O dia do duplo cinco a tradição revisitada

O dia 16 de Junho do corrente ano corresponde ao quinto dia do quinto mês lunar, em que se comemora o dia dos barcos-dragão, também conhecido como duplo cinco ou duanwu jie (端午节) — uma das festividades mais tradicionais chinesas tal como Ano Novo, os Finados e o Equinócio de Outono (Festa do Bolo Lunar). […]
Profa. Márcia Schmaltz, Instructora Sénior da Universidade de Macau

O dia 16 de Junho do corrente ano corresponde ao quinto dia do quinto mês lunar, em que se comemora o dia dos barcos-dragão, também conhecido como duplo cinco ou duanwu jie (端午节) — uma das festividades mais tradicionais chinesas tal como Ano Novo, os Finados e o Equinócio de Outono (Festa do Bolo Lunar).

Em chinês, duan (端) significa início e wu (午) é a designação do quinto mês lunar. Em Histórias Extraordinárias de Qi
(《续齐谐记》), do século VI regista que:

“Qu Yuan atirou-se ao rio Yangluo no quinto dia do quinto mês lunar e sua morte foi muito lamentada pelos compatriotas do reino de Chu. Desde então, todos os anos nessa data, o povo joga bambus com arroz ao rio como forma de homenageá-lo.
Durante o reinado de Jianwu (25-57), da Dinastia Han Oriental (25-220), existiu, em Changsha, um homem chamado Ouqu. No dia do duplo cinco, ele topou com um senhor de nome Sanlü que lhe disse:
— Soube que você viria até aqui para fazer as homenagens ao poeta e muito aprecio o seu ato. Contudo, todos os anos as oferendas são engolidas pelo dragão que habita o rio. Para evitar que isso aconteça e afastá-lo, sugiro que embrulhe as oferendas em folhas de amargoseira e amarre-as com fitas multicoloridas.
Ouqu seguiu o conselho do dito doutor e assim surgiu esse costume que perdura até hoje.”

O senso comum credita o surgimento da comemoração da data ao Qu Yuan (屈原), de quem falarei mais adiante. Por ora, vos contarei o porquê dos “bolinhos serem engolidos pelo dragão que habita o rio” e sobre as regatas em barco-dragão, que são o que mais chama à atenção na passagem dessa data. Tanto bolinhos como barcos estão relacionados ao dragão e, não é por mero acaso, que o principal homenageado da data é o tal animal mitológico, governante do ar e das águas.
Descobertas arqueológicas e antropológicas revelam que Wu
(吴) e Yue (越) foram as primeiras comunidades agrícolas a se assentarem às margens do rio Yangzi (长江). Como primitivos que eram e sujeitos a todo o tipo de intempéries, criaram para si um totem para a protecção – a figura do dragão – inspirados na imagem dos raios relampejantes no céu. Da mesma forma, conferiram ao dragão poderes sobrenaturais extraordinários e diziam que este era o ancestral e o protector de suas comunidades. Assim, tatuavam os seus corpos, mantinham o cabelo curto e sinalizavam os utensílios com essa figura mitológica para estreitar a relação com o totem-dragão. Organizavam, uma vez por ano, uma grande cerimónia de homenagem ao governante das chuvas e das águas. Colocavam alimentos dentro de bambus ou enrolados em folhas e jogavam uns às águas e outros comiam. Concluido o ritual de oferendas, ainda faziam regatas em canoas também esculpidas com a imagem de dragões, incentivadas ao som de tambores. Entretinham-se e rogavam protecção ao deus dragão.
Dois mil anos se passaram e o conhecimento sobre o mundo a sua volta evoluiu. Perceberam que com a aproximação do Verão as epidemias e as pestes aumentavam. Descobriram que pendurar cálamo e artemísia na porta surtia algum efeito para repelir parasitas. Beber ou passar aguardente de arroz com realgar na fronte, nos pés, nas mãos das crianças, servia como uma espécie de simpatia para manter afastadas cobras, escorpiões, sapos, aranhas e lacraias, que costumam se proliferar naquela época do ano. O costume de tatuar o corpo fora substituído por amarrar cordões multicoloridos no antebraço. No mesmo período, recomendava-se o banho, a abstinência sexual e o jejum. Por isso, não se casavam e evitavam ter filhos nesse mês, permitindo o retorno de suas mulheres à família de seus pais.
Essas “medidas” pareciam ser efectivas para a manutenção da vida, e esses povos começaram a sentir maior segurança em relação à natureza. Sobreviver já não era tão difícil como antigamente e passaram a concentrar as suas energias na busca por uma vida gloriosa e honrosa. Assim, a relação com o totem-dragão mudou de reverência à intimidatória. Surge o modo de produção feudal e o direito ao uso da figura do dragão era reservado unicamente aos reis. O sentimento de honra é uma questão de consciência e discernimento entre o bem e o mal, axiomas esses que já haviam sido suscitados pelos filósofos Laozi e Confúcio, que diziam que o homem é mais perigoso do que a natureza. Não prosseguirei nessa discussão aqui, porque as descobertas e os ensinamentos dos mestres só farão sentido mais tarde, através dos acontecimentos históricos e, por isso, passo a narrar os fatos que viriam a tornar o poeta Qu Yuan, como o principal homenageado no dia do duplo cinco.
Conforme apresentei, as comunidades Wu e Yue adquiriram contornos de civilização ao ter um maior domínio sobre a natureza. Esses povos espraiaram-se pela região oriental chinesa e se dividiram em reinos populosos, necessitando ampliar além de suas fronteiras, a sua glória. O cerne pela disputa da hegemonia era a planície central chinesa – Zhongyuan (中原) – região fértil entre os rios Amarelos e Yangzi, por sete reinos principalmente, a saber: Qi (齐), Chu (楚), Yan (燕), Han (韩), Zhao (赵), Wei (魏), Qin (秦). Esse período foi conhecido como Reinos Combatentes (457-221 a.C), uma época de muita violência, onde o reino de Qin foi o vencedor e unificou a China em 221 a.C.. O poeta Qu Yuan, do reino de Chu, viveu entre 340-278 a.C.

 

 

O sentimento de honra é uma questão de consciência e discernimento entre o bem e o mal, axiomas esses que já haviam sido suscitados pelos filósofos Laozi e Confúcio, que diziam que o homem é mais perigoso do que a natureza

 

Qu Yuan era ministro no reino de Chu e também o terceiro homem mais influente daquele reino. Defendia uma aliança estratégica com o reino de Qi, para resistir à expansão do reino de Qin. Por outro lado, Qin estava sempre a procurar meios para destruir quaisquer alianças entre os reinos rivais, as quais pudessem criar obstáculos à expansão do reino. Os ministros do reino de Qin tentavam demover Qu Yuan de seus bons conselhos ao rei através de muitos regalos; entretanto, Qu Yuan era um homem incorruptível e de moral inabalável, enquanto seus outros colegas ministros nem tanto, pois “sensibilizavam-se” com os presentes ofertados pelo reino de Qin.
Os rumores políticos contra Qu Yuan eram terríveis e diziam que ele havia divulgado segredos do reino, fato que o levou a ser degredado em 313 a.C. No ano seguinte, as relações entre Qin e Chu pioraram, de tal forma que, Qu Yuan foi chamado de volta à corte e restituído ao cargo, todavia, as intrigas continuariam contra ele.
Depois de algumas tentativas fracassadas de ataque de Qin contra Chu, o primeiro resolveu convidar o segundo para viajar ao seu reino, para travarem negociações de paz. Apesar de Qu Yuan ser contrário a essa viagem, porque tinha receio de se tratar duma armadilha preparada pelo ardiloso rei Qin; o rei Chu ignorou por completo o seu conselho, inclusive até o censurou publicamente, reclamando de sua interferência em demasia e, pela segunda vez, Qu Yuan foi degredado para o norte da actual província de Hunan.
Durante o cortejo, o rei de Chu foi apanhado em uma emboscada no meio do caminho pela tropa de Qin, o qual foi feito prisioneiro. O rei de Chu morreu três anos depois numa cela no reino de Qin.
Qu Yuan, enquanto desterrado, escrevia poemas os quais denunciava, em tom sarcástico, a corrupção, o egoísmo e o descaso da aristocracia de Chu, os quais colocava o seu interesse acima do reino. Mais tarde, os poemas foram reunidos num volume conhecido como Lisao (离骚) – A Amargura no Degredo, que faz parte até hoje dos manuais escolares.
Magoado com a notícia de falecimento do seu rei e impotente para salvar o seu reino, Qu Yuan desiste da vida porque a glória já era inalcançável, e se amarra a uma pedra e se atira ao rio Yangluo, situado a noroeste de Hunan, no quinto dia da quinta lua.
Ao chegar a notícia do trágico fim do poeta-estadista, é organizada uma flotilha de barcos para o resgate de seu corpo, nas águas revoltosas do rio. Para ganhar tempo e evitar que o dragão se alimentasse de Qu Yuan, a população ribeirinha jogou ao rio arroz glutinoso enrolado em folhas de amargoseira.
E assim a tradição fora revigorada pela consciência de Qu Yuan. A partir de então, a festividade de reverência ao dragão passou para homenagens ao poeta de carácter inabalável e patriota. A sua atitude foi aclamada pelo povo e exaltada por poetas como Li Bai e intelectuais como Lu Xun. As regatas de barcos-dragão ocorrem para simbolizar o resgate do bem e do que é correcto e o ato de se comer bolinhos de arroz glutinoso recheado com carnes, verduras ou gergelim, conhecido como zongzi (粽子), enaltece a memória desse homem.
No século XXI, nos lugares banhados por rios na China, continua a comemorar-se a data com regatas de barco-dragão. Em Macau, as regatas são disputadas por equipas amadoras de universidades, associações de classe ou empresariais, em que as torcidas participam com suas berrantes bandeiras. Há dois meses que avistamos os treinos no lago Nam Van e logo veremos erguidas arquibancadas, onde poderemos nos misturar ao povo e assistir a essas disputas de alegria contagiante e nos tornarmos parte integrante dum festejo milenar, que adquiriu vários contornos através dos séculos.
Nos tempos míticos, o homem era frágil perante a natureza e se intitulou como descendente do dragão em busca de proteção – assim, homem e dragão fundiram-se num só corpo; à medida que esse homem passou a ter maior domínio sobre a natureza, o dragão de ícone protetor, virou símbolo do poder real. Depois veio um período de guerras que desgastou o poder, mas agregou características de retidão e patriotismo ao ente mitológico, que parece perdurar até os dias actuais.
Nesse ínterim, para finalizar, deixo uma pergunta: Que contornos adquirirá esse dragão no futuro com a secularização dos costumes?