Um exemplo de vida

As refeições são como ritos de passagem e o homem é aquilo que come

 

Aproxima-se o meio-dia e a pequena rotunda conhecida como Três Candeeiros está imersa num gigantesco murmúrio. Embutida numa das zonas mais populares e populosas de Macau, não é pela sua beleza que se enche, mas porque dela nasce uma rua que se abre ao mercado, sendo as restantes dedicadas ao comércio popular e restaurantes étnicos.

De saco de pano na mão, Madalena Chan, oriunda do continente radicada há décadas em Macau, caminha com cuidado. As ruas que na rotunda começam ou acabam fervilham de gente, sacos de compras com rabinhos de salsa à mostra, e carros, demasiados para ruas de sentido único, estacionados sobre traços contínuos amarelos.

É a hora das compras num mercado que se estende por vários quarteirões. Os víveres dominam, mas há de tudo: roupa, sapatos, carteiras, vegetais, fruta, taufu fresco, patos assados e galinhas branquinhas, já cozinhadas, assim como carne fresca, colchões e edredões ou toalhas de banho.

Madalena só quer o que é fresco. Raramente compra produtos congelados, como manda a boa tradição chinesa. As refeições são como ritos de passagem e o homem é aquilo que come. Todos os dias ela percorre alguns metros, da porta do prédio onde vive até à rua, do outro lado da rotunda, onde a confusão reina. Melhor casa não podia ter, considera. Quanto mais perto do mercado e das lojas, melhor. Foi assim que lhe ensinaram seus pais. E hoje tem gente em casa para o almoço.

O mercado está cheio de tendinhas metálicas e bancas que em tempos foram improvisadas. Não tem fim à vista. São chineses os vendedores, na sua maioria, e chineses também a maioria dos compradores. Alguns ocidentais procuram alimentos ou roupas e poucos são os turistas que se passeiam por aí, em plena ‘hora de ponta’. Salpicados pelo mercado há pequenos templos e prédios velhos de habitação, com sobrelojas a vender roupa e mais vegetais.

 

Azáfama do dia a dia

 

Por onde andam as pessoas ziguezagueiam também as motorizadas e, para grande incómodo de todos, as carrinhas. Aquelas que aparecem para descarregar até são bem toleradas.

Por vezes anda-se aos encontrões. Murmurar ‘desculpe’ ou ‘perdão’ costuma ser suficiente. Os chineses no mercado quase não ligam aos pequenos empurrões, de concentrados que estão nas suas vidas e no que procuram. Entre os chineses acena-se muito. ‘Olás’ e ‘obrigadas’ dizem-se com um gesto de cabeça e um sorriso. Também falam com as mãos. Os vendedores quase não tocam nos que lhes estendem dinheiro para pagar. O tacto entre estranhos não é coisa para chineses, pelo menos para os do mercado. As moedas atiram-se para as palmas das mãos abertas em forma de concha. Mas entre amigos é comum vê-los de mão dada pela rua, eles com eles e elas com elas.

No mercado, como em muitos outros locais, as filas não se fazem naturalmente. Enquanto uns escolhem a mercadoria, outros esticam as mãos com notas apontadas. Não há ordem de chegada, e quem se despachar é servido mais depressa. Madalena conhece esses truques e quando sabe o que quer não espera pela sua vez. Estica-se também.

De cabelos frisados com madeixas acobreadas sobre uma raiz preta – modernices que as filhas lhe impingiram – Madalena vai de tendinha em tendinha, aos seus conhecidos, para abastecer o saco. Não é muito comum por estes lados, mas ela tem preocupações ambientais. Sempre que pode rejeita os tradicionais saquinhos de plástico avermelhados, de muito má qualidade, que estão nas bancas à disposição de todos.

Quando vê os vegetais verdes numa esquina, acena à vendedora e sorri. ‘Estas hortaliças estão frescas’, diz a patroa. Madalena tira uma nota do bolso e estica-se. Sem mais palavras. Negócio fechado. A vendedora coloca dois molhos grandes no saco. Mais à frente, uns nabos brancos e quase redondos chamam a sua atenção. Madalena pega num, analisa e decide-se. “Quanto custa?”, pergunta. “Um cate” (unidade antiga de peso utilizada na Ásia equivalente a pouco mais de meio quilo, perto de 600 gramas), indica. A conversa é breve, mas percebe-se que são conhecidas. Um molho de salsa é oferta da casa. O saco vai-se enchendo. Crianças andam de um lado para o outro empurradas pelos pais e toda a gente está na compras para o almoço.

 

Vida às claras

 

Os chineses são muito reservados. Quando não conhecem não revelam intimidades. E mesmo entre amigos as conversas medem-se. Claro que não são os únicos, mas surpreendem por serem capazes de fazer coincidir a sua reserva com o viver de portas abertas para vizinhos que não conhecem, mesmo quando as suas casas estão voltadas para a rua e não para um corredor num andar de um prédio. Fechadas apenas as portadas de ferro, qualquer um de passagem pode espreitar.

E um olhar indiscreto pode revelar uma mesa posta com a família sentada, a comer; um casal que olha para a televisão ou um pequeno estudante a fazer os deveres da escola. Também é frequente ver um idoso que até está a olhar para a rua, como se ‘janelando’, surpreendendo quem o espreita. No Inverno mais portas se encerram, mas quando o calor aperta os ruídos de dentro tornam-se parte da rua.

Assim também usa Madalena a sua porta, expondo-se.

Depois de mais umas voltas, e uma peça de carne de porco lacada no saco, Madalena volta para trás, para o caminho que vai dar à rotunda e ao seu prédio. Hoje vai ser preparado um pudim de nabo com cebolinho – bebinca – daqueles que só ela sabe fazer – ‘ló pak kou’ – como lhe chamam os chineses em cantonês.

Um peixe seco que espera na banca da cozinha, as hortaliças, o porco e o arroz branco é tudo o que vai ser servido ao almoço. A mais velha das suas três filhas e uma amiga são esperadas. O pudim será cozinhado mais tarde, porque leva o seu tempo a preparar.

 

Relações discretas

 

A entrada do prédio onde mora é estreita e velha, de azulejos baços. Mas tem um porteiro, que até faz do pequeno quarto, de onde controla as entradas e saídas, a sua casa. O seu almoço já está sobre uma mesa de escritório, de metal acinzentado, numa marmita colocada ao lado do monitor do vídeo de segurança, do telefone e de um monte de jornais. Na parede do fundo do cubículo vê-se uma camisa pendurada num cabide, a secar, e um calendário com as letras encarnadas e uma data do passado recente. Ao canto, uma porta deixa antever metade de uma pequena bacia de loiça e uma torneira.

O porteiro não tem idade e conhece Madalena há muitos anos. Quando o vê, ela faz um sinal discreto com a cabeça. Nada de confianças. Não é gente do seu meio. Ele levanta a mão com que segura os pauzinhos para comer, em jeito de aceno, e pergunta, porque é da praxe, se Madalena já comeu – a forma entre os chineses de se cumprimentarem e de dizer boa tarde. O gesto do porteiro denota uma muito má educação. Os pauzinhos com que se come, na China, não devem ser apontados para lado nenhum senão para a comida.

Chegada ao terceiro andar, Madalena sai do elevador e abre as portas de casa – a de madeira e a portada de ferro. Em frente à sua porta, um vizinho já come, sentado na mesa voltado para a televisão, de onde vozes estridentes gritam, num concurso para ver quem melhor canta. O vizinho olha distraído através da sua porta para Madalena e grita de dentro “já comeu?”

“A minha filha vem cá hoje”, é a resposta, enquanto se descalça, sem se dobrar e ainda com o saco na mão, tirando o sapato de um pé com o outro pé. Depois, empurra os sapatos para dentro de um pequeno armário de contraplacado montado à entrada da sua casa, mas do lado de fora. Os sapatos estão sujos e não devem estar dentro, sempre que possível.

 

Honras à visita

 

No apartamento Madalena anda de chinelos, como quase todos os seus vizinhos, e as visitas são convidadas a fazer o mesmo. As excepções ao seu uso fazem-se quando os convidados não são chineses, e se entenderem que não se devem descalçar. Mas entre conterrâneos, se o dono da casa assim faz, não há margem para dúvida.

Por vezes até se vai para a rua de chinelos ou pantufas, e há quem o faça de pijama, coisa que em Pequim e Xangai as autoridades tentam combater. Macau não tem tantos casos assim…

Ter um pijama na China, há décadas, era visto como um sinal de abastança. Passear-se ou ir à loja da esquina de chinelo era forma de afirmação social. Indicava que em casa se dormia em camas confortáveis. E Macau tem reflexos desses tempos passados, mas não em casa de Madalena, onde se tentam preservar os bons costumes e a educação tradicional.

O repasto vai ser servido na mesa nua, de madeira escura, com as suas taças para o arroz, prato para os ossos e colher de servir individual. O chá é sempre bom, mas as folhas não devem ficar no bule muito tempo porque se lhes altera o sabor. E não se levam panelas para a mesa. Nada disso. Cada cozinhado é servido no seu prato ou travessa.

A filha e a amiga chegam pouco depois. Ambas se descalçam e se servem do pequeno armário. Madalena consegue ouvir a conversa através da porta de ferro que entretanto abre. Não dá beijos. Isso não é coisa que se faça entre chineses. Mesmo entre mãe e filha. Dizem olá, cumprimentam-se apenas. Assim se faz por toda a China. Mas à visita Madalena agarra o pulso e sorri muito, um gesto que demonstra prazer e alegria.

A filha tem os seus chinelos calçados, de pano com sola de borracha, mas a amiga não. Entra descalça. À visita, a dona da casa oferece logo um chá e umas guloseimas chinesas – uma espécie de ameixa seca agridoce, e pergunta pela família, que conhece bem. A filha vai pondo a mesa.

O arroz está quase pronto e só falta passar as hortaliças pelo wok. O corredor do terceiro andar cheira a comida. Um bom cheiro, a soja quente e a vegetais.

 

J. P.