Luís Gonzaga Gomes: filho-rei-da-terra

Luís Gonzaga Gomes foi a mais misteriosa personagem nascida e vivente em Macau durante o século passado. E, por misteriosa, foi a figura que mais atenções conclamou durante os últimos trinta anos
Luís Gonzaga Gomes: filho-rei-da-terra

Quem se furta ao mundo acaba por conquista-lo, quem se recolhe do seu tempo conquista o tempo vindouro. Hoje, uma aura de fascinante  curiosidade endoura a sua personalidade recolhida e discreta o seu vulto que deslizava a passos lentos, como levitado, a sincronizar a vida exterior e corrente ao seu próprio ritmo. Avesso a funçanatas sociais encanava todos os momentos ao seu serenamente intenso labor porque ele sabia que tinha que apressar-se lentamente para cumprir um destino e uma obra na terra onde lhe calhou nascer. De todos os astros que costumam convocar-se a inclinar o nosso destino é a terra onde nascemos a mais influente estrela no nosso fado.
Luís Gomes nasceu em Macau, pequeno ponto amuralhado no mapa do globo terrestre; teatro de encontro de dois grandes universos culturais, ainda tão distantes e deconhecidos. E logo pensou lançar pontes, transcender limites, ir respirar mundo para o trazer intra-muros. Para tanto foi antena de recepção  e transmissão de notícias, novidades, de informações, fontes documentais e memórias, da herança musical da humanidade.

 

 

Vi algumas caixas do seu espólio no Arquivo Histórico: na anarquia dos materiais impressionava a densa correspondência com tantas instituições culturais, investigadores, autores de todas as partes do mundo. Com ele  a pequena Macau era internacional. Ei-lo a antecipar a internete centrado na teia-de-aranha das interligações produtivas.
Porque Luís Gomes amava como ninguém a sua terra: se tivesse, como em antigos tempos de entrega e ousadia, uma  empresa própria dele e polarizante da sua vida, a sua legenda teria sido ”dedicação e serviço”.
O destino deu-lhe a graça que têm raros de ser em vida reis na clandestinidade. Com serena dedicação tenaz, foi sendo tudo, em tudo intervindo, participando, influenciando, repuxando em mãos os fios de manipulação de todas as  peças de uma cidade como num teatro de fantoches: ele foi professor, investigador, historiador, etnógrafo, jornalista, tradutor, poliglota, sinólogo, escritor, bibliotecário e arquivista, coleccionador de arte e museólogo. Ele foi tudo e em toda a parte: filho-rei-da-terra.

A vocação e os mestres

Adolescente, teve no Liceu de Macau como professores gandes mestres que lhe instilaram a centelha das letras: D. José da Costa Nunes, Humberto Avelar, Manuel da Silva Mendes, Camilo Pessanha (com quem não teve relação de simpatia, como lhe ouviu Túlio Tomás).
Logo se sentiu atraído  à tertúlia que publicou o primeiro jornal de alunos “A Academia”. Aí sobressaiam os três irmãos Pedro, Hernrique e Joaquim  Paço D’Arcos. Nas “Memórias da minha vida e do meu tempo” este grande romancista recorda com saudade “o nosso companheiro e futuro e devotado historiador da presença portuguesa em Macau e no Oriente“, confessando uma camaradagem e uma amizade que resistiu a muitas dezenas de anos. Ali fez Luís Gomes a sua estreia literária com um artigo sobre Benjamim  Franklin, num tempo em que se fazia a pedagogia das grandes personalidades excepcionais, pelo influente mestrado de Thomas Carlyle.

 

 

O historiador – a importância da memória

Autor de apenas um volume monográfico (“Páginas da História de Macau”) foram no entanto a investigação e a divulgação históricas o seu mais substancial núcleo de acção. O grande historiador de Macau, Padre Manuel Teixeira disse dele ter sido ”o melhor e mais profícuo historiador macaense nestes quatrocentos anos de vida desta terra…” É que Luís Gomes publicou centenas de artigos em jornais e revistas especializados sobre vastos temas da história de Macau e de Portugal no Extremo Oriente. A prova do seu enorme fôlego de investigador e colector de fontes, reconhecido pelos padres Manuel Teixeira e Benjamim Videira Pires, está na publicação dos “Arquivos de Macau” projecto intermitentemente abandonado  e que só nas tenazes mãos de Luís Gomes teve 24 números editados em sequência ininterrupta, publicados em vários volumes do Boletim da Filmoteca Ultramarina Portugesa. Foi fundador e Director do Boletim do Instituto Luís de Camões, chefe de redacção da revista “Renascimento”, redactor e secretário do jornal ”Notícias de Macau”, títulos onde vazou incontáveis artigos de temática histórica e também etnográfica, e onde afirmou também  a sua acção editorial.
Para ficar registada a memória da sua acção na tradução historiográfica bastava referir três trabalhos seus: do italiano e do frnacês traduziu “Relação da Grande Monarquia da China” (exposição da grande arquitectura político-social do Império do Meio, do Padre Álvaro Semedo, em dois volumes) e “Nova Relação da China” (do padre Gabriel de Magalhães), obras de jesuitas portugueses nunca antes publicadas em língua portuguesa, em razão da ânsia de conhecimento da China em que vivia a Europa. Mais impressionante foi a versão para língua portuguesa do raro e famoso “Ou Mun Kei-Leok” (2 Volumes), obra de dois mandarins que vieram a Macau no Século XVIII como observadores e lá reportam as suas observações  e informações. Lá constam entre tantos elementos  informativos fontes interessantes para o património lexical do patuá.


O pontífice

Sim pontífice no puro sentido de fazedor ou construtor de pontes, liberta a palavra da conotação eminente que lhe vem asssociada. Epíteto justo para quem centrou a sua vida na inesgotável e árdua tarefa de operar o intercâmbio cultural luso-chinês, na fidelidade e actualização da mais genuína vocação e identidade de Macau.
Tendo estudado a língua chinesa na antiga Repartição do Expediente Sínico, foi armado dessa imprescindível ferramenta de trabalho que partiu à sua tarefa de intercomunicador. Ei-lo pioneiro na tentativa de sensibilização e autor da proposta para o ensino da língua chinesa no programa curricular do Liceu Infante D. Henrique. Militante desta causa, é acompanha-lo na organizaçãode duas colecções lexicais para uso prático: o ”Vocabulário Cantonense-Português” e o “Vocabulário Português-Cantonense”. Identicamente, aquando Director dos CTT, preparou materiais de apoio ao aprendizado do Chinês pelos alunos da escola dos Correios.
Traduziu para Chinês  as versões resumidas dos ”Lusíadas” e da “Mensagem”, e analogamente fez um resumo da História de Portugal (Pou Kuók Si-Leok) que divulgou em versão chinesa.
Muito sensível às artes, também neste campo não deixou de concentrar atenção às mútuas influências  tendo publicado estudos sobre “A arte europeia na corte de K’in Long”, ”A influência chinesa na arte europeia do século XVIII”, ”A influência estrangeira na arte chinesa”, ”Portugal e a arte chinesa”.
Incansável na curiosidade e na investigação, escreveu mais de cento e cinquenta estudos de temática etnográfica para dar a conhecer à cultura portuguesa e à comunidade portuguesa de Macau as tradições, contos, lendas, memórias, costumes, festividades e mundividência chinesas.
Foi quando iniciou no “Notícias de Macau” um programa editorial onde reuniu aqueles artigos em vários volumes: ”Lendas chinesas de Macau”, “Contos chineses”, “Chinesices”, ”Curiosidades de Macau antiga”, ”Festividades chinesas de Macau”.
Antes dos extraordinários trabalhos do grande sinólogo jesuíta  P. Joaquim Guerra, Luís Gomes dedicou-se também à tradução para Português dos mais consagrados clássicos da literatura da China de Confúcio e Lao Tze.

 

O “Mil-Ofícios”

 

 

Não houve sector relevante da administração pública e instituição cultural ou desportiva de Macau onde não tivesse deixado a marca da sua passagem. Destacamos apenas o seu empenho como secretário na Comissão do Património, Director da Biblioteca Nacional e primeiro Curador do Museu Luís de Camões (antecedente do actual Museu de Artes de Macau).

A Música foi durante a sua vida o seu “violino d’Ingrès”. Apaixonado musicólogo, na Emissora de Radiodifusão de Macau, na Academia de Música ou no Círculo de Cultura Musical foi protagonista da maior operação de divulgação da cultura musical em Macau durante decénios. Foi violionista e cantor no Grupo de Amadores de Teatro e Música, trouxe a Macau solistas de prestígio internacional. Como tenista representou Macau em competições em Hong Kong.
Tão vasta obra e serviço poderiam resumir-se nisto: Luís Gonzaga Gomes foi no século XX o grande continuador e actualizador do movimento da sinologia europeia e portuguesa, iniciado em Macau no século XVI e emurchecido e interrompido a partir de finais do século XVIII. E foi o mais completo, dedicado e profícuo agente da secular operação de intercâmbio cultural luso-chinês. Quem se atreverá a igualá-lo?