Desenterrar para preservar

Sónia da Silva Domingos, coordenadora do projecto de candidatura de Mbanza Congo a Património Mundial da Humanidade, passou a título pessoal pela RAEM. A arqueóloga angolana revela um pouco desta História a Património da UNESCO. E levou ideias de cooperação com Macau

 

 

Texto Mariana Palavra

 

A arqueologia tropeçou cedo na vida da angolana Sónia da Silva Domingos. Estudou na escola francesa, mas como os irmãos estavam em instituições de ensino portuguesas e russas não havia literatura francesa em casa. Os amigos do pai emprestaram os livros em francês que, “por incrível que pareça, eram todos de arqueologia”. “Via os desenhos das escavações e a descoberta dos objectos e a partir daí ficou logo o bichinho”. E nunca mais saiu.

Concluiu licenciatura, mestrado e doutoramento na área da arqueologia e em 2009 tornou-se coordenadora do projecto de inscrição de Mbanza Congo (Cidade do Congo, capital da província angolana do Zaire) a Património Mundial da UNESCO. Até há pouco tempo, acumulou ainda o cargo de directora-adjunta do Instituto Nacional de Património Cultural de Angola. Agora, está apenas concentrada na candidatura da antiga capital do Reino do Congo a património da Humanidade. É uma corrida contra o tempo, já que Angola tem cerca de um ano para apresentar o projecto à UNESCO. “Até Junho e Julho de 2012, ainda temos muito, muito por fazer”, afirma a coordenadora.

 

Ex-capital do Reino do Congo

Formado no século XIII, o Reino do Congo tinha seis províncias e ocupava parte dos actuais territórios de República Democrática do Congo, Gabão e Angola, além da existência de outros reinos vassalos. Do vasto território fazia também parte a actual cidade de Luanda, zona conhecida por banco do Congo, onde eram apanhados os búzios que eram a moeda do Reino. Mbanza Congo dominava este mapa como capital e como uma das maiores povoações da costa ocidental africana. “Segundo relatos de missionários entre os séculos XIII e XVII, Mbanza Congo chegou a ter cerca de 100 mil habitantes. Há gravuras onde estão representadas 11 igrejas e palácios e um rio com uma caravela, dando a entender que era navegável”, explica Sónia da Silva Domingos.

Mas nem tudo a história enterrou. Mbanza Congo ainda hoje preserva as ruínas “daquela que pode ser a primeira Sé Catedral erguida a sul do Saara, construída no séc. XVI,  testemunha da presença portuguesa na região e da fé cristã”. Sónia da Silva Domingos enumera ainda como património a classificar, datado entre os séculos XVIII a XX, o cemitério e o palácio dos reis, o local de lavagem e embalsamento dos corpos dos soberanos, assim como a casa dos secretários e a árvore centenária onde decorriam os julgamentos. “Temos ainda uma igreja que foi construída em 1933 por cima das ruínas de outra igreja que se acredita ser do século XV”, revela a arqueóloga. Ou seja, uma das primeiras construções após a chegada dos portugueses ao Reino do Congo já depois de 1480.

 

Desenterrar para preservar, o slogan

É preciso, porém, desenterrar do passado outros vestígios e determinar as datas de forma fiável. “As escavações é que podem fornecer mais dados. Muito do que se sabe do Reino do Congo é baseado em tradições orais e em registos literários. A UNESCO quer provas científicas, físicas, de que realmente o Reino teve todo aquele esplendor”, explica Sónia da Silva Domingos.

Foi assim que arrancou, em 2007, o projecto de candidatura de Mbanza Congo a Património Mundial da Humanidade com o lema ‘Desenterrar para Preservar’. Em Fevereiro de 2011, foi feito o levantamento topográfico da cidade e marcado o perímetro que será classificado. Qualquer coisa como 15 hectares que vão ser alvo de escavações, aqui e ali. A prospecção geofísica e a fotografia de satélite vão ajudar arqueólogos e autoridades locais neste corre-corre. Os primeiros têm até Junho de 2012 para escavar e apresentar o projecto de candidatura ao Comité do Património Mundial da UNESCO; os segundos há muito que querem escavar para desenvolver a capital da província do Zaire, mas são obrigados a adiar os planos urbanísticos. “Para não travar o governo local temos que ter métodos mais rápidos, como a prospecção geofísica que pode identificar estruturas a mais de sete metros de profundidade e limitar as escavações”.

A coordenadora do projecto reconhece ainda que Angola tem meios financeiros para o projecto, mas faltam recursos humanos. “Duas companhias petrolíferas que operam no país têm contribuído anualmente para o projecto com cerca de 200 mil dólares americanos. Mas não temos uma equipa profissional interdisciplinar. Para já temos apenas jovens universitários de Benguela e de Cabinda que estão a colaborar. Estamos agora a discutir acordos de cooperação com universidades europeias e africanas. Pelo menos uma instituição portuguesa fará parte desse projecto”, revelou.

De Macau, por onde passou recentemente a título privado, Sónia da Silva Domingos recolheu vários contactos. “Vou sugerir ao Ministério da Cultura angolano um acordo cooperação com a RAEM pois tem património mundial e também elementos de origem portuguesa, como nós temos. Devemos pensar em colaborar com a equipa que preparou a candidatura de Macau”, sublinha a também professora universitária.

 

Um sonho de menina

O plano para o futuro já está traçado. Mbanza Congo vai ter um parque histórico que englobará as áreas a classificar pela UNESCO, assim como uma biblioteca e um centro de pesquisa especializado no Reino do Congo. No entanto, como realça Sónia da Silva Domingos, “não queremos ter algo estático, como um museu. O parque histórico pode inspirar-se em Macau, onde os elementos património da UNESCO fazem parte da vida da cidade. A San Ma Lou, por exemplo, onde património e comércio convivem. É funcional”.

Mbanza Congo não pretende apenas desenterrar ruínas e objectos. Tendo sido um importante porto de saída de escravos africanos, a cidade angolana quer agora tornar-se num centro espiritual. “A sua influência está por todo o mundo, na América, nas Antilhas, no Haiti… Há ainda muita gente que se identifica com a cultura Congo.” A coordenadora garante ainda que há vários investigadores descendentes desta cultura que visitam a região com frequência. “Vêm dos Estados Unidos ou da Inglaterra. Uma vez chegou um professor cubano a dar aulas na Califórnia que trouxe inclusivamente os colares da avó que ela terá levado daqui.”

A candidatura à lista da UNESCO traz outras esperanças às gentes da terra e a quem prepara o dossiê: mais turismo, prestígio para a cidade, desenvolvimento e consequente criação de postos de trabalho. Mas, enquanto nada disso chega, é preciso explicar e convencer a sociedade que é necessário escavar primeiro, para crescer depois. “Fazemos campanhas de sensibilização com os líderes locais, os sábios, as autoridades tradicionais. Por outro lado, trabalhamos com os ministérios e direcções de urbanismo, ambiente, ordenamento de território. Ou seja, quando eles fazem os buracos para construir nós acompanhamos os trabalhos e, se vemos que há vestígios históricos, paramos as obras e fazemos as nossas escavações”, observa Sónia.

Apesar desta técnica de cooperação ser aceite por todos, o sector da arqueologia está em numérica desvantagem. “Arqueólogos, com pelo menos mestrado, há só três em Angola. Não há curso superior num país com sítios arqueológicos importantes e que enterra muitos mais, quase tudo ainda por explorar.”

Além da província do Zaire, há pelo menos outras três com vestígios arqueológicos importantes: Luanda, Benguela e Huambo. “Muito pouco está estudado, só no âmbito de teses de doutoramento. Temos que correr, senão várias estações ficam perdidas para sempre, pois há muita pressão demográfica e imobiliária no país”, comenta com algum sobressalto.

Com tanta escavação pela frente, Sónia da Silva Domingos não desmotiva. A arqueologia continua a ser o sonho de menina. “Sinto-me muito pequenina perante tanta história, é tanta coisa. Se me tirarem do terreno, tiram-me tudo. Não quero ser arqueóloga de escritório.”