O “Mourinho” de Macau

Na última temporada só conheceu o sabor da vitória. Os triunfos do Ka I confirmaram os êxitos dos últimos anos, com as cores do Benfica ou do Futebol Clube do Porto. O treinador de futebol Rui Cardoso gostava de ir mais longe e assumir um projecto profissional ou semi-profissional

 

Está para o futebol de Macau, como José Mourinho para o futebol europeu. Se o actual timoneiro do Real Madrid ganhou na última temporada tudo o que tinha para vencer com os italianos do Inter de Milão (campeonato e Taça de Itália e Liga dos Campeões), Rui Cardoso teve um percurso idêntico com o Ka I. Além do título da primeira divisão, venceu a Taça e ganhou o popular Campeonato da Bolinha (futebol de sete). E ainda o Interport com Hong Kong.

Há quase três décadas em Macau, tem um longo currículo no futebol local. Como jogador e treinador. E um sonho: abraçar um projecto profissional ou semi-profissional.
Do outro lado do globo, nas escolas do seu Benfica, o filho David está à procura de singrar no complexo mundo da alta competição. O pai não gosta de entrar em muitos pormenores, mas sempre deixa escapar uma certeza: tem potencial para ir longe, para ser profissional de futebol.
Com 48 anos, natural de Luanda, Rui Cardoso confessa que teve uma infância feliz.
Dos primeiros anos em Angola recorda as primeiras futeboladas e os treinos de hóquei em patins, no popular Asa de Luanda.

 

 

Boa adaptação a Portugal

 

Com 12 anos parte para Portugal. O 25 de Abril provocou grandes alterações em Angola e a família resolve instalar-se em Queluz, nos arredores de Lisboa, mesmo em frente à sede do Grupo Desportivo de Queluz. A adaptação foi boa, só estranhava o frio. Havia muito convívio com outros retornados, observa.
Apesar de ter deixado a meio o ensino secundário, mais tarde em Macau, com 40 anos, regressou aos bancos da escola e licenciou-se em Administração Pública no Instituto Politécnico de Macau. É talvez por isso que continua a dizer que David tem que concluir o 12.º ano antes de optar pelo futebol profissional. A formação escolar é fundamental, temos que estar preparados para enfrentar o futuro.
A primeira experiência nas escolas do Benfica não foi bem sucedida. Pela mão de um tio, no Verão de 1977, faz uns treinos no clube do seu coração. Dezenas de miúdos a chutar a bola contra uma parede, lembra com certa emoção, mas não foi possível continuar, pois a realidade de então era muito diferente da actual. Desisti, pois não tinha condições para andar no treino. Além disso, a minha família não via com bons olhos a opção pelo futebol, acrescenta.
Depois de um ano no Grupo Desportivo de Queluz, hoje Clube Desportivo e Recreativo de Massamá, tenta a sorte no futebol juvenil do Sporting. Ainda era juvenil e na altura a competição era muito grande, numa equipa que tinha Carlos Xavier e companhia. Acabei por ser dispensado.
Após mais dois anos no Grupo Desportivo de Queluz, ingressa no Estrela da Amadora. Faz parte do plantel que assegura a subida à primeira divisão, mas não joga uma única vez, ainda era júnior. Segue-se o Costa da Caparica e quando estava à experiência no Almada surge o convite para mudar-se para Macau.
Trabalhava em part-time numa empresa da área da perfumaria e farmácia e através de uma pessoa que trabalhava em Macau houve um contacto para vir jogar no Negro Rubro, na altura treinado pelo Carlos Prieto, que estava na TDM, conta à Revista Macau quase 30 anos depois.
Chega a Macau em Janeiro de 1985 e acaba a jogar na formação da Flora pela mão de Francisco Manhão, já que nessa época o Negro Rubro não participou no campeonato. Ingressa nos Serviços de Finanças, onde ainda hoje trabalha. Começa a jogar no Grupo Desportivo das Finanças e em muitos clubes locais, como o Yao Kit, o Hap Kuan, o Lam Pak ou o Monte Carlo. E na selecção de Macau, cujas cores vestiu até  aos 35 anos.

 

 

“Futebol evoluiu”

 

O futebol em Macau evoluiu, tecnicamente é melhor. Na década de 80 e 90 trabalhava-se muito fisicamente, jogava-se mais com o coração. Agora temos treinadores que sabem mais de futebol, que estão interessados em adquirir novos conhecimentos, reconhece.
O treinador campeão de Macau destaca o trabalho desenvolvido pelas escolas chinesas e pela própria Associação de Futebol. O Ka I é um bom exemplo disso, pois temos muitos jovens com enorme potencial, assegura, mas lamenta não haver campeonatos nas camadas jovens. Não há competição suficiente, os jovens futebolistas têm técnica, mas não têm a base, revelando falta de conhecimentos tácticos, adianta.
Os futebolistas locais não têm muita ambição, não sonham com o profissionalismo, têm muito receio de tentar uma aventura fora do território. Não há tradição de ir jogar no exterior.
Macau tem, contudo, condições para avançar na direcção do semi-profissionalismo. Os casinos podiam, por exemplo, criar equipas com condições de trabalho, que permitissem a realização de um campeonato competitivo. Cinco ou seis equipas, que levassem os residentes e o turistas aos estádios, defende, considerando que poderia ser um primeiro passo para desenvolver o desporto-rei em Macau.
Nos dias de hoje, divide-se entre os treinos do Ka I e do Benfica. Como há poucos espaços para treinar, acabo por juntar os atletas dos dois clubes e trabalhámos em conjunto. As duas equipas são de escalões diferentes, mas é possível desenvolver um trabalho que tem dado bons resultados. Algumas vezes fazemos mesmo um jogo-treino, é muito competitivo, pois os jogadores do Benfica procuram jogar de igual para igual com os do Ka I, que têm outros recursos técnicos e tácticos, explica.
Num território onde a competição é reduzida, como é que um treinador procura estar a par da evolução da modalidade? Rui Cardoso aproveita as novas tecnologias, nomeadamente a Internet. Recebo com regularidade revistas de futebol e sou membro de uma universidade de futebol, que através da rede coloca as pessoas a discutir os novos sistemas, as estratégias, conta, notando que em Macau existe uma grande vantagem para os treinadores: Não há a exigência dos associados, a pressão dos resultados. O trabalho pode ser feito com calma e os jogadores manifestam sempre grande vontade em aprender, o que é muito estimulante.

 

 

Treinar com Mourinho

 

O pai da laranja mecânica, o criador do futebol total, Rinus Michels, é um dos seus ídolos. É também holandês outro dos treinadores que mais admira: Van Gaal. Pelo seu carácter, pela forma como lida com os jogadores. Já tive a oportunidade de o ver trabalhar na Holanda e aprecio muito os seus métodos, comenta, deixando cair um desejo: ter a oportunidade de ver José Mourinho treinar ou fazer mesmo um estágio com o timoneiro do Real Madrid. É, de facto, o melhor do mundo. É extraordinária a sua capacidade de adaptar as equipas que orienta ao estilo que melhores resultados pode alcançar. Se tem jogadores para jogar ao ataque aposta no ataque, se tem atletas que estão mais vocacionados para defender, opta por essa estratégia. Mas sempre com o objectivo de ganhar. Elogia também Carlos Queiroz, uma das suas referências.
Amante do golfe, Rui Cardoso lamenta a falta de tempo para dar umas tacadas nos greens de Coloane. É uma desafio muito grande, pois lutámos sozinhos para chegar com menos pancadas ao fim. Depende do trabalho individual, é uma luta contra o próprio jogador.
Gosta de ouvir música, sinfónica e baixinho, quando estou a trabalhar. As leituras são quase sempre profissionais, os livros de futebol são muito técnicos, é preciso ler com calma, pois tenho que fazer muitos apontamentos para tirar proveito, para beber o que está lá escrito.
Aos fins-de-semana não dispensa o convívio com um leque diversificado de amigos, há sempre tempo para uma boa cavaqueira, para pôr a conversa em dia.
Com mais de duas décadas de permanência no território, Rui Cardoso assistiu à profunda transformação que Macau conheceu. O jogo tem uma grande importância, mas deve haver um enorme esforço para preparar os jovens para os perigos dos casinos e de todas as actividades que gravitam em torno dessa indústria, nota.
Nos próximos meses, vai lutar pela revalidação do título com o Ka I e pela subida do Benfica à primeira divisão. E aguardar que os pupilos de Jorge Jesus venham a Macau. O também dirigente do Benfica local acredita que os encarnados podem  regressar ao território no final da temporada, onde não jogam há mais de uma década.