu só lojas de materiais para artistas havia três, tantas quanto as livrarias, entre as quais a Xinhua, e lojas de roupa de marca, as primeiras que apareceram na cidade.
A modesta zona moderna encontrava-se na parte nordeste da cidade onde se situava a loja da Amizade. Aí se compravam com FEC – Foreigner Exchange Currency, nesse tempo a moeda chinesa para estrangeiros -, os produtos tão queridos aos ocidentais, como tecidos ou vestes de seda, jade e peças de porcelana de Cantão. O Renminbi servia para pagamento de refeições e de compras nas lojas do quotidiano chinês.As avenidas tinham uma via em cada sentido para as bicicletas, quase tão larga como a dos carros, (que poucos eram pois os particulares ainda não os podiam adquirir). Nos cruzamentos, sinaleiros vestidos de amarelo com uma bandeirinha vermelha regulavam o intenso trânsito de bicicletas. Nos passeios, os parques repletos de bicicletas, com um guarda que cobrava dois jiao para delas tomar conta.
Os transportes
O trânsito das bicicletas era imenso, mas estas foram dando lugar às motorizadas. No entanto, desde 2005 que se pretende que as motorizadas deixem a cidade, oferecendo o governo uma quantia por cada uma abatida, não passando mais licenças. Os táxis-motorizadas cobram metade da tarifa dos táxis e conseguem despachar-se melhor dos engarrafamentos mas, no primeiro dia de 2007 deixaram de se ver, pois foram proibidas de circular e enviadas para as outras cidades da província de Guangdong.
Em 1991 existiam apenas três viadutos. Um, atravessando ao nível do segundo andar das casas, e de Sul para Norte, começa próximo da ponte Renmin e ia em direcção à estação de caminhos-de-ferro, terminando um pouco antes, junto ao parque Liuhuahu. Outro, que era a sua continuação e corria paralelo à ilha de Shamian aterrava onde está um dos terminais de trolleys da cidade. O terceiro passava em frente à estação de comboios e do terminal de autocarros e retirava o trânsito para quem se dirigia para o aeroporto, que por essa altura se encontrava no centro norte da cidade.
Em 1993 são demolidos muitos quarteirões e a cidade é planificada com um pensar dos anos 90. Prédios de poucos andares e com um estilo de habitação comunitária começam a ser construídos. Mais viadutos aparecem para dar maior fluidez ao caótico trânsito. Mas rapidamente se percebe não ser esse o estilo pretendido. Assim, desde 1996 começam a aparecer viadutos com vários andares, sendo possível hoje atravessar o centro da cidade longitudinalmente, aos níveis entre os 3o e o 7o andares. Os arranha-céus ocupam os lugares dos quarteirões e a cidade expande-se de uma forma descomunal. A parte antiga perde todos os dias terrenos para os novos arranha-céus.
Encontrávamo-nos na cidade quando é inaugurada a primeira linha de metro a 28 de Junho de 1999. Percebemos ser este transporte o meio mais indicado para quem a quer conhecer, mas poucos eram os que o utilizam. Em Dezembro de 2002 o primeiro lanço da segunda linha é inaugurado e, em Julho de 2003, é activada a segunda parte da linha. Nessa altura, os cantonenses já estão conquistados pelo transporte. No primeiro dia do ano de 2007 voltámos a passar pela cidade. As terceira e quarta linhas do metro já abertas permitem, agora, chegar a Panyu e Nansa, cidades-satélite, antes a mais de uma hora de distância e agora a poucos minutos do centro da cidade. Contámos 59 estações de metro nos placares dispostos nos seus átrios.
Muitas vezes passámos pela Changshou Lu quando visitámos o mercado de antiguidades e do Jade. As casas degradadas chamaram a nossa atenção pelas pequenas preciosidades que nelas encontrámos como janelas com vidros de cor e talha rendilhada nas suas fachadas. Em 2001, após dois anos de obras, já os edifícios estavam arranjados e a rua passou a ser pedonal sendo, a par da Beijing Lu, a principal artéria comercial da cidade. Não faltavam as estátuas de bronze que representavam, entre outras coisas, as profissões da cidade. Ao chegar ao fim da Changshou Lu para Leste abria-se uma pequena praça e mais ou menos escondida para norte víamos, isolada, uma casa com o estilo de arquitectura Lingnan.
Se nas primeiras visitas, às dez da noite, não havia nada aberto e a diversão estava confinada aos bares de alguns hotéis, com apenas um local onde se podia dançar, numa estreita rua perpendicular a Renmin Nan, actualmente a noite estende-se até de madrugada, sobretudo ao longo das margens do rio Zhu e junto ao Hotel Green.
Hoje, Cantão, com longos quilómetros de arranha-céus, cresceu sobretudo para Oeste, preservando no seu centro alguns quarteirões antigos como ponte entre o passado e um futuro que, compartilhado com o resto da província de Guangdong, se une de novo a Hong Kong e a Macau.