A Festa Lunar

O prenúncio do Outono é sinalizado com a comemoração da Festa do Bolo Lunar, no décimo quinto dia do oitavo mês lunar, que corresponde ao dia 22 de Setembro do corrente ano. Desde a Antiguidade, acredita-se que é a mais bela lua cheia do ciclo anual. A tradicional festa remonta à dinastia Zhou (1100 a.C.), […]

Instructora Sénior da Universidade de Macau

O prenúncio do Outono é sinalizado com a comemoração da Festa do Bolo Lunar, no décimo quinto dia do oitavo mês lunar, que corresponde ao dia 22 de Setembro do corrente ano. Desde a Antiguidade, acredita-se que é a mais bela lua cheia do ciclo anual.

A tradicional festa remonta à dinastia Zhou (1100 a.C.), quando na altura eram organizados rituais de sacrifícios ao Sol, na Primavera; à Terra, no Verão; à Lua, no Outono e ao Céu, no Inverno. Cada uma dessas cerimónias era realizada somente pelo imperador em altares erguidos especialmente para a ocasião nos quatro pontos cardeais da capital. Em Pequim, ainda encontram-se conservados quatro parques com os respectivos altares.
Os ritos (礼li) estão fundamentados na transmutação (易yi) de todas as coisas, a partir da composição do yin e do yang. O Sol é o princípio masculino, yang, e a lua é associada com o princípio feminino, yin, governada pela deusa Chang’E, simbolizada por um sapo de três patas (vide o conto Hou Yi e Chang’E, nesta edição). O satélite também está relacionado ao Outono, alegoria da morte de todas as coisas. O quadrante de domínio é o Oeste, governado pela Xi Wangmu (西王母) – Rainha Mãe do Oeste, deusa da morte que possui o elixir da imortalidade.
Conta o folclore chinês que ainda existe uma outra divindade relacionada à Lua, o Velho da Lua, Yuelao月老, guardião do Livro das Bodas, onde está traçado o destino de toda a gente, que carrega um saco repleto de cordões vermelhos, utilizados para amarrar os tornozelos dos casais. Acredita-se que enquanto os cordões estiverem atados, o casamento é predestinado e indissolúvel.
Reza uma outra lenda que no reino de Qi, período dos Reinos Combatentes (475-221 a.C.), existiu uma rapariga muito feia chamada Wu Yan que, desde pequena, era muito devota à lua. Quando cresceu, foi admitida como concubina ao palácio imperial, mas nunca foi escolhida pelo rei. Na noite do décimo quinto dia do oitavo mês lunar, quando apreciava a lua, foi vista pelo príncipe que logo se encantou e mais tarde casaram, e ela tornou-se rainha. E, desde então, muitas moças fazem oferendas à deusa da lua, pedindo beleza e brancura.

A festa do reencontro e da união

 

Apesar de antiga, a Festa do Bolo Lunar tornou-se popular somente a partir da dinastia Tang (618-907). Na dinastia Song (960-1279), a festa eleva-se de facto a um evento com dimensão nacional. As famílias reuniam-se para apreciar juntos a lua cheia, acompanhado pelo bolo lunar, melancia, toranja, laranja, maçã, ameixa, uva, romã, etc., todos os alimentos com formas arredondadas à semelhança da lua, que estão associados à palavra chinesa tuanyuan (团圆) que significa ‘(re)união ou reencontro’, desejo último de todos de estarem bem e juntos.
A confraternização era realizada no pátio das residências, onde era colocada a imagem da deusa da lua com dois tocheiros com velas vermelhas e um incensário em cima do altar. Na frente, uma mesa com as oferendas, como o bolo lunar e as frutas. Depois das vénias, a dona da casa repartia o bolo e a melancia de acordo com o número dos membros da família presentes e ausentes.
Na altura, o bolo lunar já era recheado com sésamo, osmanto, verduras e feijões, mas o tamanho não era como os actuais: chegava às vezes a ter sessenta centímetros de diâmetro e dez quilos para ser repartido entre todos os membros da família, em número exato.

Lua inspiradora

Desde a Antiguidade que a lua inspira e fascina os poetas chineses, especialmente a partir da dinastia Tang. O satélite é uma alegoria do feminino, especialmente ao rosto e à sobrancelha, tal como uma lua minguante. Outras vezes, é associada com a saudade e a solidão. Como no clássico Bebo sozinho ao luar《月下独酌》de Li Bai (李白) (701-762), tradução de Cecília Meireles:
Entre as flores da montanha há um jarro de vinho.
Sou o único a beber: não tenho aqui nenhum amigo.
Levanto a minha taça, oferecendo-a à lua:
Com ela e a minha sombra, já somos três pessoas.
Mas a lua não bebe e a minha sombra imita o que faço.
A sombra e a lua, companheiras casuais,
Divertem-se comigo, na primavera.
Quando canto, a lua vacila.
Quando danço, a minha sombra se agita ao redor.
Antes de embriagados, todos se divertem juntos.
Depois cada um vai para sua casa.
Mas eu fico ligado a essas companhias insensíveis:
Nossos encontros são na Via Láctea.

Em homenagem à data, escolhi A velha Lua《古行月朗》de Li Bai (李白) (701-762), tradução de António da Graça Abreu:
Menino, imaginava a Lua
um prato de sopa de jade branco
suspenso no céu, ou um vidro mágico
voando entre castelos de nuvens turquesa.

Já na dinastia Song, os poemas adquirem uma coloração mais melancólica, no sentido de denotar a vida, com os seus altos e baixos. Como o clássico Curso das águas《水调歌头》de Su Shi (苏轼) (1037-1101):
Brindo ao Céu, indago-o quando a lua surgiu?
Seria esta noite que ano no palácio celestial?
Gostava de pegar um vento e retornar ao céu, mas temo o gélido palácio de jade lunar,
É muito frio nas alturas!
Imagino flutuar ao céu junto a lua, em cima das nuvens, incomparável ao mundo terrestre!
O luar ilumina do pavilhão carmim até a janela dum homem insone.
A lua não deve sentir rancor, mas porquê está sempre cheia nas despedidas?
A vida é marcada por alegrias, tristezas, encontros e partidas,
A lua possui fases,
A incompletude é desde a Antiguidade.
Mas espero, mesmo que distante,
o amigo esteja bem,
A apreciar a mesma lua.

 

Sincretismo religioso

Durante a dinastia Yuan (1271-1368), época do Gengis Khan, a festa tomou uma dimensão de resistência ao império Mongol: o bolo lunar era recheado com mensagens das revoltas regionais. Por isso, a partir da dinastia Ming (1368-1644), a data tornou-se tão importante quanto o Ano Novo Lunar. Nos banquetes imperiais, foi somado mais uma iguaria: o caranguejo ao vapor, acompanhado por uma tigelinha com água e limão para lavar as mãos. Popularizou-se a encenar óperas cujo tema remetia às lendas sobre a lua, como citado anteriormente. Na dinastia Qing (1644-1911), o processo de sincretismo entre o daoísmo e o budismo fez com que a imagem da deusa lunar, Chang’E, fosse substituída pelas imagens de bodhisattva, a buda da misericórdia, e pelo coelho boticário. No entanto, comprava-se papéis com impressões do palácio lunar com a deusa, para serem queimados como oferenda.

 

Nas quermesses, eram vendidos bonecos com cabeça de coelho, trajados com armadura e elmo montados em leões, elefantes, grous ou pavões. Outras vezes, traziam bandeira ou sombrinha.
Outro costume que se popularizou, especialmente no Sul da China, foi a confecção de lanternas com varinhas de bambus pelas crianças. Depois de passearem com as lanternas, essas eram penduradas em um galho, simbolizando rectidão. Lembro-me de na minha infância em Taipé ter criado um peixe-lanterna que me deu bastante trabalho na sua confecção, pois era difícil conseguir vergar as varinhas e firmá-las, mas a maior alegria foi vê-la pegar fogo no final da noite. Ao recordar-me hoje, sinto pena: nunca mais fiz uma lanterna como aquela.

A presença do dragão

Soube que existiu uma antiga aldeia de pescadores da etnia Hakka, no distrito de Tai Hang, em Causeway Bay, Hong Kong, de onde surgiu uma comemoração peculiar da Festa da Lua que ocorre até hoje. Durante três dias, é promovida a dança do dragão de fogo. Esse costume existe há mais de cem anos, quando após um tufão, a localidade foi tomada pela peste, causando muitas mortes. Na altura, um aldeão sugeriu que se realizasse a dança do dragão de fogo e soltasse panchões durante o Equinócio de Outono, como uma maneira de afugentar os espíritos malignos. Como funcionou, a partir de então o ritual se tornou parte do folclore da região, para pedir aos deuses tempo bom e paz familiar. Actualmente, o dragão é trançado em palha e os dentes feitos de folha metálica, os olhos são duas lanternas à pilha e a língua, um pedaço de madeira pintada de vermelho. O que conduz o dragão é uma toranja. O corpo do dragão é cravejado com palitos de incenso, que gera um efeito incandescente durante à noite. Soube também que antigamente costumava-se jogar o dragão ao mar no fim da festa, e dizia-se que era “a volta do dragão ao mar”. Hoje é incinerado e diz-se que “o dragão sobe ao céu” (levado pelo fumo).

Por fim…

Vários costumes e tradições da Festa do Bolo Lunar perduram até os dias atuais e a data é considerada como a segunda festa chinesa mais importante. Após percorrer uma linha de descrição histórica da Festa da Lua, percebe-se que o surgimento e a respectiva consolidação esteve calcada em princípios de congregação com a natureza e, somente mais tarde, popularizou-se, adquirindo contornos centrados na família. A sua importância fundamenta-se numa sociedade que tem como núcleo a família, onde neste dia é enaltecido o sentimento de (re)união e confraternização de seus membros.
Contudo, nem sempre é possível de estar junto à família nessa data, por isso, as gentes que não possam se deslocar, não deixa de comemorar. Dirigem-se aos parques com suas toalhas, frutas e bolos para apreciar a lua — como seus parentes devem estar igualmente a fazer no mesmo momento. Apesar da distância, estão todos sob o mesmo luar, que irradia votos de bem-estar e a saudade de uns pelos outros.
Lembro-me de ter apreciado a lua, numa espécie de piquenique com bolos lunar e frutas na beira do Lago Inominado na Universidade de Pequim. Vejo, frente aos meus olhos, minha filha pequena colocar barquinhos de papel com uma velinha no lago, enquanto eu olhava para a lua e pensava nele no outro lado do mundo. Mais tarde, cheguei a Macau e gostei de passar a festa na praia de Hac-Sá. Estender toalhas e sentar ao redor duma pequena fogueira ou das lanternas, ver a minha filha dançar ao som das canções do Brasil, de Portugal e da China. Às vezes, espreitamos para a lua e mandamos votos de saúde e bem-estar para os entes queridos que não estão ao nosso lado.

 

Bibliografia
Eberhard, Woltran (2000). A Dictionary of Chinese Symbols. Londres: Routledge.
Li Bai (1990). Poemas de Li Bai. Tradução, prefácio e notas de António Graça Abreu. Macau: Instituto Cultural de Macau.
Li, Fuyan (1982). Outros Registos de Mistérios e Monstros 《续玄怪录》. Pequim: Zhonghua. 
Poemas Chineses: Li Po e Tu Fu (1996). Tradução de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Shan’hai Jing《山海经》[O livro da Natureza] (2007). Haikou: Editora Nan’hai.
Si, Maqian (1993). Registos da História《史记》. Jinan: Editora da Universidade de Shandong.
Su, Shi (1982). Poemas de Su Shi《苏轼诗集》. Pequim: Zhonghua.
Zhou, Gongdan (2007). Rituais de Zhou《周礼》. In «Clássicos da filosofia chinesa». Wuhan: Editora da Universidade Politécnica de Wuhan.