Mudanças de rosto em Chengdu

Ao assistir ao espectáculo de teatro das máscaras onde o actor num ápice aparece com outra face, revemos as mudanças que foram acontecendo ao longo das nossas viagens a Chengdu, capital da província de Sichuan. Das recordações de 1991 trazíamos uma cidade em reconstrução, onde quarteirões inteiros eram deitados abaixo, quedando-se apenas a praça Tianfu, com a estátua de Mao que ergue o braço para Sul no sentido da avenida Remin.

 

Uma série de prédios permitiam visualizar o que será a nova cidade. Passeando sem destino, o nosso olhar petrificou ao assistir no meio da rua, (local para onde os chineses expandiam as suas casas), ao arranjar das finas enguias que iam saindo de um balde cheio de sangue. As enguias eram espetadas num tábua, uma a uma, e com a faca abriam-se a meio e retirava-se-lhes a espinha dorsal, deitando-lhe depois um pouco de sal. Assim ficavam prontas para serem cozinhadas, servidas num molho vermelho gorduroso e picante; um petisco mais tarde provado.

A vida quotidiana de Chengdu surpreende-nos, ainda hoje. Durante a manhã é ver os jovens alunos em uniforme e de bicicleta a irem para a escola, assim como os empregados das lojas comerciais que até às 10 horas criam um movimento intenso pelas ruas. A partir daí são os idosos que tomam conta dos parques e ruas da cidade. Passeando os netos e às compras nos mercados para as refeições do dia, a cidade parece adormecer por volta das onze e meia, quando o calor começa a apertar.

O ruído da rua Taisheng, especializada no negócio dos telemóveis, com campanhas promocionais que enchem a rua de sons, serviu para refrescar do Sol quente dos finais da manhã e encontrar pessoas.

 

A hora da comida

 

À famosa cozinha de Sichuan, muito picante, boa para suportar os dias de intenso calor, intercalávamos as refeições vegetarianas, que com um requinte sublime imitava sabores variados. Um contraste com o peixe e carnes frias banhadas num molho vermelhão que nos colocou as papilas gustativas sem capacidade para saborear o que comíamos. Na casa de chá onde provamos os petiscos picantíssimos de Sichuan passamos um princípio de tarde de forma relaxada. Em cadeiras e mesas de bambu, nos jardins, as pessoas sentadas à sombra das árvores a jogar “mahjong”, “go” e xadrez chinês, vão conversando enquanto bebem chá.

O parque Remin, no centro da cidade, é um lugar atractivo, bem tratado e onde pudemos apreciar a feitura de trabalhos com açúcar caramelizado que acabavam na boca dos mais gulosos. Trabalhos que mais tarde vimos serem realizados e com outras técnicas, como a do sopro que assim cria volume, num local ao lado do templo Wuhou. Lugar onde foi recriada a antiga Chengdu, tal como acontece noutras partes da cidade. É o caso da rua de Qintai feita para um turismo de melhor qualidade onde, entre as duas portas do dragão (“longmen”) que definem o tamanho da rua, estão muitos hotéis e lojas que vendem seda, prata e chá.

Passeando fomos dar a um pequeno pagode de madeira que finalizava a rua e que abre para o parque Baihuatan. Ao lado, o parque Wenhua. As esplanadas das casas de chá, sempre com mobiliário de bambu, estão também aí repletas e o “mahjong”, assim como os jogos de cartas, predominam. Passam-se assim as tardes em amena cavaqueira, ao som de um grupo a ensaiar excertos de ópera.

Findo o dia, aproveitamos para às oito da noite ir assistir a um espectáculo de teatro de máscaras, que tínhamos visto pela primeira vez num filme de Chen Kaige.

 

Mosteiro do budismo Zen

 

O mosteiro de Wenshu, um dos quatro mais importantes templos de budismo Zen da China, teve como antigo nome Templo de Xin Xiang. Fundado durante a dinastia Sui foi nos finais da dinastia Ming destruído por guerras, mas durante o reinado do imperador Kangxi da dinastia Qing recebeu Ci Zhuo, um monge budista determinado a reconstruí-lo. Devido à sua integridade moral e determinação, assim como à crença que este monge tinha no espírito do Buda Wenshu, as autoridades e a população contribuíram para a sua reconstrução. Passou incólume pela Revolução Cultural e hoje, com 6,67 hectares de terreno,  contém cinco templos. Nos anos mais recentes aí têm sido construídos edifícios como a Academia budista Kong Ling que prepara monges, bibliotecas, instituições de caridade e o pavilhão de conferências Wenshu. Para além deste lado religioso, o complexo tem uma componente comercial que o auto-sustenta, como o hotel Shangke Tang e lojas de recordações, além de um restaurante vegetariano. É este restaurante que leva muitos turistas chineses e estrangeiros a visitar o mosteiro à hora do almoço e a lista de pratos tanto em língua chinesa como em língua inglesa, surpreende. Na lista consta bife, carne de porco, galinha e peixe – para um restaurante vegetariano é um contra-senso, mas desengane-se quem assim pensar já que estes pratos são todos feitos de soja. A transformação da soja em “tofu” (queijo de soja) e este conjugado com os molhos de soja imitam os sabores e texturas das carnes. As cervejas, vinhos e sobremesas da lista repetem o mesmo princípio.

JSM

 

No teatro em Chengdu

 

No teatro Jinjiang assistimos a um espectáculo variado onde, além de passagens de Ópera de Sichuan, teatro de sombra e de títeres (marionetas), o mais esperado momento chegou quando os actores, num ápice, mudam as máscaras do rosto e com uma velocidade que só podia ser magia, aparecem com outra cara. Mas o mais espantoso ocorre quando os títeres também mudaram de face.

As livrarias que em 1997 se encontravam na praça Tianfu, na parte de trás da estátua de Mao, agora terminadas as obras de remodelação, foram dispersas pelos centros comerciais.

Com o fim das obras que trouxeram um novo rosto à cidade, o centro de interesse em Chengdu passou para o conhecimento da cultura autóctone dos Antigos Shu. Desde 2007  que se criou o museu de Jinsha pra contar a sua história. Situado a noroeste da cidade, aí é-nos explicado que para além da civilização do rio Amarelo evoluiu paralelamente a cultura dos Antigos Shu no vale de Chengdu.

 

Palácio taoísta da Cabra preta

 

Segundo a lenda, Lao Zi com 80 anos rumava para Oeste, quando se aproximou da fronteira. Yin Xi, o guarda de fronteira da passagem Hangu observava as estrelas e respirava o ar puro no terraço da sua casa construída na montanha Zhongnan, actual província de Shaanxi, quando observou uma massa de ar púrpura, vinda de Leste. Reconhecendo que se aproximava um ser sagrado esperou e assim se encontrou com Lao Tzé, como também é conhecido.

Yin Xi reconhecendo o sábio não o deixou partir para Oeste enquanto não deixasse escrito um livro para que a sua sabedoria de vida pudesse ser perpetuada. Lao Tzé tinha-se, até então, negado a escrever a sua filosofia, mas aí aceitou, deixando o “Tau Te King” ou “Dao De Jing” – “Livro da Via e da Virtude”, com aproximadamente cinco mil caracteres em forma de 81 poemas. Esse livro de filosofia influenciou todos os domínios da vida chinesa, desde a medicina à religião.

Após instruir Yin Xi na filosofia Dao, Lao Zi despediu-se dizendo-lhe que renasceria três anos depois no mercado onde se vendiam cabras pretas e depois partiu montado num búfalo, como muitas vezes o vemos representado.

Yin Xi, por essa altura, chega a Chengdu e seguiu um rapaz que tinha uma cabra preta até a sua casa. Aí, espera que Lao Zi renasça. Na dinastia Tang foi construído o palácio taoísta  da Cabra Preta para comemorar esta história.

 

JSM