A tradição num envelope

Não passa de um pequeno envelope vermelho que cabe numa mão fechada. Quem diria que o laissi, como é conhecido na língua portuguesa com base no seu nome em cantonês, ou hong bao (literalmente, “envelope vermelho”) em mandarim, poderia ser um símbolo quase universal em toda a China? Embora os de cá da terra já o conheçam, pouco ou nada se sabe do porquê desta tradição que está presente em todos os momentos importantes da vida chinesa

 

Casamentos, nascimentos, aniversários e, claro está, a celebração do Ano Novo Chinês são eventos que não dispensam a troca destes pequenos pacotes com dinheiro dentro.
Das várias lendas relacionadas com os laissis, a mais comum é a do monstro Nian (年, que significa “ano” em português). Conta a lenda que Nian atacava uma certa aldeia na primeira lua do calendário lunar. Quando descobriram que Nian tinha medo da cor vermelha, dos sons fortes e do fogo, os aldeões, cansados da destruição, viram uma oportunidade de se defenderem. Assim, nos anos que se seguiram os habitantes colocavam papéis vermelhos nas portas e faziam soar os tambores bem alto. Moedas atadas a cordéis vermelhos eram entregues às crianças para espantar os maus espíritos e protegerem-nas do assustador Nian.
Dizem os especialistas que a entrega de dinheiro durante esta época festiva remonta à dinastia Ming (meados do século XIV). Nessa altura, moedas atadas a um fio eram entregues às crianças. Mas foi apenas no princípio do século XIX, durante a dinastia Qing, que o costume do envelope vermelho se tornou popular. O processo evoluiu e, hoje em dia, pode encontrar-se envelopes de todas as cores, feitios e decorados com, além dos motivos mais tradicionais, bonecos da Disney ou dos desenhos animados japoneses.  Não é invulgar encontrar-se, na superfície exterior dos laissis, um Mickey vestido com a cabaia chinesa ou uma Hello Kitty desejando o ,”Kung Hei Fat Choi!””  (saudação de Feliz Ano Novo).

 

Tradição e significado

 

Para Desmond Lam, professor da Universidade de Macau, esta tradição reflecte princípios bastante enraizados na cultura chinesa. Questões como a crença na celebração das suas tradições, a sua superstição, o respeito pelas hierarquias sociais e a constante preocupação com “salvar a face” estão todas representadas na entrega dos laissis.
“Confúcio ensina-nos que somos criaturas sociais. Cada pessoa tem um papel e uma responsabilidade social que obriga a preservar a ordem, para que haja harmonia no mundo”, aponta Lam. “Há uma série de hierarquias criadas por Confúcio que precisam de ser respeitadas: o governante e os seus súbditos, pai e filhos, marido e mulher, um irmão mais velho e os mais novos. Estes ensinamentos acabam por ser o fundamento dos valores chineses.”
Assim, também na distribuição dos laissis se observam estes costumes. Dentro da família é suposto as pessoas mais velhas distribuírem os envelopes aos mais novos. Os casais entregam um só pacote em nome dos dois e, o mais importante, os avós entregam os laissis aos netos antes dos pais fazerem chegar os seus envelopes ao filhos. Quanto mais velha for a criança, mais dinheiro poderá receber. Teoricamente, qualquer pessoa solteira pode receber um laissi, contudo os casados têm a obrigação de oferecer um destes pequenos envelopes. “É uma espécie de sinal de que se atingiu a maioridade”, aponta o académico.
Desmond Lam explica que também no local de trabalho é esperado que os superiores distribuam estes envelopes festivos aos subordinados. Um costume que leva, frequentemente, a que os patrões ocidentais passem um mau bocado. “Para os estrangeiros que trabalham na indústria do jogo em Macau, a tarefa anual de prepararem os laissis pode ser muito trabalhosa. O primeiro passo é escolher quem os deve receber e, depois, é necessário decidir qual o valor que se vai oferecer a cada escala. Por fim, a tarefa que acaba por levar mais tempo, dado o elevado número de empregados nesta indústria, é o acto de preparar os envelopes em si.”
Assim como na tradição familiar, há também regras a seguir no local de trabalho. Quanto mais alto é o cargo, mais dinheiro tem que se oferecer. Se tal não acontecer, o superior “perde a face” o que, de acordo com o professor da Universidade de Macau, “deve ser evitado a todo o custo”.

 

Mais que um pedaço de papel

 

“O laissi é acima de tudo um símbolo. Numa cultura para quem a sorte tem uma importância tão grande, o laissi aparece como uma forma de a desejar, por isso faz parte de todas as festividades importantes, como as oferendas aos deuses e as celebrações familiares”, diz Desmond Lam. Desde a cor vermelha, que é extremamente auspiciosa na cultura chinesa, passando pelos motivos tradicionalmente usados na sua decoração, tudo serve para oferecer e desejar um ano de prosperidade ou um casamento feliz.
“Oferecer um laissi é como dar um postal de boas festas na cultura ocidental”. Assim, alguns motivos sugerem frases conhecidas entre a comunidade chinesa. É bastante recorrente carpas vermelhas – uma tradição que vem do ditado “nin nin yao yun”, que, numa tradução aproximada, significa “desejos de um ano abundante” (“nin nin” significa “todos os anos”; “yao” quer dizer “haver” e “yun”, “abundância”). Porque o som deste “yun” é parecido com o “yun” de carpa, é considerado auspicioso usar a representação deste peixe. Outros símbolos auspiciosos muito usados são as tangerinas e as peónias.
Não é apenas o envelope em si que se destina a desejar boa sorte. O montante lá inserido também tem um grande peso. Além de se considerar de muito mau tom as somas ímpares, a numerologia tem um papel forte nesta tradição. Vinte e oito, 68 e 168 são boas somas. No primeiro caso porque dois, 二 (yi em cantonense), é parecido com 易  que significa “facilmente”; o oito 八 (bat) tem o som semelhante a  發 (fat), “fazer dinheiro”. Portanto, 28 daria então qualquer coisa como “dinheiro fácil”. Já no caso de 68, o seis 六, que se parece com 六, que significa “rua” ou “caminho”, deixa subentendido “caminho para a riqueza”, enquanto que o 168, porque o 1 一 pode parecer-se com a palavra “continuamente”, sublinha ainda mais a expressão anterior. O número 58 é de evitar, pois significa “que não prospera”. Por exemplo, em vez de 400 patacas redondas, mais vale oferecer 390, porque o número quatro 四 (sì) tem uma pronúncia próxima da palavra morte 死 (sǐ), por isso nunca devem ser usadas somas que totalizem quatro.

 

Casamento

 

Nos casamentos, o laissi desempenha um papel fundamental. Está presente em todas as fases da cerimónia e dá ênfase à ideia de que funciona como um símbolo dos ensinamentos da cultura chinesa. Com o decorrer dos anos, a cerimónia tradicional tem sido adaptada aos costumes ocidentais. É cada vez mais comum ver-se as noivas vestidas de branco em vez do auspicioso vermelho e os noivos preferem agora o fato e gravata à tradicional cabaia preta com a faixa vermelha. Contudo, um elemento que não se dispensa é precisamente o pequeno envelope.

Começa por estar presente logo no convite que os noivos enviam. Um pequeníssimo pacote dentro do convite (neste caso não necessariamente vermelho) guarda uma moeda no valor de uma pataca. Uma tradição que vem do tempo em que as deslocações eram caras e se queria ajudar os convidados a estarem presentes na cerimónia.
Depois de enviados os convites, o laissi volta a aparecer naquele que se considera o coração da cerimónia, a altura em que os noivos servem o chá aos respectivos sogros. Esta é uma celebração do casamento para os membros mais chegados do casal e ocorre antes do grande banquete para a família alargada e amigos. Enquanto o casal serve o chá, é costume os pais e os sogros oferecerem um laissi aos noivos.
Mais tarde, e numa variação da festa tradicional, os padrinhos vão buscar a noiva  à casa. É um momento divertido em que estes tentam “roubar” a futura esposa às suas damas de honor, mas, além de diversas peripécias que têm que ultrapassar, é frequente os padrinhos oferecerem pequenas somas nos laissis, especialmente desenhados para a ocasião e adornados com fénix e dragões.
Finalmente, e talvez a parte da festa mais conhecida: o banquete de 12 pratos. Este é o ponto da celebração em que se reúne mais gente e que é o equivalente ao copo d’água português. Como na maioria dos casamentos ocidentais, também para os chineses é importante a troca de presentes e dinheiro. Contudo aqui não significa apenas uma ajuda para o começo de vida do casal ou uma contribuição para o jantar oferecido, mas é sobretudo uma maneira de desejar sorte a marido e mulher.
O laissi é um símbolo incontornável, representa as crenças chinesas na sorte,
o sistema hierárquico tão importante nesta cultura e adapta-se rapidamente aos tempos e costumes estrangeiros. Os ocidentais de Macau aprenderam pelos sorrisos insistentes dos seguranças dos prédios e os olhares ávidos das crianças que esta era daquelas tradições a que não se pode escapar. Funciona como meio diplomático entre homens de negócios e uma poderosa ferramenta de incentivo nos locais de trabalho. Como qualquer dádiva, também esta serve para fortalecer as raízes culturais e estabelecer a ordem social.

 

O que fazer e não fazer com o laissi

 

(1) Na região do Sul da China espera-se que as pessoas mais velhas de um determinado grupo, sejam ou não casadas, distribuam os laissis aos mais novos. Os casais entregam um só envelope em nome dos dois.

(2) Os laissis de casamento usam motivos muito diferentes dos outros e, portanto, só devem ser usados neste evento em especial. É considerada falta de educação oferecer envelopes com fénix, dragões e caracteres de dupla felicidade durante as celebrações do Ano Novo.

(3) Quando for convidado para um casamento chinês deve levar um laissi de pelo menos 500 patacas. Caso não possa estar presente na celebração, deve responder ao convite com um laissi de 300 patacas. Mesmo que seja muito próximo do casal, não convém oferecer valores acima das 3000 patacas.

(4) Nunca se deve oferecer dinheiro em valores ímpares. É considerado de mau tom e pouco auspicioso. Deve-se ter também cuidado para evitar somas com o número quatro.

(5) A entrega do dinheiro faz-se na véspera do Ano Novo Lunar, entre as 21h e as 22h (o que corresponderia às 23h na noção de tempo ocidental), entre os membros da família. Entre os amigos e empregados, é hábito a distribuição ocorrer durante os 15 dias que se seguem.

(6) Nunca se devem expor os laissi vazios. Atrai a má sorte e faz fugir o dinheiro, razão pela qual nas lojas ou nos hotéis em que os envelopes estão em exibição, devem conter pelo menos uma moeda de dez avos.