Na China o vermelho é, sem sombra de dúvida, a cor mais auspiciosa, embora as outras cores também tenham um papel importante. O vermelho raramente aparece sozinho, mas é predominante nos vestidos das noivas e nas fachadas dos monumentos religiosos e oficiais, o que por si só é extremamente significativo, desde que se tenha presente ser o mundo chinês rico e variado como um banquete festivo, pleno de colorido. E porque estas são muitas e têm várias leituras, é melhor procurar pontos de referência simbólicos.
Comecemos pela bíblia chinesa que é o Clássico das Mutações (Yijing «易经»). Recorde-se então a cor dos oito trigramas básicos, as forças que atravessam tanto o universo como os seres naturais. Os oito trigramas são, pela ordem tradicionalmente atribuída a Fuxi (伏羲), o inventor mítico delas: o Céu (Qian 乾); o Lago (Dui兑); o Fogo (Li离); o Raio (Zhen 震); Vento (Xun 巽); a Água (Kan 坎); a Montanha (Gen 艮) e a Terra (Kun 坤). Como se relacionam as cores e as energias que presentificam as forças naturais?
O Céu, o poder criativo máximo, simbolizado por um cavalo ou por um dragão, é branco. Portanto a cor branca, que é também a do luto, representa um momento de passagem, de criação ou preparação de uma nova ordem, tendo como correspondentes naturais, o gelo e a cabeça. Numa leitura social e, portanto, confucionista do Yijing, é a cor pai. Do ponto de vista estético, abriga todas as outras. Segue-se, o vermelho, a cor do segundo trigrama, que é o Lago ou o Paul, numa leitura chinesa. Ora o Paul representa a alegria, a filha mais nova, um pulsar de existência, que podemos encontrar nas águas um pouco lodosas e habitadas por todo o tipo de vida, aquática, celeste e terrestre. Os seus correspondentes naturais são a boca e a névoa. O vermelho é a cor do mundo, que os chineses tanto gostam de habitar e para o qual pedem protecção nos seus templos aos antepassados, deuses, budas e bodhisattvas, enfim a todos os que possam ajudar a criar alegria e riqueza na terra.Vemos a seguir o Fogo, um laranja vivo, cujas características são o brilho, a dependência e a inteligência. Corresponde-lhe o olho, o relâmpago e o sol. É uma cor que transmite grande energia a quem a vê ou usa. Porém, mais energia do que o Fogo laranja, cujo representante é a filha do meio, só podemos esperar encontrar no amarelo do Raio, o filho mais velho, aquele que sai, assim por dizer, da boca do dragão. Mais energia, porquê? Porque o amarelo é mais forte do que o laranja, que tem a mistura do vermelho, uma cor feminina, muito pertencente ao lado yin do Yijing.
O amarelo, tal como o branco, é todo ele feito de força masculina, pleno de criatividade. Por isso é apresentado como um raio sempre em acção: não surpreende que os seus correspondentes naturais sejam o pé e o vulcão.
Vem depois o Vento, a filha mais velha, verde, suave e gentil, como uma árvore, ou até, uma simples planta a baloiçar ao vento. O verde transmite um sentimento de grande tranquilidade a quem o usa ou está no meio dele. É a cor das matas e das florestas, de todos os campos, ele, cujo elemento é a madeira, corresponde ao ar em termos do zodíaco ocidental.
Além da madeira, encontra também a sua ligação física no corpo humano à anca, que oscila. Depois da flexibilidade do Vento, surge o sexto trigrama, o azul da Água, cujos principais atributos são o abismo e o perigo, ou não fossem os chineses maioritariamente campestres. O azul, que noutras culturas, por exemplo na budista tibetana, representa a inteligência e o poder de cura, liga-se nos descendentes do Dragão aos mistérios insondáveis da força abissal, tendo como elementos naturais, o ouvido e a lua. Ele é, nesta interpretação do Clássico das Mutações, uma força muito próxima do preto, que é a cor da mãe, apesar de a Água ser representada pelo filho do meio, segundo as palavras da escola confucionista.
Chega então a Montanha, o sétimo trigrama, com a sua cor tranquila e silenciosa, o violeta, que se liga à meditação, aos santos, mas também à força férrea e obsessiva de todos aqueles que não querem ou não se podem mover.
É o filho mais novo. Tem como correspondentes a mão e a porta, que tanto pode abrir oportunidades como encerrá-las.
O violeta e tons afins nunca poderiam subsistir sozinhos, pois precisam da aliança de outras cores, que lhes transmitam o dinamismo e o movimento em falta.
Por fim, encontramos a força da terra, preta, tranquila, receptiva e silenciosa, que tem como correspondentes naturais, a barriga e a carroça. O preto é, na leitura daoísta, extraordinariamente positivo, porque representa a cor que se apaga para que todas as outras possam brilhar. O preto é a cor da fêmea misteriosa, flexível e sábia, mas também a força da égua e, sobretudo, do búfalo, animais que aguentam as maiores provações, em nome de um bem maior, um ser natural, que pode reconduzir ao Dao.
A omnipresença cultural do vermelho
Veja-se, com a ajuda de Wolfram Eberhard (1983) e da tradição chinesa geomântica, mas também da filosófica, a posição tradicional das cores. O branco (baise 白色) simboliza a pureza, a criatividade de uma nova ordem, o Oeste e a morte. Na geomancia é o tigre branco (Bai Hu 白虎), par complementar do dragão verde (Qing Long 青龙). O branco do ponto de vista religioso, e sobretudo se pensarmos no Budismo Chinês, figura a virgindade e a pureza da Bodhisattva Guanyin (观音), na metamorfose da Guanyin de Branco (Bai Guanyin 白观音). O verde (lüse 绿色) é a cor da vida, do crescimento e do Este. Na geomancia representa o dragão.
O laranja (juhuangse 橘黄色) é uma cor extremamente auspiciosa. No fengshui (风水) pertence à paleta das cores quentes. É uma cor criativa, não apenas da energia, mas ainda, e por homofonia, da felicidade, porque o ju (橘) de laranja se aproxima de zhu (祝) dos votos e rezas para a boa sorte.
O amarelo (huangse 黄色) é a cor do raio e, portanto do movimento e da metamorfose, representa o Centro e a China, que é o País do Centro (Zhongguo 中国). O amarelo simboliza sobretudo o progresso e a fama, tendo sido adoptado, a partir do século VI, como cor imperial. Dado a sua associação natural ao movimento, pode ainda expressar agressividade.
O azul (lanse 蓝色 ou qing 青色) do ponto de vista filosófico liga-se ao perigo, na estética aos maus temperamentos e aos fantasmas, mas na cultura tradicional pode simbolizar posição alta e destaque social, por isso a cor representa ainda o estudo e a literatura.
O púrpura (zise 紫色), muito próximo do vermelho que os chineses tanto apreciam, liga-se ao imperador e à Montanha filosófica, na estética representa a lealdade inabalável dos bons oficiais.
O preto (heise 黑色) do Norte e do Inverno relaciona-se filosófica e culturalmente com o feminino, tendo sido atribuído à primeira dinastia chinesa, Xia [夏(c. 21 a 16 a.C)], a que estava mais próxima da sociedade pré-histórica matriarcal. Na estética encontramos faces pintadas que representam homens simples e honrados.
E, finalmente, o vermelho (hongse 红色), que para os chineses é a cor da vida, mais do que para qualquer outro povo, dada a presença e insistência cultural. O vermelho é ainda a cor do Sul, do Verão e da primeira grande ordem patriarcal, estabelecida pela dinastia Zhou [周(c. 1050-256)], que Confúcio e a sua escola absorveram e transmitiram. É uma cor sagrada que se relaciona com o Deus da Literatura e da Guerra, Guandi (关帝). Este deus masculino e vermelho, viveu no séc. III, nos finais da dinastia Han (汉), tendo sido gradualmente santificado e transformado no Deus da Guerra. Como cor da guerra surge ainda em conexão com a revolução, tendo sido usada e abusada durante a revolução comunista e, sobretudo no período maoísta, na vida e no palco. Neste último ficaram famosas peças de propaganda exibidas em 1964, como O Este é Vermelho (Dongfang Hong东方红), O Destacamento Vermelho das Mulheres (Hongse Niangzijun 红子娘子军) e Lanterna Vermelha (Hong Deng 紅灯).
Além de simbolizar a vida e a guerra, o vermelho surge relacionado na estética e na vida com a virtude da lealdade, mas também com os cargos elevados e a riqueza, já que é frequentemente a cor da veste do Deus da Prosperidade, que integra a trilogia dos Deuses da Fortuna, sendo composta pelos deuses da Felicidade (福), Prosperidade (禄) e Longevidade (寿).
Como referido anteriormente, o vermelho é ainda a cor do Paul filosófico, da filha mais nova, alegre e cheia de vida, que se prepara para casar, completamente trajada de vermelho. As faces são maquilhadas de vermelho e nos lábios usa um batom da mesma cor. Também na casa do noivo tudo é decorado a vermelho, dos rolos auspiciosos nas portas e janelas às lanternas. Tanto o vermelho como o verde, que são cores complementares, simbolizam a vida, daí a sua ligação ser considerada das mais afortunadas.
Nas primeiríssimas manifestações religiosas, as mais naturalistas, o povo chinês adorou o sangue e o fogo e desde então o vermelho manteve-se sempre associado à força de vida, sendo o melhor dos antídotos para o afastamento de todo o tipo de males e azares. Ainda hoje, e do ponto de vista astrológico, quando chega a altura do aniversário zodiacal, o festejado deve usar ao longo de um ano e diariamente qualquer elemento vermelho para afastar a má sorte. Além disso, e para o mesmo efeito, as crianças durante a infância ficam naturalmente protegidas pelo uso de chapéus, bibes e sapatos vermelhos, onde muitas vezes contemplamos o desenho de tigres vermelhos e dourados, também para eliminar a má sorte.
São muito populares todas as flores que contenham vermelho, como o botão da ameixieira, a peónia, etc, além de animais, tais como peixes ou carpas vermelhas.
Tradicionalmente, o vermelho era a cor da aristocracia e dos guardas imperiais, bem como das vestes e adereços deles. É ainda a cor da melhor arquitectura, que podemos encontrar em palácios e templos e, quando utilizada em edifícios particulares, indicava o elevado estatuto social dos seus moradores. Daí que se tenha tornado famoso o romance O Sonho das Mansões Vermelhas (红楼梦), onde se relatam as histórias, tantas vezes trágicas, das nobres senhoras que habitavam no interior das casas vermelhas. Este romance foi escrito durante a dinastia Qing pelo escritor Cao Xueqin (曹雪芹).
Era comum os artistas qualificarem as mulheres e as meninas com o adjectivo vermelho, que na arte mais do que símbolo auspicioso representava a beleza. Por isso uma menina muito bonita era descrita como «botão vermelho em flor» (hong baohua 红包花) e para as mulheres muitas vezes se recorria à expressão «vestido vermelho» (hongyi 红衣) e «maquilhagem vermelha» (hong zhuang 红妆). Ora tal foi o uso do termo que os artistas ligados ao mundo da literatura e, especialmente, da poesia, ficaram conhecidos por «mangas vermelhas» (hongxiu 红袖).
Recorde-se ainda como o vermelho simboliza o sexo e o amor, por exemplo nos filmes de Zhang Yimou (张艺谋), ou nos de Wong Kar-Wai (王家衛) In the Mood for Love e 2046.
O Vermelho (红) na língua chinesa
O vermelho (hong 红) é a cor da vida e, por isso, do mundo que nos torna alegres, mas também mundanos e agarrados à terra. É então de esperar que a cor surja associada ao melhor que o mundo tem e, igualmente, a sentimentos negativos provocados pelas próprias vivências mundanas. Para os budistas, que advogam a libertação do mundo, dos seus prazeres e sofrimentos, « a poeira vermelha» (hongchen 红尘) é o melhor qualificativo para a sociedade humana. Os seres giram entre alegrias e tristezas, enganados por uma poeira que os consome. Além disso, e do ponto de vista moral, o vermelho, quando surge em plena força, pode relacionar-se com estados exaltados, que revelem fúrias por ciúmes e invejas, logo a expressão «os olhos vermelhos» (hongyan 红眼), indica esse modo agressivo de se estar entre os outros.
Encontramos, ainda, o vermelho associado à beleza, embora esta pouco dure, como indica o provérbio «a formosura pouco dura» (hongyan yi shi 红颜易逝) e seja negativa para quem a possui, como podemos ler em «sofrer rasgadura, por ter formosura» (hongyan boming 红颜薄命). Quando o vermelho representa as mulheres e o sexo transforma-se, na língua proverbial, no maior dos perigos para os homens e, por isso, deparamos com a advertência «Do mar se tira o sal, da mulher muito mal» (hongyan huoshui 红颜祸水).
Mas o vermelho é, sobretudo, a cor mais auspiciosa na China, logo a grande maioria das expressões ligadas ao vermelho tem um sentido muito positivo: «uma pessoa vermelha» (hongren 红人) é muito favorecida pelo destino, pela fama, e pelo poder; uma pessoa extremamente saudável não pode deixar de ter «as faces vermelhas» (hongguang manmian 红光满面), ou rosadas, à boa maneira portuguesa. Sendo o vermelho a cor do casamento, a casamenteira é «a mulher vermelha» (hongniang 红娘).
O vermelho, na sua versão masculina, representa a guerra e a coragem, como tal, o Exército não poderia deixar de ser vermelho (hongjun 红军). O vermelho é ainda a cor da prosperidade e da riqueza, daí que surja associado a rezas e dádivas auspiciosas, como os papéis vermelhos no Ano Novo chinês, repletos de ditos sacralizados, e aos envelopes vermelhos (hongbao 红包), onde circula o dinheiro generoso, sendo mais conhecidos em Macau por laisi.
A expressão «um fogo vermelho» (honghuo 红火) indica que se está num momento cheio de sorte e muito próspero. Por fim, se o branco pertence aos funerais e à morte, e o vermelho é a criação, logo para casamentos e funerais aplica-se o seguinte dito, aqui traduzido à letra, «situações vermelhas e brancas» (hongbai xishi 红白喜事).
Fica a rematar este meu sentir o vermelho,
Ardem fogos em vidas animais,
onde brilham casamentos e funerais:
uns chamam-lhes poeira vermelha
outros sentem-nos bem reais.
As belezas femininas
porque hão-de ser fatais?
Olhos vermelhos de guerra
é que podem ser mortais.
O vermelho chinês é rei
de súbditos verdes e brancos,
do amarelo corre atrás,
deseja um preto fugaz.
Bibliografia
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