Adeus Leonel Barros

As palavras saiam-lhe como música que, aliás, também sonorizou toda a sua vida, através da viola, flauta e bateria, da antiga banda do Hotel Estoril e do grupo Six Rockers.

 

Algures no final de 2006, tinha encontro marcado com Leonel Barros na sede da APIM [Associação Promotora da Instrução dos Macaenses] para iniciarmos a produção do livro “Memórias do Oriente em Guerra (Macau)”. Um primeiro encontro desastroso. Leonel, ou melhor, Neco desde os tempos de meninice, não se lembrava de mim nem ao que eu vinha. Já éramos dois.
Mais do que recolher, seleccionar e reescrever as centenas de folhas soltas manuscritas por Leonel Barros sobre os tempos da ocupação japonesa no sul da China, eu queria chegar ao Neco, ouvir na primeira pessoa essas memórias dos anos 30 e 40. Não foi difícil.
No final das manhãs, na biblioteca da APIM, por entre cúmplices cigarros, Leonel Barros falava-me do passado, contava estórias misturadas com um sorriso e múltiplas piadas. Nunca um lamento. E eu deixava-me levar, sem distinguir realidade e ficção.
Assim, viajámos nos barcos a vapor que faziam a ligação Macau-Cantão. Fugimos da embarcação quando o porto da cidade chinesa foi bombardeado pelos japoneses; implorámos ao avô de Leonel Barros para nos deixar visitar os barcos-flores, onde senhoras de má reputação davam ópio e outros prazeres aos visitantes.
Neste desfiar de memórias, Neco levou-me ao Quartel de São Francisco e obrigou-me a comer tubarão, “servido ao almoço e ao jantar durante os anos da guerra, dada a escassez de outros alimentos e a abundância deste carnívoro nas proximidades de Macau, atraído pelo sangue das vítimas japonesas”, afirmava sem pestanejar. Repetia vezes sem conta que a carne de tubarão era muito rija e de pouco sabor, mas reconhecia que chegou a fazer batota: o pai levava-lhe ao quartel uma marmita às escondidas. Até ao dia em que foram descobertos e a comida caseira passou a ir directamente para a mesa dos superiores militares.
Dizia que não ia à Taipa e a Coloane há 30 anos, mesmo antes da construção da primeira ponte de ligação às ilhas. Por isso, quando fiz um perfil de Leonel Barros para o jornal Tai Chung Pou, levámo-lo ao outro lado da Nobre de Carvalho. A primeira vez em 30 anos… ou quase. Soube mais tarde que pelo menos um outro jornal tinha-lhe feito o mesmo alguns anos antes. Pouco importa, Neco acreditava que nunca lá tinha ido. Porque não reconhecia as mudanças, porque não queria ver as marcas do tempo, vivia no Macau antigo.
c As letras no papel não eram o seu forte, mas os desenhos sim. Nos últimos anos, com problemas graves de visão, lamentava já não conseguir pegar no lápis e traçar o seu mundo de recordações, as flores e essa grande paixão que eram os animais. Pegava nos desenhos antigos e, mesmo numa determinada fase em que não conseguia distinguir as formas, descrevia-me todos os contornos, as cores e o que estava por detrás de cada um daqueles trabalhos. E fazia-o a cada visita minha com um orgulho que se via nuns olhos que estavam quase sem ver.
Apesar das enormes dificuldades em caminhar (fruto de uma queda e consequente operação cirúrgica), Leonel Barros fez sempre questão de me acompanhar ao elevador. E desculpava-se por não descer até ao rés-do-chão. Nada disso era preciso.
Por várias ocasiões, deu-me pequenas prendas, nomeadamente quando, prestes a partir para o Haiti, fui despedir-me de Leonel. Ofereceu-me um leque de família e umas pedras que, segundo as tradições chinesas, servem de amuletos. Leonel também acreditava e garantiu-me que as peças dar-me-iam sorte. Têm andado comigo. Neco tinha razão. Obrigada.