A República de Flora Gomes

O filme República das Crianças foi filmado em Maputo nos meses de Junho e Julho. A história de um mundo sem adultos é uma crítica social a África, escrita e realizada pelo guineense Flora Gomes, protagonizada pelo actor americano Danny Glover e uma mão cheia de crianças. Estas são as histórias das personagens e das pessoas que lhes deram vida Samuel Malumbe - Presidente
A República  de Flora Gomes
A sua personagem não tem nome, é só identificada como presidente, o último da cidade dos adultos.

Foge no início do filme, com os seus ministros, no meio de uma praça em chamas, com carros a arder e pessoas a correr em pânico. É o salve-se quem puder.

Samuel está a fazer a sua última cena como presidente no filme República das Crianças. As gravações deviam ter acabado às 10 da manhã, mas só às 12 o dispensam. Está atrasado para um anúncio publicitário de um banco moçambicano. Não é o primeiro, e não será o último. Samuel é actor conceituado em Moçambique. Já entrou em vários spots, participou num filme moçambicano e até no Blood Diamond, um êxito de Hollywood sobre os diamantes da Serra Leoa, que foi nomeado para cinco Óscares. Samuel é um homem conhecido, mas nem por isso consegue viver do trabalho de artista. É paginador num jornal moçambicano diário, faz parte do elenco fixo do Gungu – uma companhia de teatro que tem casa cheia com peças que chegam aos nove meses – e mesmo assim vive num dos bairros mais perigosos da cidade de Maputo.

“Claro que não fazia mais nada se pudesse, é o que mais gosto. Mas se eu largar o jornal, só ganharia oito mil meticais por mês (cerca de 180 euros) no teatro, e tenho filhos a estudar, uma família. Neste país, não dá para viver da representação”.

 

A direcção de actores do filme de Flora Gomes chegou a ele com um simples telefonema. Em Moçambique, os artistas não têm agentes, mas o mundo do show biz é tão pequeno, que basta querer para conseguir o contacto deste ou daquele artista.
“Eu gostei da personagem. É o último Chefe de Estado que sai para as crianças pegarem a cidade. Este continente tem demasiados casos de guerras e golpes de Estado, e penso que a solução não é a substituição dos presidentes, mas a sua definição do que querem dos países, porque eles estão só de passagem. O país não é de quem o governa”.

Danny Glover – Dubem

É Dubem, o único adulto da cidade das crianças. Aparece em todo o filme, assumindo um papel importante no mundo dos adultos e no das crianças.
É o conselheiro do presidente [Samuel Malumbe], pouco antes deste fugir da cidade sob bombardeamentos. Dubem fica para trás, tacteando o caminho à procura dos óculos. De mãos no chão, e olhos quase cegos, entra na sala de arquivo, onde encontra a pequena Nuta, aterrada. Ele acalma-a, e, ali, ouvindo e temendo as explosões, Dubem e Nuta firmam o contrato de construir um novo mundo juntos. A República das Crianças.
Na cidade governada pelos miúdos, Dubem não terá nenhum cargo formal, mas será um conselheiro, um amigo mais velho. É o único adulto que vê a cidade. Os outros que ali passam, só encontram mato.
“Penso que a cidade é invisível para os adultos porque nós somos diferentes das crianças, elas vêm o mundo com outros olhos. Eu acho que há qualquer coisa no coração de uma criança, na forma como definem o amor e a compaixão, que nós perdemos ao longo do processo de socialização. Se honrarmos as nossas crianças e a sua visão do mundo, estaremos a cuidar da sociedade presente, mas sobretudo da futura”. Danny Glover não é só um artista. Mas também um cidadão de causas. Procura um mundo melhor, e, tal como Flora, acredita que a arte pode mudar a forma de ser e agir dos homens.
Aceitou o desafio de entrar neste filme, não só porque é amigo de Flora há muitos anos, mas também porque, para ele, este é um filme muito importante. Conta que ficou apaixonado pelo guião. “Nós entendemos as pessoas através da forma como elas se vêm a si próprias. No caso dos africanos, há estereótipos que tanto eles têm, como o resto do mundo. Eu acredito que nós podemos mudar a imagem de África através de uma reinvenção do futuro. Eu e o Flora partilhamos esse sentimento, e creio que podemos usar o cinema para fazer com que os africanos introduzam uma nova forma de pensar e de agir”. Este é um filme universal. Podia ser filmado em qualquer país, para qualquer povo. Mas África é onde a mudança é mais urgente. Onde a pobreza, a violência, os conflitos armados e mesmo o aquecimento global são mais prementes.
Danny não fala português e Flora Gomes não fala inglês. De vez em quando, nos intervalos das filmagens, Danny grita algo que ouviu há mais de 30 anos, e que o fez solidarizar-se com o povo africano, que ainda lutava pela liberdade. “A luta continua!”. Todos riem, incluindo Flora. É a única altura em que partilham as palavras. Danny afirma que, de mais, não precisa. Comunica com o realizador partilhando a sua visão, ajudando, facilitando a feitura do filme. Entendendo exactamente o que Flora quer. Mesmo quando Danny diz que é amigo de Flora há anos, mais do que palavras, fala de uma admiração mútua, fala de causas que ambos perseguem, e de heróis que ambos veneram. Caso de Amílcar Cabral, que Danny afirma ter estudado. “Eu não preciso de entender o que Flora diz, para saber o que ele quer dizer, para sentir o que ele sente.”.
Para ambos, um mundo melhor passa por uma enorme habilidade de perdoar, uma enorme tolerância em relação às diferenças do outro, uma capacidade ver o homem e não uma cor ou raça, uma vontade de cuidar do planeta terra. Um mundo melhor prepara-se no presente para se viver no futuro. Porque o futuro é feito pelas crianças de hoje. E são essas, segundo Danny Glover e Flora Gomes, que têm maior capacidade de mudar os homens, os adultos, nós.

Cena das Laranjas

Esta cena não estava no primeiro guião. Flora admite que não escreve as cenas mais bonitas, vêm depois com o tempo, com a construção das personagens e da história. Há quem diga que este tipo de cena é a marca do realizador, presente em todos os filmes. São cenas simbólicas, mágicas, onde a narração pára e só as emoções saltam do ecrã. É o ponto de ruptura do filme, em que já nada pode voltar para trás, e há mesmo que pensar no futuro.
A cena passa-se à frente do palácio presidencial, de onde os ministros e o presidente saíram a correr, pouco antes, para fugir da cidade.
Georgina Cossa, de 12 anos, não tem um grande papel no filme. Mas ali aparece de cesta na cabeça, cheia de laranjas. Olha em frente, para o horizonte. Lá, ao longe, explosões destroem o mundo como ela o conhece. E ela só fica ali, lágrimas derramadas em silêncio, laranjas a cair, a rolar pelo corpo dela, a tombar no chão, uma e outra e outra. Todas no chão. Cesta vazia. Como a menina.
Georgina diz que vai conseguir chorar sozinha. Tem 12 anos e pouca experiência de representação. Flora ainda vem ter com ela, diz-lhe “tu vais ser conhecida como a menina mais bonita e inteligente que encontrámos em Maputo”. Não é verdade, mas o realizador consegue fazê-la sorrir, vaidosa. Mesmo com o incentivo, na hora H, ela não chora. Dão glicerina para os olhos humedecerem. Arde, ela chora. Sem vontade, só com lágrimas gordas correndo na sua pele negra perfeita de menina. O momento é de suster a respiração de tal maneira é intenso e triste. Não é de raiva pelo passado que não volta, não é de desespero sequer ou medo do futuro. Só de uma imensa, derradeira, funda tristeza. Ali, naquele momento, é que o mundo dos adultos acaba e o das crianças começa.

 

Melanie de Vales Rafael – Nuta

No início do filme, Nuta tem uma mãe muito doente, e uma avó. A guerra no mundo dos adultos já começou, mas Nuta não tem medo, só quer ajudar a mãe, que jaz, moribunda, numa esteira. Já nessa altura, Nuta tem um sonho, ser médica. A avó, que sustenta a casa como costureira, diz-lhe que já devia trabalhar, uma menina daquela idade não estuda. Nuta tem 11 anos.
Apesar das explosões, que ainda parecem longínquas, a avó manda Nuta entregar roupa na presidência.
Ela corre, passa pelos portões do palácio, com as explosões cada vez mais perto, entra por uma porta aberta, assustada.
Poucos minutos depois, entra Dubem tacteando o chão, em vão à procura dos seus óculos. Encontra a menina em pânico.
Dubem diz a Nuta para ter calma, mas ela vê o fim do mundo.
As explosões cada vez mais e mais próximas.
Ele diz-lhe: “há tantas feridas para tratar nesta cidade que vamos precisar de muito bons médicos. Vais ver, vais aprender a tratar da cidade ao mesmo tempo que tratas das pessoas”.
Nuta tornar-se-á médica, mesmo menina, na cidade mágica.
A cena, filmada no arquivo do Hospital Central de Maputo, demorou muito tempo a estar no ponto. Melanie tentava mostrar medo, fingir ouvir as explosões ao longe, resguardar-se no colo de Danny Glover, mas a falta de experiência tirava-lhe o pânico do rosto, e só lá colocava indecisão.
Mal saíam da sala escura, Melanie ia sentar-se com Danny Glover a um canto. Ouvia os conselhos da estrela de Hollywood. “Nunca percas o contacto com o medo”, dizia Danny Glover, “este é o momento em que nós firmamos contrato para reconstruir a cidade juntos”.
Para Melanie de Vales Rafael, esta foi a pior cena. “Nunca tinha feito sequer teatro na escola”. Melanie fala um inglês perfeito, com o sotaque dos filmes americanos, porque o pai é tradutor e a mãe viveu durante muitos anos na África do Sul. Aos 14 anos é quase a personagem principal do filme, contracenando directamente com Danny Glover.
“A Nuta é uma rapariga determinada. Pode ter medo, mas não mostra, cuida mais dos outros do que de si”. Melanie admite que, nos primeiros dias, foi difícil entrar na personagem. A preparação ajudou-a mas também foi dura. “Nos ensaios, eu chorei e gritei, mas acho que foi necessário, senão eu nem conseguiria fazer isto. Na altura fiquei zangada com os directores de actores, o Guilherme e o Vítor, mas depois cheguei a casa e a minha mãe explicou-me que eles precisavam de ser assim, que não podiam estar sempre a passar a mão sobre a minha cabeça. E acho que até fiquei com mais carinho por eles”.

 

Joyce Simbine Saiete – Fátima

Fátima é uma das cinco forasteiras que chega à Républica das Crianças.
Os pais foram mortos por meninos soldados no início do filme. Fátima tem 12 anos, vê os pais caírem. Ela, Toni, Aymar e Bia são obrigados a caminhar pela selva, sem rumo, nem comida. Vão com Mon de Ferro, um menino soldado ruim, traumatizado, com medo de gostar, com medo que não gostem dele.
O filho bebé, que Fátima carrega nas costas, morre no mato, com estilhaços de uma mina.
Só restam os cinco quando, dois anos depois de vaguearem no mato, chegam à República das Crianças.
Fátima vem dorida, magoada, cheia de lutos por sofrer.
Quando entram na cidade dos miúdos não vêm nada, tal como os adultos, incapazes de distinguir a cidade do mato. Mas Nuta e os amigos vêem-nos.
Diz Nuta a outra criança, “da última vez que acolhemos desconhecidos armados, lembras-te quantas crianças perdemos?”. O medo está latente. Na República das Crianças, os miúdos estão a salvo, mas nunca se sabe o que os estranhos podem trazer. Só mais tarde, quando se instala, é que o grupo de Fátima consegue ver que afinal há ali vida, civilização, vida.
Naquela cidade, há médicos, água, comida, camas verdadeiras, chuveiro.
O objectivo dela é fazer com que o grupo dos cinco seja aceite na comunidade e nunca mais retornar ao mato. Um dos presidentes da República, um menino diferente todos os dias, diz-lhe que ficam todos ou partem todos. E para ficarem têm de se dar bem.

Fátima terá de perdoar a Mon de Ferro, personificação da guerra que lhe matou os pais e o filho.

“Eu estava habituada aos papéis de bruxa ou rainha que fazia na escola. A Fátima é uma mulher, já não é criança, inocente como nós. É independente e forte. Ela perdeu os pais e o filho, está cansada de viver no mato, e quer começar de novo, com as crianças. Os adultos fizeram-lhe muito mal, ela já não acredita neles”.
Joyce Simbine Saiete tem 17 anos, e está na escola americana. É moçambicana de classe alta, com pouco ou nada a ver com Fátima. Para entrar na personagem, imaginou a morte da mãe e assim entrou no desespero da personagem. “Eu nunca tinha feito cinema, só teatro na escola. Mas desde pequena que sei que é isto que quero fazer na vida. Não é por causa da fama. É porque, em cada filme, as pessoas são diferentes. As actrizes podem ser muitas pessoas ao mesmo tempo”.

Cena “Desfile de Carnaval”

Quase no fim do filme, há um grande desfile de carros de combate em cartão, a comemorar o aniversário do fim da guerra dos adultos.
Há música, festa, as crianças acolhem os especialistas que vieram para a ocasião. Estes personificam os representantes da Organização das Nações Unidas, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, e as restantes parecidas. No filme, são crianças, como as outras.
Na festa, ninguém entende o que os especialistas discursam, mas todos batem palmas, com alegria. No pódio de honra não faltam os bustos dos heróis de Flora Gomes: Amílcar Cabral, Samora Machel, Agostinho Neto, entre outros homens que morreram sem ver o sonho concretizado.
Vem um vento forte, leva as imensas folhas dos discursos intermináveis dos especialistas. Eles abandonam o pódio, quase assustados pela multidão em festa.
Esta cena é gravada na rua do Bagamoio, também conhecida entre os homens moçambicanos como a rua da vergonha ou a rua das altas temperaturas, por ser um pólo de prostituição. Em suaíli [falado por cerca de 50 milhões de pessoas no leste africano], Bagamoio quer dizer “o sítio onde deixei o coração”.
A equipa de produção chegou àquela rua às cinco da manhã. Só às sete conseguiu limpar tudo para se começar a preparar o cenário. Começaram então a chegar as crianças, dezenas, pequeninas, sem experiência nenhuma, que pediam para ir à casa de banho, que tinham fome, que se aborreciam à espera do grito de “vamos gravar!”. E um filme é 90 por cento de espera, dez de acção.

Guilherme Mendonça e Vítor Gonçalves – directores de actores e casting

Depois de um longo processo de procura em escolas, bairros de Maputo e companhias de teatro moçambicanas, a direcção de actores conseguiu enfim listar quatro crianças para cada papel principal. Ou seja, nove personagens.
Começaram então a pôr em prática O Método.
“A questão de passar as emoções é sempre complicada. E eu acredito que o actor não precisa de sentir o que o personagem sente. Desde que passe para o ecrã aquilo que o personagem está a sentir. O próprio actor pode estar a sentir algo completamente diferente”, admite Guilherme.
O Método começa com um jogo físico que deixa os actores exaustos. Aí as suas defesas psicológicas baixam. Depois começa o director de actores: “Diz o texto ao mesmo tempo que fazes isso”. O actor faz mal, está cansado, já não se lembra das falas. “Fizeste mal porquê? Diz o texto, já não te lembras? Estás cansado?”.
A violência é psicológica. As perguntas saltam umas depois das outras, sempre a espetar agulhas, a deitar abaixo. No fim, o actor chora e grita. “Parece uma esponja, é aquilo que queremos. Nessa altura dizemos ‘lembras-te do que sentiste por mim quando eu gritei contigo? Agora diz a frase’”.

A emoção da raiva, da dor, da impotência, o medo de não fazer bem tudo se resume àquele momento em que o actor diz a frase, a suar, com lágrimas nos olhos. É assim que Fátima parece desesperada com a morte de um filho que nunca teve. É assim que Mon de Ferro chora a infância perdida numa guerra de adultos. É assim que Nuta teme as explosões de um ataque que não ouviu.
O mito dos leigos de pensar que os actores sentem o mesmo que as personagens era quase impossível de ser real já que as cenas, em qualquer filme, não são gravadas em sequência. No fundo, como os dois directores de actores dizem, “não há nada de artístico no trabalho artístico”.
Tanto Vítor como Guilherme nunca tinham tido uma experiência profissional com crianças. E admitem que “os miúdos são mais complicados, problemáticos. Os pais interferem demasiado, são difíceis de gerir”. Mas ainda assim, Guilherme admite que “o resultado foi eficaz. Fomos capazes de subordinar os seus espíritos para aguentarem a dureza de uma rodagem. Há uma grande violência no facto de se trabalhar com crianças. Num minuto eles estão neste mundo e, no minuto a seguir, são esquecidos, deixam de ser o centro das atenções, voltam à escola, ao dia a dia”.

Flora Gomes –realizador

“As mensagens que eu tento passar nos meus filmes não são as de realizador, mas as de um homem, um africano. Uso uma linguagem universal, não sou intelectual, sou um sonhador”.
Em Maputo, todos os dias, na cabeça de Flora Gomes, sempre, sempre, sempre, um boné a dizer Guiné-Bissau, o seu eterno amor.
Flora Gomes é um homem como já não existem. É sonhador, como ele diz, mas é de um sorriso tão rápido, de uma mão tão rapidamente estendida para o cumprimento, de um elogio tão pronto, de uma humildade tão verdadeira que devasta o seu interlocutor. É um homem que acredita nos seus heróis, que chora por eles, que não abandona o seu passado, a sua herança, o seu continente africano. Que ama a vida e os homens.
“Neste filme, eu falo do facto de África estar afogada numa violência de golpes de Estado. Quando se pensa em África são só doenças e violência. África ainda tem muita coisa para fazer”. É por isso que Flora Gomes acredita que os africanos têm de se unir, porque passaram pelo mesmo caminho. Unidos, mas cientes das diferenças culturais e históricas de cada país, nacionalidade. “Ser africano é acreditar no futuro, é ser como os homens que se sacrificaram por nós, mesmo os anónimos. O passado está sempre connosco. Não se esquecem 500 anos de críticas, de acusações de que não somos capazes, de que não somos capazes de nada. Quando se quebrou a corrente da colonização é que as pessoas começaram a pensar e a sentirem-se capazes. Nós somos muito mais capazes do que os que acham que não somos. Mas ainda temos esse problema. Achamos que os outros é que estão certos. Não devemos copiar outros continentes ou países. Se há um povo que virou a página no mundo e que aprendeu a perdoar foi o africano”.

Flora Gomes não esquece o passado. Na mochila psicológica, traz sempre os homens que lhe deram vida, história, força. Amílcar Cabral, Samora Machel, Agostinho Neto. Os bustos de quem fez questão de colocar no filme, nas gravações do desfile de recepção aos especialistas. Emocionado, conta que Amílcar Cabral dizia, quando lutava no mato, que o inimigo era a colonização, não o branco. Foi essa iluminação, essa abertura, essa sensatez que apaixonou Flora Gomes. Hoje, diz que esses homens eram demasiado bonitos para sobreviverem.

Nos seus filmes, há sempre histórias, vidas, mundos que nos fazem pensar. São heranças do seu amor pelos heróis, e, ainda assim, Flora não crê estar a continuar, nem à sua maneira, o trabalho daqueles lutadores. Pergunta, humildemente, “quem sou eu para fazer o que eles fizeram, para continuar o que eles começaram?”.
É Flora Gomes, homem forte e decidido, que luta por aquilo que quer, e acredita até à morte no amor aos homens e a África. A sua África. A África que devia ter sido. A África de todas as cores, do respeito pelo outro. A África orgulhosa de si própria. A  África que acredita que é capaz. “Imagine a cidade das crianças como a nossa casa. Quando se convida alguém para ir a nossa casa e essa pessoa estraga, ninguém gosta. Os adultos estragaram. Os forasteiros (Fátima, Bia, Aymar, Toni e Mon de Ferro) foram olhados com desconfiança. Houve quem não os quisesse lá, mesmo sabendo que eles teriam de voltar para uma vida doída no mato. A República das Crianças também fala de tolerância e de perdão. Não podemos julgar todos pelos actos e pensamentos de um”.
Não é por acaso que existem personagens sem nome, só chamados de especialistas, no filme. É um piscar de olhos que Flora lança aos organismos internacionais. Para o realizador, estas instituições trazem os seus dogmas de países ocidentais onde a democracia funciona, e limitam-se a considerar que basta haver eleições para tudo se encaminhar. É um esquema pensado, montado. Uma verdade absoluta que, se não funciona, bloqueia qualquer outro processo de ajuda. Mais uma vez, o realizador diz que “por mais pequena que uma nação seja, tem a sua identidade, tem homens que devem ser respeitados. O mundo não é todo igual”.
A rodagem deste filme devia ter começado muito mais cedo, em finais de Setembro de 2009. Começou em Junho de 2010. Mas como o realizador diz, “o meu nome é Flora Gomes, venho de um país pequeno. Quando fazemos um filme de uma hora, precisamos de outros 60 minutos no genérico só para os agradecimentos”. Filme africano não sai nas grandes salas, não tem distribuidor, e consequentemente tem pouco dinheiro. Os filmes de Flora estiveram, no entanto, em vários festivais internacionais, caso de Po Di Sangui (1996), nomeado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes, e Nha Fala (2002) candidato ao Leão de Ouro no Festival de Veneza 2002, tendo recebido o Prémio Citta di Roma – Arco Íris Latino e o Prémio Lanterna Mágica. A notoriedade dá mais facilidades ao realizador moçambicano, mas ainda assim, admite, cada filme é uma aventura.