Leonor Seabra. A historiadora que encontrou uma casa em Macau

Leonor Seabra é portuguesa, mas África foi a sua terra até aos 25 anos. A revolução dos Cravos deixou-a perdida e só voltou a encontrar-se em Macau, onde vive há 21 anos e é das mais conceituadas historiadoras. O seu próximo livro está na forja

 

Leonor Seabra está com pressa. Leonor Seabra está sempre com pressa. Entre as aulas de História na Universidade de Macau (UM), as teses de mestrado que acompanha e os trabalhos de investigação que vai fazendo quando as horas parecem esticar, ainda é directora do Centro de Investigação de Estudos Luso-Asiáticos, vice-presidente da Associação para o Intercâmbio entre Macau e a América Latina e sócia de diversas associações académicas. O tempo nunca chega.

Conhece o passado do território como poucos e no entanto nem aqui nasceu. Mais. Só aqui passou cerca de um terço da sua vida.
Leonor Seabra é portuguesa. Mas nunca se sentiu bem em Portugal. África era a sua terra. A então África portuguesa de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, onde cresceu e se fez mulher, de onde nunca pensou sair até chegar o dia 25 de Abril de 1974. Em 1975 estava num Portugal que só lhe era familiar nas férias que ali passava. Portugal não era a sua terra. África era a sua terra. Tinha 25 anos.
Ainda perdida num país estranho, Leonor acabou por decidir seguir engenharia química. “Sempre fui boa a ciências. Acabei por ir para letras, nem me pergunte porquê. Decidi simplesmente mudar de curso e fui para história. Mas ainda hoje sou muito objectiva e concisa na escrita, na oralidade e no pensamento”.
Os anos foram passando e Portugal continuava a ser um desconhecido. Para África não pensava voltar. Sabia que o passado nunca regressaria e o que lhe restava na sua terra eram meros despojos. “Nunca me adaptei a Portugal. Mas acabei por me conformar a lá viver”.
Em 1987 abriu uma vaga no, então, Instituto Cultural de Macau. Leonor e o marido concorreram. Sem razão. Concorreram simplesmente. E a resposta veio positiva. O que não veio nada a calhar.

“Tinha muito medo de não me adaptar a Macau. Já me tinha sido muito difícil resignar-me a viver em Portugal e receava sentir o mesmo cá. Estivemos dias e dias para dar uma resposta”. Passaram-se 21 anos. Leonor esteve nove anos no Instituto onde fez investigação e depois passou a coordenar a biblioteca. De lá passou para a UM. Até hoje. E hoje Leonor ri-se dos seus medos passados. Pois encontrou em Macau o que amava em África.
“Até à liberalização do jogo no território, em 2004, Macau era fantástico. Conhecíamo-nos todos, íamos às nossas lojinhas habituais, onde todos nos conheciam, tínhamos os nossos pontos de encontro. Hoje há gente a mais, lojas a mais, carros a mais, prédios a mais. Tenho muitas saudades do ‘nosso Macau’, mas mesmo assim, prefiro este Macau a Portugal”.

 

História perdida

 

Em meados deste ano, Leonor Seabra vai publicar o seu próximo livro. Desta vez, é a tese de doutoramento, feita através da Universidade do Porto, com o apoio da Universidade de Macau, sob o nome A Misericórdia de Macau (Séculos XVI a XIX) Irmandade, Poder e Caridade na Idade do Comércio. “Foi a UM que se mostrou interessada em publicar a minha tese. Terminei-a no ano passado e estamos neste momento a fazer revisões para publicá-la”. Hoje, Leonor Seabra fala das misericórdias como se no tema tivesse nascido, mas na verdade, nem era assunto sobre o qual se quisesse debruçar. Até falar com Ivo Carneiro de Sousa, na altura professor da Universidade do Porto, hoje vice-reitor do Instituto Inter-Universitário de Macau. “Ele disse-me que não havia nada sobre a Misericórdia de Macau e que estaria muito interessado em publicar um trabalho sobre o tema. Eu fiz alguma investigação, porque só tinha noções básicas sobre a Santa Casa, e acabei por aceitar, alguns meses mais tarde”.
Investigação é o que Leonor Seabra mais gosta de fazer. Estar nos arquivos, procurar, descobrir, escrever. Mas nem sempre é fácil porque o passado nem sempre é bem tratado. Em Goa, o arquivo ainda não está microfilmado. As pesquisas são feitas sobre os documentos originais que não estão minimamente protegidos da humidade, nem do calor. As salas não têm ar condicionado e as páginas dos livros centenários são viradas pela força das ventoinhas. As páginas, miseráveis, vão-se desfazendo nas mãos de quem as quer conhecer. “Ficam sempre pedacinhos dos livros nas mesas. Eu junto-os e deixo-os dentro no meio das páginas. Se um dia forem recuperados, todos os bocadinhos serão importantes”.
O arquivo de Macau está melhor acondicionado, já que muitos documentos são consultados em microfilme e os livros originais estão guardados. Mas aqui a falha é outra. Quando Leonor Seabra fez a sua tese de mestrado, consultou o fundo da Santa Casa da Misericórdia e o Fundo da Marinha. Este trabalho terminou em 1995. Em 2001, já estes espólios não estavam no Arquivo Histórico de Macau. Simplesmente desapareceram. O fundo da Santa Casa ainda se encontra em microfilme. Do da Marinha nada ficou.
Por isso a tese de Leonor Seabra se torna tão importante para o entendimento histórico da influência da instituição em Macau. “A Santa Casa da Misericórdia teve a mesma estrutura em todos os locais onde foi implementada, mas sempre se adaptou às características de cada local. Em Macau por exemplo, foi muito importante a nível económico, político e social”. Era a Santa Casa que emprestava dinheiro, em empréstimos de risco de mar, para viagens de comércio marítimo, e de terra, para investimentos em terras. Foi a Misericórdia que tomou conta das centenas, milhares de órfãos que pareciam nascer e morrer a cada esquina, filhos das escravas e prostitutas de Macau. Também o Hospital dos pobres, mais conhecido como o Hospital de São Rafael, só desactivado em 1975 e hoje ocupado pelo Consulado-geral de Portugal, foi obra desta instituição. “A partir do século XVIII, a Misericórdia foi perdendo a sua influência mas ainda hoje apoia alunos carenciados, tem uma creche e um lar da terceira idade”.
Como o tempo nunca pára, o próximo trabalho de Leonor Seabra terá o título de Historial Demography of Macau and Luso-Asian Population. Com o apoio da UM, deverá estar pronto dentro de três anos e estudará as vivências das mulheres asiáticas que vieram para a Macau, nomeadamente de Goa, Timor e Malaca.