As caras por detrás dos livros

Vivem em Macau, escrevem sobre o território, mas são poucos os que aqui nasceram. A conversa com quem escreve em Macau é um permanente vaivém ao passado, com passagens pelo continente chinês, Portugal ou Austrália. É uma volta ao mundo. Em palavras

 

 

Texto Catarina Domingues

Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

LIO CHI HENG

 

Naturalidade: Camboja

Profissão: Subdirectora editorial do jornal Ou Mun

Língua em que escreve: Mandarim

Obras publicadas: Sobre a literatura feminina moderna de Macau (1994), A literatura de Macau nos meus olhos (1999), As alucinações de Ao Ge, versão em português (2010)

 

Na primária eram as composições que mais apeteciam a Lio Chi Heng, e na escola a professora gabava-lhe o jeito. Lio ainda não sabia o que era inspiração, mas trabalhava com afinco nos textos que levava para escrever em casa.

O secundário ficou para trás. Lio Chi Heng deixou Hunan, tal como se despediu anos antes da terra natal, o Camboja, e do Laos, onde completou o primeiro ciclo do ensino básico. Partiu novamente, desta vez para estudar Literatura Chinesa em Cantão. “Nessa altura escrevia sobre o que se passava à minha volta.”

Em 1989 os textos tomaram outra forma quando, “inspirada pelos acontecimentos de quatro de Junho em Tiananmen”, despertou todos os sentidos para as rupturas sociais também em Macau. Surge assim o primeiro conto, Macau Story – Destiny, baseado nos acontecimentos de 1990, quando milhares de imigrantes ilegais do Interior do País marcharam até à sede do Governo para reivindicar o direito à residência. Foi uma longa noite para a administração de Carlos Melancia. “Fiquei impressionada com o movimento.”

Mas foi pouco antes da transferência que escreveu o conto que a notabilizou. As Alucinações de Ao Ge marcaram uma carreira e uma época. Nessa altura, “por não saber se conseguiriam adaptar-se à transferência, muitos macaenses viviam num dilema: ficar ou não ficar em Macau”. Lio partiu do zero. Não conhecia ninguém na comunidade. Misturou-se, observou, escutou e escreveu. “A crise de identidade macaense não é criação minha. Antigamente muitos macaenses raramente mencionavam os membros da família chinesa.”

Esta é a história de um jovem macaense que procura o seu verdadeiro eu. “Eram sentimentos muito íntimos, que todos conheciam mas que ninguém se atrevia a escrever sobre eles.” Em 2003, o conto foi traduzido para francês e sete anos depois para português. Recentemente foi adaptado ao cinema pelo realizador chinês Zhang Chi.

Ao Ge apressou-se a retirar o quadro da parede e a observar minuciosamente os traços do antepassado: o seu avô, europeu, e ele, asiático, tinham exactamente o mesmo nariz! Alto, recto! Com as mãos a tremer, abriu a gaveta à procura de fotografias do seu pai e, ao comparar meticulosamente os três narizes, concluiu que os três eram exactamente iguais – altos e rectos! Bastava-lhe, honestamente, comparar aqueles três narizes com os dos seus irmãos para constatar que o seu era mais europeu que os de todos os outros!

 

 

CHEANG MIO SAN

 

Naturalidade: Macau

Profissão: Dona-de-casa

Língua em que escreve: Mandarim

Obras publicadas: Ilha andante (1990), Jogo Colectivo (2005) e Morte Colectiva (2005)

 

São palavras (entre parêntesis) que aparecem no final dos versos. Um registo introduzido por Cheang Mio San. “Ninguém fazia isso em Macau. Chama-se texto oculto e expressa o que penso de mais íntimo.”

Cheang Mio San é conhecida entre os poetas por Yi Ling (alguém com bom espírito). O nome pode ter várias razões de ser. É para todos os efeitos um manto que cobre, ainda que tenuemente, uma identidade. “Macau é pequeno e as pessoas sabem que sou a mulher do deputado Au Kam San.”

Cheang Mio San (Yi Ling daqui para a frente) nasceu em 1964. Publicou o primeiro poema com 18 anos, “A passagem dos ventos do Oeste soava aos ouvidos como o filme E tudo o vento levou”.

Ainda a estudar no Colégio Santa Rosa de Lima, foi influenciada pelo professor Cheng Wai-Ming. O corte com os valores tradicionais da poesia foi imediato. Já na Universidade de Macau os seguidores de uma nova geração pós-modernista multiplicaram-se. “Os jovens quiseram seguir o estilo de Chang, mas houve professores que sentiram que estávamos a roubar os alunos.” Os dois fundaram a Associação de Língua Chinesa, organizaram seminários, frequentaram debates e privaram com professores e poetas que chegavam de fora. “Queríamos muito fazer algo por Macau.”

Não foi fácil. A tónica social perturbava já desde os tempos da Administração portuguesa. Poucos poemas foram traduzidos por esta altura. “Talvez para não afectar as relações entre Portugal e a China.” Mas os jornais chineses recebiam sem reservas os escritos de Yi Ling. A poesia passou por revistas, antologias, foram publicadas três obras poéticas (pagas pela autora) e que chegaram às livrarias de Taiwan e Singapura antes de Macau.

Sendo das poucas poetisas da sua geração que continua activa, luta diariamente para recuperar esses loucos anos 80. Na gaveta estão mais de cem poemas prontos a imprimir. “Hoje não se escreve explicitamente sobre os problemas sociais. Tornei-me quase numa escritora clandestina.”

 

We lost all of our faces

Tradução de Agnes Vong e Christopher (Kit) Kelen

 

We lost all of our faces but we fought back to

retrieve our eyes, ears, mouths and noses.

 

in our dreams

we lost all our faces

it just took one night

the world couldn’t see our truth

ours are the hundreds, thousands, millions

or is it billions of faces?

 

whipping the iron stone

avoiding tears

receiving flesh and blood

looking for the lost eyes, ears, mouths and noses

in order to save the dignity of a face

we wrecked the old face

we made a new one

sure we can do it

we can definitely do it.

 

 

CARLOS MORAIS JOSÉ

 

Naturalidade: Lisboa, Portugal

Profissão: Director do jornal Hoje Macau

Língua em que escreve: Português

Obras publicadas: Porto Interior (1992), A Coluna da Saudade (1993), A morte são quatro 4 noites (1996), Caze – um caso de ópio (1998), Complexo de Édito (2003), O Livro dos Nomes (2010)

 

Os Fidalgos da Casa Mourisca foi o primeiro livro ‘sério’ que li”. Carlos tinha 12 anos. Na memória ficaram as imagens: o Alto Minho, o velho solar da família Negrão, talvez até a delicadeza da prima Gabriela. “Conseguia ver aquelas pessoas. Conhecia aquela mentalidade quando ia à província.”

A leitura tomou conta das horas. Depois de Júlio Dinis veio Eça de Queiroz. Com o 25 de Abril, acumulou obras de Marx, Engels ou Mao Zedong. E já na faculdade, tropeçou na filosofia francesa dos anos 70, “que me fez sair do modelo estalinista”. Paralelamente escrevia.

O primeiro poema que escreveu começava assim: “‘Minha rua, meu mundo, lugar onde nasci’. Terminava com uma frase, que o professor gostou particularmente: ‘E o guarda nocturno bocejava’”.

Os professores ficaram para sempre – José Manuel Mendes, Vergílio Ferreira ou Eduarda Dionísio. Talvez por eles tenha desistido da química. A transformação da matéria prendia-o às ciências, mas queria entender melhor o homem. Foi estudar Antropologia, “talvez a disciplina com uma compreensão mais abrangente do homem”.

Foram anos importantes. A escrita ganhou outra ginástica, primeiro nos exames, depois com o jornalismo. Em Portugal trabalhou em O Século e O Independente.

Macau surgiu aos 26 anos, com passagem por vários jornais e revistas. “Como português, tinha a obrigação de deixar um testemunho”. Nasce assim o Porto Interior, uma compilação de textos publicados no jornal Tribuna de Macau “sobre política, costumes e mal costumes”. Seguiram-se mais seis livros, com uma passagem pela banda desenhada e a publicação de poemas soltos. “A poesia é muito delicada, é preciso consideração por ela.”

Mas foi nas teias da prosa poética que acabou por ser apanhado. A inspiração vem da saudade, vem da partida, vem da dor. “Existe um lado mágico na escrita que tem a ver com a resolução de problemas.” A inspiração vem do amor.

 

Hotel Cantão 

Partilhámos por dois dias o desencanto e um quarto. Depois voltaste à janela. Não me lembro mais de ti, nem dos murmúrios que se elevavam deste e do outro lado do tabique. Sabes quantas colinas daqui avisto? Ou quantos mares atravesso? Tudo sem ti. Este ainda é o melhor hotel do mundo.

 

 

 

YAO JING MING

 

Naturalidade: Pequim, RPC

Profissão: Tradutor e professor de tradução de Português-Chinês na Universidade de Macau

Língua em que escreve: Português e mandarim

Obras publicadas: Nas Asas do Vento Cego (1991), Confluência, com Jorge Arrimar (1997), Viagem por Momentos (1999), A Noite Deita-se Comigo (2001), Canção para Longe (2006), Quando os Peixes Fecham os Olhos (2008), Antologia de Poemas de Yao Feng (2008) e in brief (2010)

 

Antes do silêncio, a solidão. Ou ao contrário, não interessa. Um e outro serviram de alimento à alma de poeta. “A solidão, claro, não nos larga.” Yao Jing Ming nasceu e cresceu em Pequim. Vivia-se em plena Revolução Cultural quando Yao foi aprender espanhol por imposição do regime. “Talvez porque a China quisesse apoiar a causa de libertação dos países do terceiro mundo.”

Mas o espanhol de pouco serviu. “Fomos aprender, ou melhor, trabalhar com os camponeses numa comuna popular nos subúrbios de Pequim.” Por essa altura já reconhecia a virtude das letras. Não era propriamente de línguas que gostava. “Mas sim de palavras.” E por isso, sempre que podia, lia. As bibliotecas de pouco valiam, vivia-se um período pobre, não só a nível intelectual como material. “As obras de Shakespeare eram consideradas ervas venenosas da burguesia.”

Em 1977, finda a Revolução Cultural, a China organizou pela primeira vez, em 12 anos, exames de acesso à universidade. Yao foi estudar Português para o então Instituto de Línguas Estrangeiras em Pequim.

Abria-se assim um novo mundo. Um admirável mundo novo, que ganha outra dimensão quando Yao Jing Ming vai para Portugal trabalhar como terceiro secretário na Embaixada da China. “Não sabíamos nada sobre o mundo lá fora. O impacto foi grande.”

Em Lisboa, conheceu Eugénio de Andrade, de quem já era tradutor. Ao longo dos tempos passou para o chinês outros autores, como Fernando Pessoa, Miguel Torga ou Sá Carneiro. “Aquele que traduz poesia também é poeta.”

Asas do Vento Cego, o seu primeiro livro, nasceu em Lisboa. A inspiração estava lá, em Portugal e em português, sempre e inequivocamente lado a lado com a solidão. Yao Jing Ming tem publicadas seis obras, todas sob o pseudónimo de Yao Feng. Feng de brisa. A obra mais recente chama-se in brief, uma colectânea de poemas acompanhados de fotografias do autor. “Esta foi em Macau há sensivelmente dois anos. Esta na China. Aqui é Florença.”

 

Ao cabo

pusemos o silêncio no centro,

como se põe a mesa,

para a qual nada foi servido.

 

O banquete já tinha acabado

E, nunca mais, sentados à mesa

deixaremos florir a língua.

 

Silêncio.

Apenas o canto eventual

o desperta.

O que murmuram os pássaros

nos ramos do sonho?

Não sonhamos de novo,

nesta noite menos nossa.

Ainda o silêncio. O vento sopra

a abundância do teu cabelo

o grito, o uivo.

 

 

CHRISTOPHER (KIT) KELEN

 

Naturalidade: Sidney, Austrália

Profissão: Professor de Literatura e Escrita Criativa na Universidade de Macau

Língua em que escreve: Inglês

Obras publicadas: Punks Travels (1980), The Naming of the Harbour and the Trees (1992), Green Lizard Manifesto (1997), Möbius (1998), Republics (2000), New Territories (2003), Wyoming Suite (2004), Eight Days in Lhasa (2006), A Wager With the Gods (2006), Dredging the Delta (2007), Kit Kelen’s Macau (2007), After Meng Jiao (2008), As From The Living Page (2008), God Preserve Me From Those Who Want What’s Best For Me (2009), To the single man’s hut (2010), The Whole Forest Dancing (2010),  In Conversation With The River (2010), Throwing Words Together (2011)

 

Se a vida de Christopher Kelen fosse um poema, podia ser um soneto. Mesmo antes de saber escrever, já as palavras tinham uma medida definida na sua vida. “Cresci num ambiente onde era natural escrever, onde todos tinham uma palavra a dizer sobre o mundo.”

O pai, Stephen Kelen, nasceu na Hungria. Foi campeão do mundo de ténis de mesa em pares mistos, serviu as Forças de Ocupação Britânica no Japão, mas foi à escrita que dedicou grande parte da carreira na Austrália.

Kit e o irmão mais velho, Stephen K. Kelen, seguiram as pisadas do pai. “A poesia era a forma mais natural de expressão.” Kit inspirava-se “no mundo e nos livros dos outros”. Os livros dos outros traziam sonetos, Dante, Dickens, Shakespeare ou Cervantes. E não só, Kit apaixonou-se por aqueles que na primeira metade do século XX marcaram a história da poesia, William Butler Yeats ou Dylan Thomas.

Das primeiras linhas que escreveu não tem memória. “Interessava-me por política, pelas paisagens, pelos retratos das pessoas.” Foi no final dos anos 70 que começou a escrever e a publicar. Estreou-se com Punk Travels, um romance em 1980. The Naming of the Harbour and the Trees é o primeiro dos 13 volumes de poesia que lançou e valeu-lhe o prémio Anne Elder, umas das várias distinções atribuídas ao longo da carreira. Uma carreira que tem ultrapassado a fronteira poética. Já assinou romances, livros infantis, obras teóricas e está envolvido em projectos de tradução.

Macau, onde trabalha desde 2000 como professor de Literatura e de Escrita Criativa, tornou-se na inspiração para muitos destes trabalhos. “Apanhava o autocarro e tentava perder-me.” Por estas ruas Kit Kelen reencontrou-se numa nova forma de poesia, a pintura. São pinceladas a guache, “desenhos, rabiscos”, que acompanham os poemas. Se acrescentam alguma coisa não é o mais importante. “Há uma razão para tudo e não temos de estar conscientes disso.”

Se a passagem de Kit Kelen por Macau fosse um poema, provavelmente seria uma Odisseia. A “Odisseia de Homero”. “Macau é como Lotófagos, a ilha onde os nativos se alimentam de flor de Lótus. A comida é tão boa que é difícil partir.”

 

a candle

then a bird for light

kettle up against my sun

the bright soaks us

from other days

as if the night were cracked

mere habit of haunting eyes

 

so

thoughtless clouds stick unintending

boats crossing too in their first clothes

pale water holding up the dawn

 

a bridge

the Bank of China

casts a glittering stripe

to bend the silver of my river

to take the wheel’s long bow

 

 

HILDA TAM

 

Naturalidade: Macau

Profissão: Tradutora e Professora de Inglês na Universidade de Macau

Língua em que escreve: Inglês e Mandarim

Obras publicadas: Ah Xun’s 5 Destinies (2006), The Green Here Was Pink (2009)

 

Macau, anos 50. Ah Xun, uma jovem vendedora de bilhetes de autocarro, apaixona-se por um abastado comerciante de arroz. Por pressão da madrasta, Ah Xun renuncia à vida simples que até aí levara. O futuro ao lado de Yiu Jo parece um sonho.

Mas Hilda Tam, autora da obra Ah Xun´s 5 Destinies, tinha outros planos para a protagonista. “Não acredito que tenhamos o destino traçado.”

Ora o destino de Hilda parecia definido desde os tempos do Colégio Canossiano Sagrado Coração. “Passava para o papel tudo o que me vinha à cabeça.” A escrita não era um ímpeto inspirado pelos problemas de adolescente. As missivas e bilhetinhos que trocava com os colegas carregavam lágrimas, é certo, mas também gargalhadas. “Sabe como são as crianças.” Nas horas vagas, agarrava-se aos livros e durante as aulas a precisão das palavras chamava a atenção da professora. Sem arriscar, foi-se ficando por aí, pelos bilhetinhos e composições.

Com 19 anos, as palavras perderam a timidez, quando Hilda decidiu enviar um poema para o jornal Ou Mun. “Fiquei surpreendida porque foi publicado. Nunca mais parei de escrever.”

Os estudos superiores foram realizados na Universidade de Macau. Enquanto estudou inglês, frequentou aulas de Escrita Criativa. “Os pensamentos estão cá dentro, mas de que forma podemos passar tudo isso para o papel?” Ah Xun’s 5 Destinies é o primeiro e único romance de Hilda Tam. A poesia “consome menos tempo, é a forma mais concisa de expressão.”

Com 28 anos, a escritora conta com uma obra de poesia e vários poemas publicados em revistas literárias, como a Jacket, a Poesia Sino-Occidental ou o jornal The Drunken Boat.

Macau ainda inspira. “Às vezes penso que não, mas quando leio os meus trabalhos apercebo-me que toda a minha vida está lá.”

 

The woman took the silver trumpet brooch from her pocket. She kissed it and pinned it on her white collar. She gazed at the rosy clouds a moment. The women took off her high-heeled shoes. The stone was still warm from the long sunny afternoon. Little waves beat at the pier.