Coração de Bambu

  1 Símbolos O bambu é antes de mais, e para mim, um símbolo pessoal. Um grito de guerra, mas silencioso. Uma paixão de vida. Já há muito que me rodeio de bambus e se não os planto nem os pinto à maneira dos poetas e pintores das dinastias Tang e Song é só porque […]

 

1 Símbolos

O bambu é antes de mais, e para mim, um símbolo pessoal. Um grito de guerra, mas silencioso. Uma paixão de vida. Já há muito que me rodeio de bambus e se não os planto nem os pinto à maneira dos poetas e pintores das dinastias Tang e Song é só porque me falta a perícia, não porque me falte a vontade. Assim vou-me contentando com uns parcos raminhos enquanto idealizo bambuais.

O bambu é belíssimo. Na China serve para quase tudo, embora a sua função máxima seja não servir para nada. No entanto, lá vai servindo e cumprindo o destino de todos os outros seres vivos. É nobre material de construção, de alimentação, de registo…Tem funções estéticas definidas, já que enfeita muito e bem. É um dos pilares da estética ecologista chinesa. Enquanto material é veículo privilegiado de ligação ao sagrado. Quem não se recorda dos paus de bambu (賂簽 zh㉡ qiÆn), utilizados nos templos para efeitos de adivinhação? Além disso, entra nas principais festividades chinesas na forma de panchão para expulsar os demónios. É uma norma de vida e um símbolo da idade, tanto da jovem como da que se estende a perder de vista. Ele é um ser completo, um microcosmos, e por isso ora o vemos exterior, flexível; ora interior; ora estético, belo; ora ético-moral, na forma de coração vazio e modesto. Tem muitos dons, sendo imagem privilegiada de uma postura filosófico-religiosa. Numa pintura, junto a um vaso (pØng 틸), transmite os votos de paz (pØng 틱) e tranquilidade. Na religião budista o ramo de bambu é companhia inseparável das mãos da Guanyin Vestida de Branco (겜觀稜), a Bodhisattva da Compaixão. O bambu (zh㉡賂) tem por homónimo a palavra prece (zh㉣龍). Ele liga o Céu e a Terra, sendo um modelo de vida, uma reza sem palavras a outra forma de existir.

 

2 Poemas e pinturas

 

Muitos foram os poetas e pintores chineses que cantaram o bambu. Interessante é observar as situações poéticas para os cânticos.

Em Wang Wei [珙維 (701-761)] da dinastia Tang (鉗), poeta que se considera discípulo do sexto patriarca do Budismo Chan (禪), Huineng (쁨콘), vemos o bambu a surgir num cenário de grande desprendimento dos bens e riquezas materiais. Sabemos que este poeta e pintor, considerado desde a dinastia Song (芥) o fundador da pintura da Escola do Sul, e do qual não nos chegaram pinturas que possamos considerar autênticas, foi classificado como o maior pintor paisagista da dinastia Tang. Pela sua filiação religiosa ao Budismo Chan, mais conhecido pelo nome japonês de Zen, e pelas cópias que nos chegaram dos seus trabalhos, percebe-se que para ele a pintura era a expressão de um estado de alma, onde o pintor manifestava o espírito em casamento com a natureza.

Veja-se o seguinte poema de Wang Wei, traduzido por António Graça de Abreu, e sugestivamente intitulado: Escrito numa tarde de Primavera, no Pavilhão dos Bambus, para o mandarim Qian, de regresso a Lantian

 

Serena a noite, cessou todo o movimento,

de vez em quando, um cão ladra na orla da floresta.

Recordo os homens que habitam a montanha,

Isolados, lá longe, a oeste da torrente.

Tu tens sorte, vais partir ao nascer o sol

e despreocupado colher fetos e cogumelos

 

Imaginamos agora, com mais facilidade, Wang Wei sentado no Pavilhão dos Bambus, num aromático e acolhedor fim de tarde primaveril, em comunhão de alma com a natureza, antecipadamente saudoso do cenário que aguarda o amigo Qian. Este, também ele poeta e mandarim, vai partir para Lantian, a estância de férias campestre da corte de então, enquanto Wang Wei terá de voltar à cidade e aos milhares de afazeres que lhe enchem o coração, afastando-se do único estado de espírito que o deixa em verdadeira harmonia consigo mesmo: o vazio que lhe permite a fusão com o Ser Natural.

Um outro poeta Tang, Liu Yuxi [劉悳錫(772-842)], traduzido por Xu Yuan Zhong,  canta-nos a Canção Ramo de Bambu (I, II), que também nos recorda o desprendimento doloroso do coração, quando confrontado com a vacuidade das paixões terrenas:

 

Canção Ramo de bambu 

 

O rio passa entre os chorões

O meu bem num barco canta.

O Oeste coberto de chuva, o Este de sol.

A profundidade do amor do meu bem é a deste belo dia.

 

 

Canção Ramo de Bambu (II)

 

Acima na montanha rubra florescem botões de pessegueiro;

Abaixo as margens são lavadas pelas águas da corrente;

Os botões rubros murcham rápido como o amor do meu galante,

O rio e a minha tristeza: ambos fluem para sempre.

 

Quem canta, modesto e vazio, aceita a sua sorte, a perda do seu efémero amor. Mas ele sabe que embora vá ficar sempre triste e sinta o buraco material que o sentimento lhe causou, num outro registo, o espiritual, será como um ramo de bambu, que não morre, porque o seu coração permanece vazio e, por isso, e só por isso, poderá fluir sempre. Numa leitura um pouco esotérica, perde um bem para ganhar outro maior, pois troca uma afeição terrena por uma afinidade natural: ele, ramo ou coração de bambu, e o rio fluirão em conjunto, possuindo o mesmo ritmo vivencial. A perda do amor alargou-lhe a dimensão, que de humana se transmutou em cosmológica.

 

Um outro grande poeta Tang, muito amigo de Liu Yuxi é Bai Juyi [白居易(772-846)], que oscilou entre mandarim inferior e superior. Também a Bai Juyi pesam as obrigações mundanas. Preferiria plantar bambus a ser oficial num ambiente citadino, como nos diz em Plantando Bambus, onde no primeiro verso claramente afirma que: não tenho jeito para mandarim da cidade. E um pouco adiante: Às vezes, quando o trabalho é pouco,/passeio em redor do bambual até ao pôr-do-sol.  Sente-se que o poeta vive um conflito interior: por um lado está inserido num mundo organizado em que participa na categoria de oficial, mantendo um cargo elevado, mesmo quando é mandarim inferior; por outro a sua alma quer fugir do ambiente citadino e dedicar-se à contemplação e meditação, porque para ele uma das maiores felicidades, percebe-se bem, é não servir para nada, deixando-se estar em união com a natureza, eis a maior sorte, que ele reclama para os bambus, cujo vazio interior é favorável às subidas celestiais. Diz-nos então em: Na janela, olhando os bambus:

 

Porquê cortar e fazer uma flauta?

porquê aparar para uma cana de pesca?

Murcharão ervas e flores,

Eles, bonitos, baloiçando sob flocos de neve.

 

Aqui está em causa a ideia de utilidade. Qual é a maior utilidade? É não ter utilidade social nenhuma, porque o maior bem está do lado da natureza. Os bambus merecem um tratamento distintivo, já que a sua natureza lhes oferece características excepcionais. Enquanto as outras plantas e flores murcham, eles permanecem um manifesto naturalmente estético por entre o branco da neve. A sua elevada e resistente postura natural devia pô-los a salvo de utilidades menores, de compartimentações e mortes antinatura, mas nem mesmo eles se libertam da instrumentalização, servindo de meios quando possuem espontaneamente a dignidade de fins.

Também os pintores da dinastia Song (960/1279) têm como tema privilegiado o bambu. Porém, é preciso não esquecer que nas pinturas de todas as dinastias ele figura como uma das quatro plantas nobres, entre o botão de ameixieira, o crisântemo e a orquídea. O bambu despe-se de folhas, porque tem o coração vazio, mas pela sua resistência, simboliza uma mente unificada. Permanece sempre verde, o que o transforma numa das imagens da longevidade do País dos Dragões. Verde em todas as estações, até no Inverno ou, numa leitura antropomorfizada, resistente em todas as idades. 

 

Provérbios

 

Gostaria de destacar três provérbios entre os mais conhecidos dedicados ao bambu. O primeiro é  material: 1) 賂門對賂門,컁門對컁門 (zh㉡men duº zh㉡men, m㉣men duº m㉣men) Cada qual com seu igual ou, numa tradição literal, o bambu com o bambu e a madeira com a madeira.

Os provérbios são polissémicos, por isso interpretemos este.

Salta-me a vista a ideia de natureza: cada qual com seu igual, porque nem todos são iguais. Uma natureza de bambu é muito diferente de uma de madeira. E não vale dizer, à boa maneira daoísta, não é melhor nem pior, é diferente. Na minha humilde perspectiva há que ter como referente a completude. Uma natureza como a madeira é cheia, não tem vazio, por isso é sólida, mas muito menos resistente do que o bambu, que é mais completo, já que encerra em si o espaço do ser e do não ser, do ter e do vazio. Ainda que a madeira se transforme, é com bem mais dificuldade do que o bambu, que verga, e não parte, distinguindo-se pela sua maleabilidade. Não esqueçamos que esse mesmo bambu é material utilizado para rezar nos templos, mas também nos andaimes das construções.

O segundo provérbio é social. 2) 瓚賂難書 (qºng zh㉡ nÐn sh㉠) pode ser traduzido por: Não há bambu que chegue ou, mais literalmente, mesmo com todo o bambu será difícil escrever. Este provérbio, uma vez que se refere à organização social, pede contextualização. Antes da invenção do papel em 105 d.C por Cai Lun (꽐倫), os chineses escreviam em ossos, carapaças, seda e, também bambu, que era então o material mais utilizado para a escrita. Nele eram registados, por exemplo, os crimes praticados por tiranos, usurpadores, etc. Entre os criminosos políticos, celebrizou-se Wang Mang (珙챌), que viveu durante a dinastia Han do Oeste [鮫漢( 206 a. C- 24 d.C)], matou o imperador, usurpando o trono. Quando foi punido, um dos generais terá proferido a respeito dele: Não há bambu que chegue. Hoje o dito é aplicado a todos os criminosos de longo cadastro. Veja-se que, numa interpretação possível, o bambu tem uma função correctiva, ele é o material moral, a memória da acção, um dos ramos da lei, o amigo da humanidade e da justa organização social.  O terceiro provérbio é espiritual. 3) 禽唐냥賂 (xiÞng yŊu chIJng zh㉡) e significa ter bambus no peito. Há pelo menos duas versões deste provérbio passadas com poetas e pintores distintos, sendo a mais conhecida a que atribui o dito ao famoso poeta e pintor da dinastia Song, Su Shi [囌軾(1037-1101)], também conhecido por Su Dongpo (囌東팃). Este poeta pintava muito bem bambus e a certa altura escreveu que ao pintar um bambu, o artista deve já possuir uma imagem viva dele no peito. O provérbio generalizou-se devido a um amigo, Yu Ke, que também era poeta e pintor. Como ele se excedesse na pintura dos bambus, os amigos começaram a dizer que Yu Ke já tinha um bambu no peito, servindo-se para tal da expressão de Su Dongpo. Podemos interpretar este provérbio em três registos. O primeiro, meramente intelectual, aconselha qualquer pessoa a ter uma ideia, um plano, bem formado, antes de passar à acção. O segundo, o registo filosófico daoísta, em que somos advertidos de que só num estado de total unificação com a natureza realizamos um trabalho, artístico ou não, bem feito. Porque a natureza do pintor, em termos macrocósmicos, é a mesma do bambu. Se ele a entender intuitivamente e não fizer recurso às suas capacidades racionais e discursivas, perceberá o laço de união que existe entre ambos. Deixou crescer bambus no peito e só deste modo realizou uma verdadeira obra da arte. O terceiro registo é, além de daoísta, budista Chan (禪). Aqui o deixar crescer bambus no peito significa esvaziar a mente, adoptando a postura meditativa correcta. Só quando a mente está vazia, pode o pintor reflectir como um espelho toda a natureza, incluindo a natureza essencial do bambu.

 

 

O nada, o vazio e a não-acção

 

O Bambu remete-nos para noções que habitam o território filosófico. Em primeiro lugar, para a de vazio. O bambu é vazio no seu interior e, por isso, é a imagem privilegiada de um coração modesto. No entanto, vazio não significa indiferente. Ter um coração vazio não quer dizer do ponto de vista filosófico chinês estar-se nas tintas para tudo e para todos. Vazio (虛 x㉠) não significa igual a nada (無 w㉡), embora seja criado pelo nada primordial. E ambas as noções desempenhem papéis fundamentais, por exemplo, na cosmologia daoísta. O nada é a condição de possibilidade para que os dez mil seres (萬膠), todos os seres, venham à existência. O nada é o par complementar do haver ou ser (唐 yŊu). O bambu, como todos os outros seres vem do nada, mas tem tanto de nada como de ter e, por isso, vemos bem o seu vazio (虛), mas também o seu pleno (實shØ). Somos informados no capítulo 40 do Daodejing (《돛돠經》), o primeiro clássico da escola daoísta, atribuído a Laozi (일綾):

 

No Dao o único movimento é o retorno;

A única qualidade útil, a fraqueza

Embora todas as criaturas debaixo do Céu sejam produtos do Ser,

O próprio Ser é produto do Não-ser.

 

럽諒돛裂動;

흽諒돛裂痰

莖苟萬膠黨唐

唐黨無

 

Em termos da verdadeira realidade, o mundo noumenal, o nada inicia a existência, o espaço de ser e não ser, que depois, ao nível do mundo fenomenal, aquele que habitamos, surge bem representado pelas imagens da roda, da vasilha, das portas e das janelas, tal como nos são apresentadas no capítulo 11 do Daodejing (《돛돠經》)

 

Pomos trinta raios juntos e chamamos-lhe roda;

Mas é no espaço onde não há nada que a utilidade da roda depende.

Moldamos barro para fazer uma vasilha;

Mas é do espaço onde nada há que a utilidade da vasilha depende.

Rompemos portas e janelas para fazer uma casa;

E é nestes espaços em que nada há que a utilidade da casa depende.

Assim como tiramos partido do que existe,

devemos reconhecer a utilidade do que não existe.

 

힛枷輻묾寧轂

當페無,唐車裂痰。

梵輕鹿爲포,

當페無,唐포裂痰。

鑿戶六,鹿爲杆,

當페無,唐杆裂痰。

믐唐裂鹿為적,

無裂鹿爲痰。

 

O nada noumenal que se converte em vazio existencial é muito útil, do ponto de vista ontológico e ético, porque é por meio dele que os seres se transformam. O vazio é a potência para assumir todas as formas possíveis. O vazio não pode, por isso, converter-se num encolher de ombros, já que é um elemento dinâmico e activo. O vazio na música traduz-se em silêncio e na poesia em supressão de vocábulos, denominados palavras vazias. Também em relação à ética daoísta, o vazio é silêncio. É o vazio que permite a interiorização, de modo a que cada coisa seja ela própria e outra para alcançar a totalidade.

Por isso os daoístas falam da não-acção (無爲 w㉡ wIJi), que se liga ao vazio, ao silêncio e a flexibilidade. Esta não-acção implica uma acção interior máxima  própria dos sábios, como podemos ler no capítulo 63 do Daodejing (《돛돠經》): Actua sem acção, faz sem fazer, encontra sabor no que não tem sabor ( 為無爲,慤無慤,瓘無管。) É através da não-acção exterior e, pode-se acrescentar, total dinâmica interior que nos tornamos fracos e flexíveis. Se nos modelarmos pelo bambu e por todas as plantas maleáveis, ganharemos em longevidade, porque estamos a adoptar a postura ética correcta perante a vida, vazia, aparentemente não-activa, mas unificada. Lemos no capítulo 76

 

Quando o homem nasce é macio e fraco, quando morre é rijo e duro.

Também as plantas e as árvores quando estão vivas são suaves e macias, mortas ficam quebradas e secas. 

 

훙裂冷휼흽,페价冷堅強。

꿇컁裂冷휼닮,페价冷왹熔。

 

Tudo o que seja rijo, inflexível e cheio aproxima-nos da morte, só o vazio nos permite o crescimento, a transformação e o alcançar da completude, tornando-nos espelhos do universo, capazes de reflectir o todo, pelo facto de participarmos em tudo.

O vazio é, ainda, uma das noções centrais do Budismo Chan (禪). Chamam-lhe  e não x㉠ (虛) como os daoístas, ou por vezes ambos os nomes, mas a ideia em causa é a mesma: é preciso despir-nos do que não interessa para alcançarmos a verdadeira realidade, a fim de expressar o nosso eu autêntico e profundo. E se no final os daoístas regressam à unidade originária, os budistas Chan alcançam o nirvana, o vazio total, para além de todas as dualidades ou diferenciações. Este estado de libertação, impossível de descrever do ponto de vista fenomenal, permite escapar ao ciclo da morte e do renascimento, viabilizando, assim, a bênção de se participar num contínuo mental eternamente activo. Para atingir a iluminação é necessário, tal como nos daoístas, esvaziar a mente e copiar o modelo do bambu, como nos ensina o seguinte gong´an [(무갭) em japonês koan]: A iluminação de Zhixian,  da dinastia Song do Registo de Jingde da transmissão da Lâmpada (例閒 語錄,多菱«쑴돠傳燈錄»얩枷寧). O diálogo decorre entre Zhixian (例閒) e o Mestre Lingyou (靈袥 ) de Weishan (臣). O Mestre, que sabia do potencial do interlocutor, pediu-lhe não que comentasse sutras e professores, mas que lhe falasse dele próprio, antes de ter nascido ou de possuir conhecimento de qualquer coisa. Zhixian não conseguiu responder-lhe. Logo, solicitou a resposta do Mestre, que se recusou a dar-lha. Depois queimou todos os livros e decidiu transformar-se em monge mendicante. Vagueou até chegar a Nanyang (켓陽), onde se fixou:

Certo dia quando cortava lenha, ao limpar as ervas daninhas do sítio, por acaso atirou algumas pedras e telhas partidas contra uns bambus. Escutou o som que produziam. Então, de repente, compreendeu e desatou a rir. Quando regressou aos seus aposentos, limpou-se, queimou algum incenso, curvou-se na direcção de Weishan, onde estava o seu Mestre, e disse com gratidão: «Compassivo abade, que, mais do que os meus pais, me deu o dom da própria vida! Se me tivesse dado a resposta à sua pergunta, não tinha tido esta experiência hoje.

 

寧휑凜櫓몇뇜꿇컁,鹿崑礫擊賂鱗聲,띤呵揆閒,윌횔 芹較 。齬歸,愼棹뢨窮遙禮溈,贊暾: «뵨댕굄,람待만캡,當時흼為乖說卻,부唐쏟휑慤冷。»

 

A queima, metafórica ou real dos livros, é prática comum entre os daoístas e os budistas Chan, porque ambas as escolas consideram que a verdadeira sabedoria reside no interior de cada um e não na acumulação de muitos e veneráveis séculos de tradição. A verdadeira sabedoria, directa e intuitiva, nunca pode ser exterior à mente de quem a possui. No caso dos Chan sempre houve várias escolas. Inicialmente a que prevaleceu foi não a Escola do Norte, que privilegiava o conhecimento adquirido através das escrituras e dos comentários dos mestres, mas a Escola do Sul, fundada pelo sexto patriarca, Huineng [쁨콘(638-713)]. Nesta defendia-se uma postura tranquila e silenciosa, vazia como o interior do bambu. Considerava-se que a via correcta para a iluminação era repentina, pessoal e intransmissível. Os mestres poderiam através dos seus diálogos, ou até de práticas mais agressivas, como os gritos e as agressões físicas, colocar os discípulos no caminho certo, que era o de reconhecimento da sua própria natureza Buda.

Apesar da relutância a toda a sabedoria escrita e transmissível do exterior, a Escola do Sul baseia-se em duas escrituras: O Sutra Diamante e o Sutra Plataforma (壇쒔). Este último tem uma importância extraordinária, porque, como nos informa o filósofo e tradutor Wing-Tsit Chan: é o único trabalho em chinês honrado como escritura. O Sutra Plataforma foi pregado pelo sexto patriarca no templo Da Fan (댕拗) em Shaozhou (鹵) e registada pelo discípulo Fahai (랬베). A nós, e para terminar, interessa-nos a tematização da noção de vazio. Diz-nos o Sutra Plataforma no capítulo 24:

 

A palavra mahÆprajnÆpÆramitÆ é sânscrito e significa em chinês a grandiosa sabedoria pela qual se alcança a Outra Margem (…) O que quer dizer mahÆ ? Significa grandiosa. A capacidade da mente é tão grandiosa como a do espaço vazio. Se contudo nos sentarmos com uma mente vazia, ficaremos agarrados ao vazio caracterizado pela indiferença. O espaço vazio pode abraçar o sol, a lua, as estrelas, as plantas, a terra grandiosa, as montanhas, os rios, todas as árvores e plantas, as pessoas boas e más, os dharmas bons e maus, os céus e os infernos. Todos estão dentro do vazio. O vazio da natureza humana é o mesmo.

 

《칡訶겹흼꺼羅쵯》諒,鮫國拗語,鉗喇댕例궤갤돕。(…)부츰《칡訶》? 《칡訶》諒角댕,猶흔虛왕。흼왕懃麟,섦廖無記왕。虛왕콘벵휑墩槿낸,댕뒈붉,寧학꿇컁,惡훙훙,惡랬랬,莖慊뒈獄,盡瞳왕櫓。各훙昑왕,腦復흔角。

Como se pode verificar por este excerto, o vazio implica uma postura perante os outros e o mundo. O vazio é, antes de mais, um estado mental, uma certa relação que estabelecemos com a realidade que nos rodeia, devendo ser, tanto nos daoístas como nos budistas Chan, tranquila e desprendida, porque só escapando à lei da causalidade se alcança a liberdade mental necessária ao vazio essencial, que nos pode espelhar a nós e ao mundo. Daí que o bambu com o seu interior vazio seja uma imagem preciosa para os pensadores Chan. Nós e o bambu temos uma parte cheia, mas não é por ela que alcançaremos a natureza Buda, antes pelo cultivar de uma mente sempre activa e vazia, embora em relação, para atingir a completude de um eu e de um outro espiritualizados.

Concluirei com um tributo pessoal ao bambu, à maneira dos guerreiros de Shaolin, sem auto-interesse, centrada no objectivo, aquém e além da longevidade do mesmo.

 

Coração de Bambu

 

Ri ao vento no Céu,

espelha estrelas,

flui nos rios,

desagua nos mares.

 

Coração que permanece

sem pensar em regressar.

 

Dança sem se movimentar.

Ri ao luar.

 

Coração que nunca agarra

E se deixa embalar:

no silêncio escuro da noite,

na claridade branca da neve,

na transparência do vento,

no brilho de um certo olhar.

 

Bibliografia

 

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