Notáveis dinossauros

Foi pela estrutura intelectual de alguns dos seus ilustres pares que os macaenses se distinguiram e marcaram um lugar na História. Pedro Nolasco da Silva, José Vicente Jorge, Luís Gonzaga Gomes e Carlos Assumpção são exemplos entre muitos dessa realidad

 

O investimento nestes traços de identidade – o patuá, a gastronomia, o teatro de costumes – resume tentativas de afirmação de uma cultura minoritária mas traem, ao mesmo tempo, a imagem de pujança no que toca às lideranças e à ausência de uma elite significativa capaz de dar cartas no tabuleiro do que, realmente, conta na vida da cidade: a política e, claro, os negócios. Esta espécie de orfandade é um sentimento recorrente entre a comunidade.

Diplomacia por excelência

 

O argumento da ausência de uma elite intelectualmente preparada para assumir a causa macaense é recorrente. Daí a importância de figuras, raras na história de Macau, como a de Carlos Assumpção. O advogado, falecido em 1992, ainda hoje constitui para a maioria dos macaenses um ícone na paisagem política local. Provavelmente, por ter personificado, mais do que ninguém, em tempos recentes, a eloquência intelectual, a agilidade política, e essa capacidade sempre alvitrada de gerar consenso e de estabelecer diálogo e pontes entre comunidades. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, esteve envolvido na crise do “1,2,3” de 1966, durante a Revolução Cultural, onde assumiu um papel activo nas negociações com as autoridades chinesas. Foi membro da Câmara Corporativa de Portugal, chegando à revolução de Abril, de 1974 com um prestígio quase que intocável. Esteve na redacção do Estatuto Orgânico de Macau, nas reformas legislativas, aconselhou uns governadores, enfrentou outro. Reticente, acabou ainda por integrar a Comissão de Redacção da Lei Básica de Macau. E foi, além disto tudo, durante 16 anos, presidente da Assembleia Legislativa. Assumpção era o líder. Na sua própria dimensão, surgia na linha daquelas personalidades que, na vida cívica de Macau, foram capazes de estabelecer, com grande eficácia, plataformas e consensos entre o poder português e as lideranças chinesas. A exemplo de Pedro Nolasco da Silva, José Vicente Jorge ou Luís Gonzaga Gomes. Todos figuras formadas na escola de tradutores-intérpretes da Repartição do Expediente Sínico, criada em 1885 e que uma verdadeira elite, de algum modo irrepetível.

 

Artes, Letras e Leis

 

Pedro Nolasco da Silva, principal intérprete e responsável pelo Expediente Sínico, elaborou vários textos de apoio aos tradutores-intérpretes – Grammática Prática da Língua Chineza, de 1886, Bússola do Dialecto Cantonense, de 1912, sendo a mais avultada obra a de 1902, Manual da Língua Sínica Escripta e Falada.
Na mesma linha se colocou outra das grandes figuras de referência da exígua intelectualidade macaense do século passado. José Vicente Jorge, que chegou a ser chefe do Expediente Sínico, traduziu e fez anotações do San Tok Pun – Novo Methodo de Leitura, também dois volumes, datados respectivamente de 1907 e 1908, além do trabalho exaustivo de diplomacia e tradução.
De grande relevo cívico e cultural foi a figura de Luis Gonzaga Gomes, nascido em Macau a 11 de Julho de 1907 e falecido a 20 de Março de 1976. intérprete na Repartição Técnica do Expediente Sínico desenvolveu ainda um percurso na área da pedagogia e do ensino de alcance memorável. Foi professor e director da escola primária oficial “Pedro Nolasco da Silva”, dirigiu a Emissora de Macau, o Centro de Cultura Musical e foi Conservador do Museu Luís de Camões, antecedente do actual Museu de Arte.
Além de uma actividade diversificada em funções de carácter público, é autor duma vasta bibliografia, traduzindo literatura chinesa para português e publicando também em língua chinesa. Sinólogo, a Gonzaga Gomes se deve uma prolífica edição de manuais de apoio a estudantes, incluindo vários dicionários, e a divulgação dos costumes e tradições chineses. É considerado um dos grandes vultos no estudo apurado das comunidades portuguesa e chinesa de Macau. (ver artigo sobre Luís Gonzaga Gomes nesta edição).E, depois, a “instituição” Henrique Senna Fernandes, advogado, é o patriarca da comunidade macaense. Ilustre tribuno, decano dos advogados locais, acompanhou o século XX, experimentando as provações e os sucessos da terra, as crises e a prosperidade, a paz e a mudança. Apesar do êxito profissional, Senna Fernandes, filho excelentíssimo de uma família aristocrata de Macau, aplicou-se na literatura e na escrita de livros ambientados na pequena cidade de meados do século, tematizando as classes, os tipos, as relações, os afectos, os amores e os desencontros.

“A História diz-nos que a comunidade macaense não está em perigo de extinção e que irá sempre adaptar-se e sobreviver e acomodando-se porque a comunidade sempre foi assim”

Força de Vontade

 

É esta genealogia de personalidades, cultas, civilizadas, informadas, curiosas, ideologizadas, acumulações de vários mundos, que se interrompeu. Os tempos são outros, democráticos e avessos a lideranças ou protagonismos carismáticos, mas de algum modo esse sentimento de orfandade, e correspondente perda de influência, domina o íntimo de cada um. É, especialmente, vísivel no discurso dos macaenses que hoje pontuam na classe política, ou nas associações de matriz portuguesa. Figuras criadas por Carlos Assumpção, como Leonel Alves, de nacionalidade chinesa, advogado, deputado à Assembleia Legislativa, membro do Conselho Executivo da RAEM e da Conferência Política Consultiva do Povo Chinês, um dos epígonos da comunidade; gente de famílias reputadas, como Miguel Senna Fernandes; cultivados no estertor da administração portuguesa como Anabela Ritchie, sucessora de Assumpção na presidência da Assembleia Legislativa e José Luís Sales Marques, da Fundação da Escola Portuguesa; self made men como Jorge Fão, Pereira Coutinho; ou figuras que se afirmaram profissionalmente a exemplo de Carlos Marreiros, José Celestino Maneiras, Edith Silva, ou António José de Freitas. Entre outros. Nomes que coincidem com os protagonismos políticos desta última década e que marcaram presença nas iniciativas de maior visibilidade pública da comunidade. Desde os vários actos eleitorais – de infeliz memória pelos fracos resultados nas urnas -, à criação de associações, movimentos (ou movimentações), a tomadas de posição em defesa de causas públicas. Estas iniciativas sempre se recolheram à sombra da grande causa da continuidade e a defesa da identidade macaense. Em poucas palavras, o instinto de sobrevivência voltou a funcionar.Se a História traiu os macaenses, os macaenses não traíram a História. “Julgo que o nosso dinamismo vai continuar por muitos e muitos anos porquanto a história de Macau não pode ser escrita sem os macaenses, neste caso os mestiços, quer se gostem deles ou não”, assinala, lacónico, Jorge Fão, um dos dirigentes históricos da numerosa Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas (APOMAC), fundador e, mais tarde, presidente da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM) e deputado à Assembleia Legislativa da RAEM entre 2001 e 2005.

 

Luís Gonzaga Gomes

Presença política

 

A constituição do Conselho das Comunidades Macaenses, em 2006, e os sucessivos encontros de macaenses no exterior representam o exemplo mais óbvio, que não único, desse dinamismo. Mas é o mais singular da capacidade de mobilização que a comunidade apresenta. Os estatutos falam da promoção dos laços das comunidades entre si, da intensificação das relações com a RAEM, na organização de colóquios, encontros, congressos, numa linguagem que tenta fazer, acima de tudo, uma prova de vida da comunidade. Este ano, em Outubro, está marcado novo Encontro de Comunidades que acontecem desde 2001, entre viagens de memória e apelos aos descendentes mais jovens para que prossigam o legado da comunidade. É essa afinal a preocupação que atravessou estes anos. E depois do adeus, o quê?
As estratégias têm divergido conforme os ciclos e os protagonistas. Os sucessivos projectos eleitorais Por Macau, em 2005, e a “Força Plural, em 2009 resultaram em dolorosos confrontos com a realidade.
“Julgo que um projecto político-parlamentar é sempre útil para a manutenção da nossa influência a todos os níveis na RAEM, observa Jorge Fão que, em 2009, não esteve com a lista identificada com o projecto macaense. “Todavia para atingir este objectivo as estratégias delineadas por cada grupo, ou segmento da nossa comunidade, seguiram percursos diferentes, o que é natural numa sociedade livre e aberta. No meu caso, em concreto”, prossegue, “e, fazendo uma rápida retrospectiva do meu passado político, permite a qualquer um perceber que sempre defendi que a aliança com outras forças sociais seria o melhor percurso para o futuro da comunidade, mais não seja para demonstrar que não somos xenófobos e que também partilhamos os mesmos sentimentos e preocupações dum residente permanente de Macau, seja ele chinês, português ou macaense”.
José Pereira Coutinho, presidente da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau e deputado reeleito da actual legislatura da RAEM, corre em pista própria. Sustenta que “as comunidades portuguesa e macaense devem esforçar-se por estarem integradas no meio social local e tentar sobressair junto delas pelas suas singularidades, competências e brio profissional, de modo que qualquer liderança política tenha de ser concertada com outras forças políticas de outras comunidades locais”.

Carlos Assumpção

Futuro assegurado

 

Miguel de Senna Fernandes, um dos apoiantes do projecto de raiz macaense, nas últimas legislativas defende o projecto especificamente étnico. A candidatura de listas macaenses é sempre de louvar por ser uma manifestação de participação cívico-política da comunidade. É certo que os resultados [de 2009] não foram nada felizes. No entanto, isso em nada invalida o sentido participativo pois trata-se, acima de tudo, de um exercício (colectivo) de cidadania.”Política sim, mas “a sobrevivência da comunidade não depende de nenhum projecto político específico, nem de alianças. Ela existe enquanto subsistir um espaço sociocultural que lhe é destinado, e que a RAEM (diga-se também o Governo Central da RPC) quer respeitar, conclui.
Assombrada pelo fantasma da dissolução, agora como há dez anos, esta geração mais velha de macaenses repousa as suas expectativas na consciência das gerações estacionadas entre os vinte e os quarenta anos. É um fantasma recorrente, este, o da dissolução. Sales Lopes desdramatiza: A História diz-nos que a comunidade macaense não está em perigo de extinção e que irá sempre adaptar-se e sobreviver e acomodando-se porque a comunidade sempre foi assim. “Sobreviveu em todos os âmbitos da sua existência porque soube adaptar-se, constantemente. E da adaptação vem a sobrevivência. É uma característica do próprio macaense”, observa, enfim. “Historicamente, Macau é fruto duma negociação diária.