A medida certa

São dias lentos para o senhor Mak, homem de ampla figura e gestos rápidos num corpo demasiado arredondado. Acostumado a mandar, Mak interrompe o jogo de cartas com a natural autoridade de quem está em casa. E está. A sua casa é o seu ateliê – uma longa divisão num rés-do-chão sem fundo à vista, com um balcão de um lado e mesas de tampo alongado do outro, onde material e máquinas de costura aguardam o roçar das sedas. As suas mãos são de ouro

 

 

Nas suas horas cada vez mais vagas, Mak convida os amigos e alguns vizinhos para jogos de cartas. As tardes são passadas ao som de risos e lamentos, ganhos e perdas, e normalmente sem interrupções. “Havia muita gente que vinha cá, mas o negócio está mau. As visitas minguam.” O lamento não se deve ao jogo. Deve-se à falta de clientes, já que Mak é costureiro habituado às carícias da seda e aos corpos quentes das clientes que se deixam mesurar sem fim, em busca da cabaia ideal.

Na sua loja passaram alguns dos corpos mais bonitos e vaidosos da cidade que ele teve de revestir com seda. E que outro tecido pode fazer jus ao mais delicado dos vestidos?

“Fiz nove edições do concurso Miss Macau nos anos

80 e 90! Vesti as

‘miss’ com os meus

‘cheong sam’”, recorda,

sem prazer especial ou orgulho acrescido, como quem aceitou, em troca, uma reforma forçada em jogos de cartas. “É a minha vida, mas hoje, contando com duas ajudantes, não encontro nem quem queira aprender a costurar, nem quem queira mandar fazer roupa”. Especialmente os ‘cheong sam’ que lhe deram fama. O termo cantonês representa o tradicional vestuário chinês, em tempos idos de mangas largas e até aos pés, usado por homens e mulheres.

Habituado à fita métrica pendurada no pescoço, Mak mantém o hábito de chegar a mão à fita, mas ela não está lá. Está pendurada numa parede, numa espécie de retiro.

“Aprendi o ofício da costura neste mesmo local, com o meu mestre que veio de Xangai, há mais de 70 anos. Quase só lidava com a seda. Ele já morreu e eu fiquei com o negócio”. Um negócio que de forma infalível serve de barómetro à economia: “Quando as pessoas têm menos dinheiro ou mais receio de o gastar mandam fazer menos roupa e até casam menos!”, diz Mak, qual economista em plena acção. Nos casamentos a cabaia tem um papel importante. Em seda de um vermelho garrido, é uma constante.

A sua loja é velha, com muita madeira à vista e fica numa ruela estreita no centro da cidade. Quase não se dá por ela não fossem as fotografias de algumas ‘miss’ Macau coladas na montra, vestidas em ‘cheong sam’ de cores garridas, todas coroadas, de ceptro na mão e sentadas de lado no trono. Uma imagem de uma das irmãs Pedruco de cabaia vermelha salta à vista. Entrou no ‘Guiness Book of Records’ o feito da família macaense Pedruco: gerar três filhas que se tornam ‘miss’ Macau em edições diferentes. Mak moldou os corpos de todas com seda.

Por trás da montra, já com o vidro sujo e baço, estão guardadas cabaias em seda para cerimónias, festas ou eventos mais banais, embrulhadas em sacos de lavandaria de plástico transparente. Os vestidos aguardam as suas donas.

Exige perícia e jeito moldar a seda mole aos corpos, cozê-la sem enrugar a sua textura fina, cortar os moldes e, acima de tudo, debruar. “Debruar, sim, é o mais difícil. Os meus olhos cansam-se rapidamente. É tudo feito à mão para ficar bem feito. Ainda por cima a seda não é fácil de cozer…”

E se uma ‘miss’ se veste facilmente, o mesmo não acontece a quem não tem uma figura esbelta: “Entre os meus clientes, que começam a escassear, tenho muitas senhoras chinesas, mas também portuguesas, e só depois os ‘estrangeiros’”. Entenda-se por estrangeiros os turistas ou residentes na sua maioria ‘loiros’ e de olhos ‘azuis’. “As mulheres ocidentais são maiores do que as chinesas e normalmente pedem-me para fazer ‘cheong sam’ em seda preta ou cores mais escuras. Eu faço o que elas querem, mas na cultura chinesa essas cores não são as mais apreciadas!”, diz. Para os chineses, em ocasiões de festa e de formalidades, o vermelho impera.

 

Leveza formal

 

Para as concubinas, imperatrizes e realeza da China antiga vestir de seda era símbolo de elegância e distinção, de elevada posição social. As cabaias, ou ‘cheong sam’ variavam consoante o grau do portador. Hoje em dia, e depois de ter sido alvo de mudanças radicais, uma cabaia é um símbolo de tradição passível de ser usada por todos os estratos sociais. O que mais parece importar no momento de escolher o modelo do ‘cheong sam’ é a sua cor e as aplicações feitas à mão que servirão para abotoar a peça. Tocado este ponto, os olhos de Mak parecem ter despertado de um sono induzido: “De facto, esta é uma peça de roupa para ser usada durante uma cerimónia, mas hoje em dia fazem-se ‘cheong sam’ mais curtos para serem usados no dia-a-dia”. Esta peça veste-se sem calças.

A versão moderna do ‘cheong sam’ que hoje conhecemos surgiu nos anos 1920 em Xangai. É uma versão mais ajustada ao corpo, com rachas laterais. Antigamente, o ‘cheong sam’ escondia as formas femininas. Mas Mak só conheceu a versão moderna e lembra-se bem da versão mais curta: “Até há uns anos era usada pelas funcionárias dos bancos. As meninas vinham cá fazer os uniformes”, acrescenta, com um riso malandro nos olhos molengões. “Eu faço o modelo que a cliente quiser. Mas as variações são ao nível dos colarinhos, mangas, cavas e forma do fecho, que pode ser lateral, a cruzar o peito na diagonal ou a acompanhar a linha do busto”.

O detalhe que mais fascina o costureiro, ainda hoje, diz respeito à forma como a peça é abotoada quando não se opta pelo fecho lateral que pode ser com fecho ‘éclair’: “Os fechos ou botões de pano são a marca de distinção do ‘cheong sam’ à falta de um tecido fabuloso. São feitos à mão, em forma de flores ou outros motivos e fazem-se por encomenda. “Há muitos já feitos. Também os vendo, mas é como ir ao supermercado.” Regra geral esses fechos são feitos em cartão e forrados com a seda do vestido. Há quem opte por colocar pérolas, contas de vidro ou de cerâmica, a fazer de botões: “O mais importante é ter a seda. Isso faz ou desfaz uma reputação”, diz Mak.

 

Ponto perfeito

 

A seda é dos tecidos naturais mais vendidos em todo o mundo. Mas escolher uma peça de seda não é tão fácil como parece. Quente no Inverno e fresca no Verão, os tecidos de seda natural avaliam-se pelo peso da peça, grão, grau de pureza e forma do ponto em que a tela é tecida no tear.

As variedades mais conhecidas da seda são o chifon, a Georgette, o ‘crèpe de Chine’ e a organza. A Georgette é uma seda em ponto tafetá, mais dura e com superfície enrugada. Não é ideal para o ‘cheong sam’. A organza é leve e demasiado fina, muito difícil de manejar e rebelde frente á agulha. O chifon é fino e leve, uma boa opção para um ‘cheong sam’, mas o ‘crèpe de Chine’ parece ser o tecido de seda ideal. É ‘limpo’ e liso, brilhante, fino, suave, leve e puro. É o que Mak mais gosta.

A seda é um tecido para mãos experientes. Um ponto mal feito marca a peça. Pode inutilizá-la. Por isso Mak coze à mão quando lida com peças ‘sublimes’: “Em dois dias tenho um vestido feito. Eu estou habituado a lidar com a seda antiga, feita antigamente, que era mais grossa e rude. Estamos a falar dos parâmetros da seda, claro. Mas o tecido de seda feito hoje em dia é muito mais suave e fino, acho-o muito mais bonito. Cozo à mão quando umas dessas peças muito boas surgem. E a seda boa é caríssima!”

Está fora de questão fazer um ‘cheong sam’ sem ser em seda, apesar de Mak reconhecer que se fazem em vários tecidos. Mas essa não é a tradição: “Hoje já se usam os ‘cheong sam ‘ mais justos ao corpo, com rachas mais ou menos grandes e com cores que não correspondem à tradição. Não usar a seda já me parece mal…”

O que não fica mal, embora possa dificultar o trabalho do ‘artista’, é ter uma cliente menos elegante a querer entrar num ‘cheong sam’ alheio. Uma regra de três simples feita por Mak: “Estamos a falar de uma peça de vestuário que representa a elegância e a feminilidade. Deve ser sempre feito à medida do corpo da pessoa, que assim se torna elegante não importa o seu peso. Não podem vir aqui com um ‘cheong sam’ comprado numa loja qualquer e pedir-me que o adapte. Posso fazer isso, mas nunca fica tão bem como um feito de raiz.”

Para Mak, e provavelmente para todos os chineses respeitadores da tradição, o ‘cheong sam’ em tempo de cerimónia deve ser vermelho, “acompanhado por um xaile e saltos altos, com a racha até ao joelho.”

 

A cabaia

 

Foi nos anos 20 do século passado que costureiros em Xangai, munidos de máquinas de costura fabricadas no Ocidente, começaram a delinear novas formas aos corpos das mulheres chinesas. A moda ocidental marcava pontos. Era o furor. À tradicional cabaia, usada por homens e mulheres, que consistia em vestes de mangas largas e longos torsos, foi-lhe dada uma nova vida e imagem, passando a ajustar-se ao corpo das mulheres, a revestir-se de rachas ousadas e a marcar formas cada vez com menos pudor. Era uma sedução. Feitas de seda, representavam o requinte e a delicadeza. Ao material suave associava-se a leveza da mulher oriental – uma imagem de fragilidade que marcou o imaginário do ocidental. A seda em muito contribuiu para o fenómeno. A Revolução Cultural forçou um hiato na moda na China, mas o germe da inovação não morreu. Com o fim dos fatos ‘Mao’ as cabaias, ou ‘cheong sam’ como são conhecidos em cantonês, voltaram a imperar.

Uma boa cabaia tem de ser feita à medida e adaptada à ocasião que vai servir. A moda ocidental actualmente reinventa os modelos tradicionais dessa indumentária delicada e na China começam a ser introduzidos detalhes inéditos, mas o que marca esse símbolo de feminilidade oriental é o tecido com que é feito. Hoje em dia a cabaia pode ser vista como um dos símbolos da China.

 

Em dúvida o vermelho

 

No número 129 da Avenida Almeida Ribeiro está a Weng Tai, nome conhecido de todos os que procuram a peça de seda para a cabaia perfeita. Há 40 anos a vender sedas, brocados e tecidos finos, os empregados da Weng Tai conhecem gerações das mesmas famílias, habituadas a ir aos seus balcões para pedir metros de tecido nas vésperas dos dias mais importantes das suas vidas, porque a roupa tem de estar à altura.

Entramos a perguntar pelo melhor tecido para a cabaia fantástica. Os risos elevam-se. “Isso depende do que cada um quer”, responde um dos empregados. Rapidamente, vários se juntam a uma vitrina no fundo da loja, onde, protegidas apenas por uma lâmina de vidro, rolos de tela colorida se abrigam. “Aqui estão algumas sedas caras e boas”, diz outro empregado. “É o que procura?” Não sabemos. Qual é a seda, ‘aquela’ que fará o ‘cheng sam´? “Há quem desenhe e pinte sobre seda e depois mande fazer a cabaia”, diz o decano dos vendedores, o patrão, como lhe chamam os outros. A resposta interessa-nos. “Não é só a seda que faz a cabaia. O corte, por vezes é mais importante”, continua o decano. “Há sedas mais finas, mais duras, puras ou brocadas e há a seda de Xangai, com fama e das melhores do mundo.” E acrescenta: “As sedas de cores garridas com bordados em relevo são muito populares nas cerimónias formais chinesas e as sedas com lantejoulas e rendas começam a ter muita saída.” E as sedas pintadas à mão? “Em Macau já não há ninguém a fazer isso! Já ninguém pinta sobre seda… mas os costureiros locais são muito bons a fazer ‘cheong sam’, por isso há muita gente de Hong Kong que manda cá fazer as peças e vem a esta loja comprar as sedas.”

Os demais empregados ouvem com atenção, como se estivessem numa aula, as palavras do decano. “Os homens também usam sedas para os seus trajes mais cerimoniosos, mas em vez de cores garridas preferem os brancos, beijes e cores mais claras”. Qual a sua cor favorita numa cabaia? “Sem dúvida o vermelho. Muito vermelho. É assim que a mulher chinesa se apresenta numa cabaia…”