O ouro do sobreiro

Não vimos os sobreiros à tardinha como manda a fotografia. Foi mesmo pela manhã que conhecemos o montado da Herdade da Quinta Grande, em Coruche. Nem a sombra da grande copa dos sobreiros protegia os tiradores que ali ficariam até o calor se tornar insuportável. É o tempo de descortiçamento

 

 

Texto Patrícia Lemos

Fotos Paulo Cordeiro, em Portugal

 

Ao longe parecem homens rudes de machado na mão, trepando pelas árvores e desferindo golpes na casca dos sobreiros. Estes tiradores só despelam as árvores com mais de 25 anos e um número dois (de 2002) desenhado no ventre, porque a cortiça fica naquele agasalho durante pelo menos nove anos. “Chama-se a isso um novénio”, explica a engenheira Mariana Ribeiro Telles, técnica da Associação de Produtores Florestais do Concelho de Coruche e Limítrofes (APFC). Conhece bem os termos que habitam os montados (ver “Glossário do Tirador”). E explica: “São nove as linhas”. O indicador, colado à espessura da cortiça, conta veio a veio. E por aí se vê se os anos foram secos, mais ricos, se houve bicho ou não. É o tempo gravado na cortiça, uma das matérias-primas que mais dá a ganhar a Portugal, onde a exploração do ouro do sobreiro é realizada a partir de um processo ambientalmente sustentável.

Para fazer o descortiçamento, “um machado basta”, porque “qualquer pessoa consegue fazer este trabalho”, assegura Albino, de 62 anos, que é tirador há 30. Mas há “árvores ruins como esta”. E aponta para uma já descortiçada que tem pele de galinha. Há casos bem piores. Mariana Ribeiro Telles explica que a maior praga que anda nos sobreiros agora é a cabrilha, “que entra pela cortiça virgem” na parte de cima da árvore.

Se para Albino a cortiça já foi melhor, para a engenheira os terrenos nunca estiveram tão bem tratados: “Não se trata de fazer apenas o descortiçamento. É preciso cuidar dos montados para que a cortiça tenha qualidade”. Hoje em dia, há muito mais consciência ambiental e a beleza da paisagem daquela herdade é prova disso mesmo, com os terrenos limpos e os sobreiros bem afastados uns dos outros – a cerca de cinco metros de distância – para que os troncos alarguem. Ali estão de raízes à larga, a receber os nutrientes daquelas terras arenosas e de baixa fertilidade. São terras pobres mas o sobreiro não precisa de muito para dar a cortiça.

Ainda que não seja exigente, esta árvore tem um ciclo a ser respeitado. Só ao fim de 50 anos é que a cortiça está boa para fazer rolhas naturais. E, apesar de serem só os homens a despelar os troncos – as mulheres juntam os molhos das pranchas para levar para as fábricas -, parece que o talento do tirador não se mede pela força. Quem o diz é Cristalino, de 33 anos. “É preciso ter jeito”, garante do alto de um sobreiro. Mas o colega Fernando, de 40, avisa “se não houver força não há jeito”. E solta uma gargalhada. Cristalino acompanha o alarido sem tirar os olhos da cortiça.

É assim durante as campanhas: contam-se piadas, fala-se do futebol, trocam-se provocações. Mas o machado está sempre a trabalhar. As incisões longitudinais são feitas ao redor do tronco, com a lâmina a rasgar pelas linhas da cortiça, que só os tiradores vêem. Depois é soltar a casca com cuidado, com a ajuda da cunha do machado para a descolar. Pode não ter muita ciência, mas arte é o que não falta a este ofício. Fernando tem a sua fórmula: “Isto é simples. Quanto menos cortes, menos trabalho e quanto maior for a prancha de cortiça, mais pesada é e mais dinheiro rende”.

O tirador Cristalino herdou o gosto pelo campo do avô e do tio. “Andei sempre no mato.” Se não está a descortiçar no Verão, nas campanhas que duram entre dois e três meses, anda na apanha da pinha. Só há um senão nesta labuta – as formigas. “Mordem e não é pouco.” Não tem a pele grossa de Albino que pouco se rala com os bichos: “Elas hão-de cansar-se de morder.”

Cristalino não receia os acidentes, mas confessa que já apanhou um grande susto no montado. Um colega deixou cair um machado, enquanto descascava um dos ramos do sobreiro. Rasgou-lhe a barriga. “Está a ver?”, diz levantando a t-shirt. “Aqui está a cicatriz.” O golpe vê-se à distância, embora o tempo o tenha rosado. Há umas décadas o risco de acidente para estes trabalhadores do campo era bem maior.

“Não nos pergunta como era o antigamente?”, dispara um dos tiradores mais experientes, franzindo o sobrolho. Tanto Albino como os colegas fartam-se de dar entrevistas. “Ui… isto em tempo de campanha vem cá muito jornalista”, garante Fernando. De machado a pesar como pena na mão, Albino não perde tempo e atalha: “Antigamente era assim: trabalhávamos descalços e sem luvas. Ao fim do dia tínhamos as mãos pretas”. E nisto, Cristalino descalça-se e sobe a um sobreiro, colando os pés como ventosas no tronco. Albino passa a narrador: “Está a ver? Era assim que se fazia há 30 anos, quando eu comecei. E já o meu avô fazia isto”. Naquela altura usavam-se uns “tamancos”. Agora as solas de borracha fazem a vez das plantas dos pés.

Mas nem tudo mudou no descortiçamento, ainda que as máquinas tivessem namorado os sobreiros. “Não é a mesma coisa que um tirador”, explica Mariana Ribeiro Telles. Porque os troncos são todos diferentes uns dos outros. O machado golpeia sem tocar com o gume na derme do sobreiro, o entrecasco. Quando a lâmina “foge”, faz ferida que deixa cicatriz na cortiça depois do novénio que leva até à próxima extracção.