Matteo Ricci: O poder da amizade

Foi o primeiro missionário a conseguir entrar no Cidade Proibida, quando o Império do Meio fechava a porta ao desconhecido, sobretudo se este tinha por missão representar uma religião diferente. Quatrocentos anos depois da sua morte, que se assinalam no corrente ano, recorda-se um homem que marcou a diferença ao conseguir criar laços com um mundo de que se sabia pouco. Para isso, em vez da força ou da imposição das suas ideias, usou o poder imbatível da amizade.

Matteo Ricci: O poder da amizade

 

Eram outros tempos. A Internet era impensável, as ligações aéreas e as agências de viagens não existiam, o mundo descobria-se em precárias embarcações. O conhecimento só estava ao alcance de alguns, mas era coisa em voga, apetecível. O desconhecido tinha fronteiras protegidas a sete chaves e muitos canhões. A China era o Império do Meio, a Europa vivia os dias da Renascença e o fascínio pela ciência. Os mundos eram vários, dentro de um só.
Foi neste contexto que Matteo Ricci nasceu e com este cenário que atingiu proeza sem igual. Impossível de repetir, nos dias de hoje, mas que convém recordar: no tempo em que tudo é global e está à distância de uma ligação à rede virtual, as diferenças culturais continuam a ser, frequentes vezes, um problema. Foi esse obstáculo que o padre jesuíta, nascido no ano da graça de 1552, soube ultrapassar como, até então, ninguém fora capaz. O jesuíta seiscentista foi mestre na arte de perceber a diferença, soube vestir a roupa dos mandarins, falar a língua deles e escutar o que tinham para dizer.
Como moeda de troca, deixou ensinamentos, partilhou mapas e instrumentos, contou as evoluções da ciência, da Astronomia à Matemática, passando pela Arquitectura. Criou a primeira igreja católica na China, à moda europeia, diferente dos templos orientais que se adaptavam para o culto de Roma. Morreu em Pequim e foi sepultado com honras que nenhum ocidental merecera à data. Deixou a porta aberta para todos os que chegaram a seguir.

Os anos da formação

Matteo Ricci nasceu no ano em que morreu S. Francisco Xavier, o homem que quis evangelizar a China mas que acabou não ter tempo. A coincidência é salientada pelos historiadores, como se não se tratasse de um acaso – Ricci alcançou o feito com que Xavier sonhou. O facto não escapa a Gianni Criveller, académico italiano e professor universitário em Hong Kong, que dedicou parte da sua vida ao estudo do percurso e da obra do jesuíta que ‘conquistou’ a China.
Co-autor de uma publicação lançada recentemente em Macau, editada pelo Instituto Ricci para assinalar o 400º aniversário da morte de Matteo Ricci, Criveller entende que, para se perceber a dimensão da obra do jesuíta seiscentista, há que perceber de onde vem.
“A maioria dos seus trabalhos na China resulta de matérias que aprendeu durante os cinco anos em que frequentou o Colégio Romano”, diz o académico. São disciplinas como Cartografia, Astronomia e Matemática, entre muitas outras, que constituíam a formação abrangente dada na altura a quem pertencia a uma restrita elite.
Humanista, “um homem da Renascença”, Ricci foi educado num tempo em que a Europa – sobretudo o seu país natal – passava por um período de excepcional abertura e predisposição para a diferença. O jovem jesuíta tinha “uma inclinação especial para ciências que, naquela altura, estavam em desenvolvimento e causavam grande entusiasmo”. Destacava-se em tudo o que fazia. Mas as qualidades de índole técnica de pouco lhe teriam valido na China sem a sua “extraordinária capacidade de adaptação”. Mas já lá vamos.
Filho varão de uma família de origem nobre, Matteo Ricci nasceu a 6 de Outubro de 1552 em Macerata, uma cidade dos Estados Papais, no seio de uma família com dinheiro e relevância social, o que lhe permitiu ter, desde muito cedo, acesso à melhor educação. O primeiro professor de Ricci, Nicolo Bencivegni, foi a sua primeira grande referência: o padre foi seu conselheiro durante grande parte da vida, mesmo quando se encontrava já em Pequim.
“A sua proeminência em relação aos outros missionários não se deve apenas ao facto de ter sido o primeiro, mas sim porque era o melhor, ou um dos melhores”, diz Gianni Criveller

Aos nove anos, Matteo Ricci entrou para uma escola jesuíta, um estabelecimento de ensino de excelência. Ali permaneceu até aos 14 anos de idade, destacando-se pelos brilhantes resultados e mostrando uma inclinação para a vocação religiosa.
Aos 16 anos, e por vontade expressa do pai, seguiu para Roma, para a Universidade La Sapienza, onde esteve quase três anos a estudar Direito, escolha resultante da vontade paterna. Mas o caminho de Ricci era outro: a 15 de Agosto de 1571 bateu à porta do noviciado de São André e foi admitido na Companhia de Jesus.
Matteo Ricci estudou as mais variadas disciplinas, da Retórica à Filosofia, passando pela Matemática e a Astronomia. Terá contribuído para a construção dos primeiros calendários gregorianos, que mais tarde introduziu na China. No final do seu terceiro ano de Filosofia, em 1576, o padre português responsável pela missão das Índias visitou Roma. O jovem estudante decidiu então candidatar-se a missionário, desejo partilhado por muitos outros alunos.
Em 1577, chegou a resposta: Ricci tinha sido aceite. Saiu de Itália nesse mesmo ano sem voltar à terra natal, rumo a Coimbra, onde estudou Teologia. Um ano depois foi enviado para Goa. Em 1582, dois anos após ter sido ordenado padre, chegou a Macau – a porta de entrada para a desconhecida China.


De Macau a Pequim

Gianni Criveller explica que, “na altura, a Europa tinha descoberto o quão importante era a China: havia quem tentasse entrar à força, outros achavam que era uma causa perdida, demasiado complicada”. Num terceiro grupo encontrava-se Ricci, que “tinha interesse pela China, queria entrar no país, mas não através da força ou da imposição das suas ideias, e sim pela amizade”.
Matteo Ricci não foi o primeiro missionário a entrar na China. “Vários portugueses e italianos visitaram a China antes. Mas quem conseguiu penetrar na China, quando esta era impenetrável, foi Matteo Ricci. Foi ele que entrou na Cidade Proibida e foi recebido pelos mandarins”, frisa César Guillén-Nuñez, o historiador que contribuiu também para a publicação lançada pelo Instituto Ricci de Macau.
Porque Matteo Ricci teve uma experiência única, apresentou uma nova visão da China ao mundo. “Já não é a China de Marco Polo. A partir de Matteo Ricci é outra China que o Ocidente encontra.”
Esta China não foi fácil de descobrir, apresentou-se como sendo uma longa caminhada. Ricci chegou a Macau a 7 de Agosto de 1582 e dedicou-se ao estudo da língua local. “Com o padre jesuíta Michaelo Ruggieri, começou a escrever um dicionário Português-Chinês”, elucida Artur Wardega, director do Instituto Ricci. A preocupação com o domínio do idioma facilitou a tarefa de comunicação com os seus interlocutores do grande império – ao contrário do que era a prática entre os missionários do Japão, que falavam latim e recorriam a intérpretes, Ricci percebeu que não era possível entender a cultura sem dominar o idioma.
Um ano após ter chegado a Macau, o jesuíta partiu para Cantão, acompanhado por Ruggieri. Pouco depois, conseguiu do vice-rei (sabedor dos seus conhecimentos em Matemática e Cartografia, ciências que muito interessavam à China) permissão para criar a primeira casa da missão no país, em Zhaoqing – local onde terá feito o primeiro mapa deste ponto do mundo e concluiu o dicionário. A mudança de vice-rei fez com que Ricci tivesse de deixar a sua primeira missão, no ano de 1589.
Já na década de 90 do século XVI, Ricci aventurou-se por Nanjing e Nanchang. Em Agosto de 1597, o seu superior, Alessandro Valignano, escolheu-o para principal responsável pela missão na China. Em 1598 esteve muito perto do poder de Pequim, mas as convulsões políticas da época aumentaram a intangibilidade do Palácio Imperial.
Três anos mais tarde, em Janeiro de 1601, dá-se o regresso à capital da Dinastia Ming. Matteo Ricci levava na bagagem presentes para o imperador, que não chegou a conhecer pessoalmente. “Tal não era permitido aos estrangeiros”, contextualiza César Guillén-Nuñez, “mas foi o primeiro ocidental a entrar na Cidade Proibida”. O jesuíta estabeleceria relações de amizade – a chave para a ‘sua’ China – com “alguns letrados e mandarins muito importantes dentro da corte”, acrescenta o historiador.
Com autorização para permanecer em Pequim, Ricci deu início a uma das componentes do seu trabalho enquanto missionário – a conversão ao catolicismo – mas manteve uma vida activa em termos sociais e culturais. “Os seus feitos foram bem recebidos por ambos os lados – pela China e pelo Ocidente”, destaca Artur Wardega. Matteo Ricci deu ainda um grande impulso aos estudiosos chineses, sendo Xu Guangqi disso exemplo. “Letrado oriundo de uma família muito importante de Xangai, foi aluno e companheiro de Ricci. Trabalharam juntos em tradução de livros”, conta. “Xu Guangqi soube aproveitar os ensinamentos para o bem do seu país.”
Por seu turno, “Matteo Ricci usou os seus conhecimentos para o cultivo de novas plantas para ajudar a população e até para defender a China, com a ajuda dos portugueses de Macau, através da compra de canhões”, numa altura em que se viviam conflitos internos. “Foi uma relação proveitosa para ambos os lados”, entende o director do instituto de Macau baptizado com o nome do padre jesuíta.

 

“Vários portugueses e italianos visitaram a China antes. Mas quem conseguiu penetrar na China, quando esta era impenetrável, foi Matteo Ricci. Foi ele que entrou na Cidade Proibida e foi recebido pelos mandarins”, frisa César Guillén-NuñezDiz-se que Matteo Ricci demonstrou aos chineses que a terra era redonda, fez os primeiros planisférios que a China conheceu e construiu relógios. Escreveu ainda muitas obras, entre elas o ‘Tratado da Amizade’ (em chinês) e as suas famosas “Cartas”, a dar conta do que ia descobrindo na China.

Rasgo e excepção

Para o investigador Gianni Criveller, a excepcionalidade de Ricci vai além do facto de ter sido o primeiro a entrar na Cidade Proibida. “A sua proeminência em relação aos outros missionários não se deve apenas ao facto de ter sido o primeiro, mas sim porque era o melhor, ou um dos melhores.”
Entre as suas qualidades únicas, encontrava-se a capacidade de perceber que não era através da imposição dos seus hábitos que seria compreendido. “Quando chegava a novos locais, Matteo Ricci não pensava que as pessoas tinham de se adaptar a ele, mas sim o inverso”, sublinha o académico italiano acerca do jesuíta que envergou trajes chineses. “Parece algo muito óbvio, mas não é. A ideia da colonização residia exactamente no conceito oposto.”
A forma como trabalhou fez com que recebesse do imperador licença para fundar uma igreja, objecto de estudo de César Guillén-Nuñez. O investigador analisou três igrejas jesuítas em Pequim, “as primeiras católicas”, e uma erigida pelos padres lazaristas, com relevo para o estudo. “Apareceram graças a Matteo Ricci, que teve a ideia de abrir uma igreja na capital Ming.”

 

“Matteo Ricci usou os seus conhecimentos para o cultivo de novas plantas para ajudar a população e até para defender a China, com a ajuda dos portugueses de Macau, através da compra de canhões”, numa altura em que se viviam conflitos internos. “Foi uma relação proveitosa para ambos os lados”, entende Artur Wardega.

 

Foi um “acto heróico”. A ideia – alargada a outras cidades chinesas – “é verdadeiramente singular, excepcional”. Guillén-Nuñez explica porquê: “Matteo Ricci mudou a ideia de ter um templo de tipo budista, que os jesuítas já tinham nalguns lugares na China e em especial no Japão, adaptando os templos orientais à liturgia católica. Ricci alterou essa noção, quis construir um templo ocidental, com arquitectura da Contra-Reforma, da Renascença europeia.” O investigador acrescenta que, nas cartas que enviava para Roma, Ricci comentou que fez esta mudança “para que os chineses soubessem o que era um templo cristão, porque uma igreja não era igual a um templo chinês”. Estes locais de culto foram destruídos várias vezes por convulsões internas e desastres naturais. “Existem reconstruções de estilo neo-gótico, mas não são as igrejas originais”, refere César Guillén-Nuñez.
Ricci morreu sem completar 58 anos, a 11 de Maio de 1610. Deixou cinco missões estabelecidas e baptizou mais de setecentas pessoas. As regras da Dinastia Ming ditavam que os estrangeiros que morriam na China tinham de ser enterrados em Macau. Na morte como na vida, Matteo Ricci foi a excepção: o imperador Wanli autorizou que o seu funeral se realizasse em Pequim e ordenou que fosse construído um templo budista para o efeito. Mais tarde, os restos mortais do jesuíta foram transladados para o local onde acabariam por ser sepultados outros missionários.
Artur Wardega recorda as palavras de Ricci deixadas aos seus companheiros jesuítas, já no leito da morte: “Deixo-vos, mas deixo-vos com a porta aberta para este grande país e esta grande civilização. Cabe a vós um trabalho árduo para promover o diálogo e promover a prosperidade de ambos os lados.” E é por isso que faz todo o sentido recordar o homem que soube perceber a China, já lá vão 400 anos: a arte de compreender a diferença é um trabalho em progresso.