Quando a city se tornou um palco

Como é que se cria um festival de artes usando a cidade como palco, onde o público está em todo o lado e todos participam no processo criativo? Usam-se recursos limitados e ilimitada criatividade, diz a organização do Macau City Fringe. O festival já existe há dez anos, mas está cada vez mais urbano, no desejo de fazer um palco da cidade inteira

 

De 10 a 26 de Abril, passaram mais de 90 artistas por Macau, provenientes da Europa, da América Latina e da Ásia, para apresentar cerca de 45 actividades, entre exposições, dança, teatro, fóruns, vídeos e arte de rua.

A maior parte das actuações decorreram entre a Guia e a Praça de Tap Seac, englobando os bairros antigos de Macau. “Seguindo o percurso, deambulando entre vários espaços artísticos, as pessoas podem apreciar o coração artístico de Macau”, explica a organização, pela boca de Billy Hui, um dos responsáveis.
Com o Fringe Plus, o festival trouxe actividades interactivas, incluindo um concurso de curtas-metragens e um convite do festival a todos os residentes que quisessem adornar a sua janela ou porta com criações artísticas.
Combinar a arte e da vida, foi outro dos objectivos do Macau City Fringe 2009. A Comuna de Pedra, associação artística de Macau, organizou uma dança de 11 horas, encenada por 12 actores, onde o público podia participar. A Associação de Cat Hole, de Taiwan, alugou uma casa antiga no Pátio da Claridade, mesmo no Porto Interior, outrora bairro de pescadores. Viveram com gatos de rua durante dois meses, tiraram-lhes fotos e fizeram uma exposição na antiga casa.
“Outra das prioridades do Macau City Fringe 2009 era o laboratório de ideias, um projecto que pretende levar os jovens artistas a apresentar ideias novas”, explicou a organização. Uma delas foi a pintora e cantora coreana Bomroya que cantou no fundo da Piscina de Hac Sá. O Teatro SunSon, de Taiwan, também entrou no jogo da inovação, mostrando a sua peça premiada Luz e Som, que usou a voz, o corpo e o fogo.

 

Alguns dos muitos

 

Quatro espectáculos mostram a diversidade de performances e de artistas. Não foram escolhidos por serem os melhores. Mas por sintetizarem o espírito do Macau City Fringe 2009.

 

Reis e Rainhas no jardim

 

O Jardim Lou Lim Ieoc é o mais chinês jardim de Macau. Hoje encontra-se encafuado entre prédios, mas mantém a traça antiga, a alma dos lagos repletos de plantas aquáticas, as pontes em curvas, os coretos e a mansão do rico mercador chinês Lou Lim Ieoc, que ali viveu no secúlo XIX.

Às nove da noite, os actores-bailarinos da Beijing Dance/ LDTX começam a andar pelo jardim. Falam sozinhos em mandarim, mas, mal aparece alguém do público, olham-no nos olhos, falam como se fossem entendidos.
De repente, cada um, nos quatro cantos do jardim, abre uma caixa vermelha, veste-se com longos mantos brilhantes, lembrando reis e rainhas. Dançam, cada um no seu sítio, num coreto, numa ponte, no pátio da mansão. A música pára, despem-se, ficam de maillot preto e branco, caminham seguros para o próximo cenário da performance. A música recomeça à volta do lago e grupos de quatro, dois dançarinos seguem a sua coreografia. A noite, a música, as luzes. Os bailarinos fazem já parte do cenário.
Até que a melodia pára de novo. Voltam a vestir as roupas do antigamente e empunham objectos tipicamente chineses, como o pincel da caligrafia ou o papagaio de papel. Seguem então todos em passeio, uns atrás do outros, o público obediente atrás. Chegam ao Pavilhão Vermelho, onde dançam enfim, todos juntos.

“Maybe it’s love”, diz ele.

“Blá, Blá, Blá”, diz ela

 

Só se ouvem as vozes. Os actores espanhóis mimam o amor. O momento da rotura. O momento em que o início já se esqueceu e se pensa que o fim é a salvação.

Os dois discutem no palco montado no Albergue da Santa Casa da Misericórdia de Macau. O espaço está mesmo ao lado da tumultuosa Rua do Campo, mas a calçada à portuguesa e as árvores frondosas, quase fazem esquecer a cidade.
A discussão do casal leva à morte dela. Ele mata-a, sem falar, só mimando. E adormece.
“Love is patient”, diz a voz off.

No sonho, ele está no campo, num maravilhoso cenário natural e encanta-se com um peixe, com um pássaro. Ele renasce como uma flor. Ele deixa-se fascinar tanto pela flor que o coração lhe salta do peito. Ela não quer que ele morra, devolve-lhe o órgão.

“O amor não tem inveja, não é arrogante, nem orgulhoso”, continua a voz.

Do campo, o sonho passa para o autocarro. Ele entra, ela entra. Ela está grávida. Não se conhecem. Os trambolhões do caminho induzem o parto. O filho é dele. Ele está feliz.

O homem acorda. Na mesma cadeira. Mas ela já não jaz ali no chão, pano escarlate fazendo de sangue. Tudo foi sonho. Ela entra, viva. Os dois olham-se. Lembram-se da pessoa por quem se apaixonaram. Já não acham que a salvação está no fim.

“O amor não tem os seus próprios interesses, não se irrita, nem guarda rancor”, diz a voz.
O espectáculo é da Sociedade de Arte Maranatha, de Espanha. Chama-se Talvez Seja Amor.

 

Escorrega na piscina

 

“Out To Productions brinca com imagem em aquarela na piscina infantil da Piscina Estoril”, dizia o panfleto. Esperava-se um espectáculo inovador.

Às oito da noite, o público ajeita-se à beira da piscina vazia do Estoril, atrás do Tap Seac, uma das praças emblemáticas de Macau. Ninguém sabe muito bem o que vai ver. Brincadeira e Paisagem 2.2 beta, é o nome da performance. Um espectáculo de dança, música e arte plástica numa piscina vazia.

A bailarina de Macau está deitada na parte mais funda da piscina, de fato de banho, touca e óculos. Finge apanhar o sol da noite. Dois músicos improvisam com garrafas vazias. Uma artista plástica mistura cores, longe dos olhares curiosos, mas suficientemente perto da vista para suscitar a curiosidade. Entra outra dançarina, de vestido de noite, castanho, lantejoulas. Dançam as duas bailarinas, ao som das garrafas, em duelo, de olhos postos uma na outra. Tudo improvisado.
Ninguém sabe o que vai sair das palhetas dos músicos, as bailarinas não adivinham os passos uma da outra, nem prevêm o que magica a artista plástica.

De repente a pintora começa a rodar uma torneira. Fará parte do cenário? Será só teatro? Mas os canos começam a chorar. Vem água. Um jorro sai do buraco, incendeia a piscina, molha tudo, escorrega até à parte mais profunda. As dançarinas riem, brincam, fingem mergulhar, nadar.

A artista plástica junta-se então ao grupo. Desce as escadas da piscina com algo na mão. São caras sorridentes, recortadas em plástico. Deixa-as no jorro, e elas descem até à profundidade, como quem desce um rio.

A dançarina de lantejoulas coloca uma das caras sorridentes no peito. Sorri.

Uma jovem portuguesa que assistiu à performance não esconde a sua desilusão. “Acho que que foi muito comedido, esperava um espectáculo mais inovador e ousado. Penso que só recentemente os artistas de Macau começaram a libertar-se do classicismo, e aqui, senti que queriam pisar o risco, ser mais audazes nas performances, mas ainda não estavam preparados para isso”.

 

Liberdade controlada

 

A aula começa às 16.00 na Associação Comuna de Pedra, ao lado do Jardim Camões, – onde se diz que Camões terá escrito uma parte d’Os Lusíadas -, e em frente de um ringue de patinagem no gelo, onde crianças aprendem a não cair (ou a cair da melhor forma). No primeiro andar da Comuna de Pedra não há Camões, nem protestos artísticos, nem Macau, e muito menos gelo. O workshop de dança, que a bailarina brasileira, Paula Águas, já deu um pouco no mundo inteiro, chama-se Controlo e Liberdade. Controlo de movimentos e liberdade de expressão.
“Quero que os alunos se sintam mais livres e disponíveis para se exprimirem corporal e emocionalmente”, explica a professora. “Relaxa a boca, sente o peso da cabeça, aceita o tamanho do corpo”, vai ela dizendo à meia dúzia de alunas, chinesas e portuguesas. Durante a primeira hora, as raparigas fazem exercícios de relaxamento, mas também de força. O resto do tempo é usado com controlo de passos, mas improvisação de braços, de expressão facial e de humor. “Coloquem as mãos no peito. Andem pela sala. Dentro destas quatro paredes vocês não precisam de ser fortes. Só precisam de ser vocês mesmas”. A voz brasileira de Paula Águas ecoa forte e convincente no final da aula. “O meu trabalho é a minha vida, e a minha vida é a minha dança. A minha dança é a minha saúde”, admite de sorriso aberto.

 

A história do Fringe em Macau

 

O Macau Fringe começou em 1999. Durante anos, o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) criou um festival para desenvolver a criatividade dos residentes de Macau. A partir de 2007, o IACM começou a convidar organizações artísticas não-governamentais, sendo que, este ano, o Fringe foi maioritariamente organizado pela Macau Music Power. No ano passado, o conceito de usar ‘a cidade como palco’ foi começando a aparecer e de Macau Fringe, o festival passou a ter o nome de Macau City Fringe. Em 2009, O Macau City Fringe usou a história popular do porco-espinho como imagem de apresentação. Dois porcos-espinhos estão quase a abraçar-se, o que, segundo a organização do festival, leva o público a interpretar a imagem como quiser. “Este design juntou as características do City Fringe, o seu lado aventureiro e a sua vontade de ir sempre ir além, não abandonando o equilíbrio”, explica a organização pela boca de Billy Hui, um dos responsáveis.