Peónia, a rainha das flores

 

 

Márcia Schmaltz

Leitora e doutoranda, Universidade de Macau

 

As flores constituem um importante elemento ornamental dentro do sistema simbólico dos rituais humanos. É difícil de imaginar um casamento, uma inauguração ou um ano novo, por exemplo, sem a presença das flores, não é mesmo? As flores são um símbolo auspicioso que sinaliza o desejo de frutos futuros, como a extensão de sentido do ciclo das plantas às nossas vidas. Quando adquirimos flores a cada entrada do Ano Novo Chinês, esse acto é a materialização da nossa vontade por um novo ano repleto de realizações.

Dentro do folclore chinês, as flores corporificam as quatro estações do ano e as referências não são unânimes: a íris ou a magnólia representam a Primavera; a peónia e a lótus (flor-de-lótus) servem como alegoria para o Verão; o crisântemo, o Outono, e a ameixeira, o Inverno. Ainda é possível de se encontrar listas relativas às flores dos 12 meses do ano, que variam de região para região, de acordo com o que a natureza disponibiliza. Entretanto, o que há de comum entre as listas, como nos conta Eberhard (2000, 110), é o damasco figurar como a flor do segundo mês lunar; o pessegueiro, do terceiro; a flor de lótus, do sexto; a canela chinesa, do oitavo, e o crisântemo, do nono mês lunar.

Proveitos políticos também foram tirados das flores. O presidente Mao levantou a Campanha das Cem Flores (百花齐放,百家争鸣) (1956-57), assim chamada pela frase: “Deixe cem flores florescerem juntas, deixe cem escolas de pensamento competirem”, visando a promover uma maior oxigenação das ideias e críticas dentro do regime, numa analogia do pensamento à planta, que desabrocha em flor de ideias.

Mas qual seria a flor representante do Império do Meio? Isso é tão controverso, que até hoje não se chegou a nenhuma conclusão. Numa rápida retrospectiva da história contemporânea chinesa, constata-se que a peónia foi declarada como a flor nacional no final da dinastia Qing, em 1903, e, revogada, em 1929, pelo Governo Republicano, que promulgou a ameixeira em seu lugar, mas que deixou de ser um símbolo nacional, com a proclamação da República Popular da China, em 1949, quando todos os símbolos nacionais anteriores foram revogados, e nenhuma decisão foi tomada em relação à flor nacional. Apenas mais tarde, em 1981, que alguns botânicos reivindicaram uma definição quanto à flor símbolo da nação. Nenhuma decisão fora tomada, além de ter suscitado calorosos debates em programas de auditórios televisivos. Em 1986, durante a 4.ª sessão plenária da 6.ª Assembleia Popular Nacional, mais de 70 delegados propuseram a ameixeira como a flor nacional. O projecto não foi apreciado. Mas, em 1994, durante a 2.ª sessão plenária da 8.ª Assembleia Nacional Popular, foi aprovado o Projecto de Lei n.º 440 que solicitava uma definição sobre a flor nacional. O projecto foi encaminhado ao Ministério da Agricultura, que por seu turno constituiu uma comissão encabeçada pela Associação Chinesa de Floriculturistas para a análise da matéria. Não muito tempo depois, se promoveu uma pesquisa dentre as 31 províncias, regiões e municípios directamente subordinados ao Governo Central, bem como debates publicados na revista da referida associação, que mobilizou várias opiniões de diversos estratos sociais chineses.

O resultado da pesquisa revelou uma multiplicidade de opiniões, onde 18 províncias indicaram a peónia e 13 indicaram quatro flores, simbolizando cada uma das estações, nomeadamente a peónia, a ameixeira, o crisântemo e a flor-de-lótus, sendo que duas províncias propuseram a orquídea no lugar da lótus. Ao final, a comissão propôs unanimemente a peónia como a flor nacional chinesa, tendo outras quatro flores representantes das estações: a ameixeira representando o Inverno, a orquídea, a Primavera; a lótus, o Verão, e o crisântemo, o Outono. Contudo, o Ministério da Agricultura não encaminhou para a aprovação da Assembleia Popular Nacional, o que significa dizer que, até o momento, a China não possui uma flor como símbolo nacional oficial.

Enfim, independente duma aprovação oficial, a peónia apresenta-se como uma flor importante dentro da simbologia chinesa, junto à flor-de-lótus, à ameixeira, ao crisântemo e à orquídea, só para citar algumas. Então, depois dessa introdução, dedicaremos a falar da rainha das flores, a peónia.

 

Informações botânicas

A peónia pertence a família Paeoniaceae (芍药) e o seu porte é entre 0,5 a 1,5 metros de altura. As flores são grandes, delicadamente perfumadas e podem ser simples, semi-dobradas e dobradas, que desabrocham no final da Primavera e início do Verão, por um período de cerca de 20 dias. Entre as cores, há a branca, a rosa, a vermelha e a púrpura. Geralmente, a flor possui cinco sépalas e o número de pétalas são entre cinco a dez. Às vezes, encontra-se muitas espécies com um maior número de pétalas, devido ao surgimento de flores duplas. A sua reprodução ocorre através de sementes pretas brilhantes que nascem aos milhares em vagens.

A peónia é também utilizada como planta medicinal. As raízes da espécie P. lactiflora (Peónia Chinesa) foram muito preconizadas no tratamento de convulsões e o seu cultivo data mais de 2000 anos, onde se encontra o seu registo num compêndio de ervas medicinais localizado num túmulo da dinastia Han do Leste (25-220). Sendo uma espécie natural do Interior chinês, pode ser encontrada do leste ao oeste da província de Shandong, passando por Henan, Sichuan, Yunnan, chegando até ao planalto do Tibete. Com a destruição progressiva das florestas, actualmente é mais difícil encontrar peónias selvagens.

 

O cultivo da peónia

O registo mais antigo do cultivo como flor ornamental data da dinastia Nan Bei (420-581) e se torna uma verdadeira febre nacional na dinastia Sui (581-618). Porém, é na dinastia Tang (618-907) que a peónia recebe a alcunha de “a rainha das flores”, quando um camponês, sob às ordens do imperador Tang Xuanzong (唐玄宗) (712-713), teria plantado mais de dez mil peónias de todas as cores no monte Li (骊山) em Xi’an. É nesse período que a peónia se torna a fonte de inspiração artística, principalmente na pintura e na literatura.

O cultivo das peónias é apreciado também de maneira diferente entre as etnias chinesas, a Tujia (土家族) e a Bai (白族), que costumam plantar ao menos três a cinco pés da espécie em seu jardim, como um símbolo auspicioso e de prosperidade. Outras etnias como a Tibetana (藏族) preferem subir às zonas montanhosas para apreciar as peónias selvagens.

 

A peónia nas artes plásticas

A peónia é um tema recorrente nas gravuras chinesas devido à forma exuberante e delicada de sua flor. O registo mais antigo de sua pintura remonta à dinastia Nan Bei,  ao calígrafo Yang Zihua (杨子华). Na altura da dinastia Tang, são inúmeros os artistas que a tomam como motivo. Destaque especial ao Bian Luan (边鸾) que as pintava com traços subtis e vivazes. Nas Cinco Dinastias (907-960), a leveza da pena de Xu Xi (徐熙) desenhava peónias atraentes e singulares, especialmente a gravura com uma orquídea (lán玉兰), uma macieira silvestre (hǎitáng海棠), uma peónia (mǔdān牡丹) e um osmantus (guìhuā桂花) que compõem uma nova expressão, através de trocadilhos entre os ideogramas homófonos (sinalizados em negrito, acima) uma alusão à 玉堂富贵 (yùtángfùguì), isto é, no salão (táng堂) de jade (玉) reina a riqueza (富, outra designação para a peónia) e a nobreza (guì贵).

Já Xu Wei (徐渭) da dinastia Ming (1368-1644) abusou da técnica da tinta da china espirrada (泼墨), conferindo às peónias traços vigorosos e desenvoltos. Contemporaneamente, Wang Xuetao (王雪涛) (1903-1982) teve as flores como um de seus temas predilectos e conferiu à peónia um aspecto dinâmico e único, enquanto Qi Baishi (齐白石) (1864-1957) preferiu desenha-las de forma minimalista. Muitas vezes, a pintura da peónia é acompanhada com a inscrição caligráfica “beleza nacional e fragrância celestial” (国色天香).

 

A peónia na literatura

No Livro dos Cantares (诗经), da dinastia Zhou (1100 anos a.C.), encontra-se uma estrofe pela qual declama a dedicatória da flor entre jovens donzelas graciosas, denominada na altura como shaoyao (芍药).

Conforme a totalização de Yang (1985), há mais 400 poemas dedicados à peónia, sendo 125 de mais de 50 poetas da dinastia Tang, entre eles, Li Bai (李白), que compara a peónia à beleza da concubina favorita do imperador Xuanzong, e Bai Juyi (白居易), que exalta a polvorosa devoção dos citadinos durante o período de floração da peónia. Ou Yangxiu (欧阳修), poeta da dinastia Song (960-1279), também entoa o costume dos habitantes de qualquer classe social de Luoyang de apreciar as peónias.

Em termos de dramaturgia, destacamos a ópera O Pavilhão das Peónias 《牡丹亭还魂记》de Tang Xianzu (汤显祖), da dinastia Ming. O drama exalta a coragem dos jovens contra os costumes da sociedade confuciana feudal, especialmente contra o casamento arranjado. Claro que não poderíamos deixar de mencionar a lenda Os Galanteios de Lü Dongbin para a Peónia《吕洞宾戏牡丹》, que narra a corte de um dos oito imortais daoistas mais mundano dentro do panteão chinês à fada Peónia para obter o grampo sagrado da Rainha Celestial a fim de salvar uma aldeia (ver conto traduzido).

Em termos de romance, há uma passagem sobre as peónias em Flores no Espelho《镜花缘》de Li Ruzhen (李汝珍), da dinastia Qing. O livro inicia pelo episódio da única imperatriz da história chinesa, Wu Zetian (武则天), que após ascender ao trono ordena o desabrochar de todas as flores em pleno Inverno, e apenas a peónia se recusa a obedecer, o que lhe rendeu a permanência no reino celestial junto à ameixeira, que floresceu no seu período habitual. Como punição por aflorarem antes de época, o deus das flores junto com as fadas florais foram punidos com a reencarnação no mundo terrestre pelo Supremo Celestial.

 

Simbologia

A liberalidade do emprego de simbologias é uma das características marcantes da cultura chinesa. Devido ao seu aspecto exuberante e elegante, a peónia remete à simbologia da nobreza e da riqueza. Na próspera dinastia Tang foi tomada como flor nacional e, durante o período de floração, Xi’an era tomada pelo carnaval. A partir de então, a peónia tornou-se sinónimo de ventura e prosperidade. Principalmente relacionada à prosperidade, pois o aspecto farto e erecto da flor transmite uma impressão de dignidade e realeza. Muitas vezes a peónia é representada junto a uma outra flor, fruta ou árvore, que associará a sua simbologia com a de outra planta. Por exemplo, quando desenhada com hibiscos simbolizam a abundância em riqueza e reputação. Se encontrar um quadro com peónia e maçãs, “a sua casa é rica e goza de bom crédito”. Já peónias junto aos pêssegos representam riqueza e longevidade.

Prototipicamente, a palavra “flor” remete à imagem da peónia como sinónima. Conquanto a peónia vermelha seja a mais admirada, a peónia branca simboliza as raparigas inteligentes, arrebatadoramente belas. Na música popular chinesa é recorrente ouvir-se: “Espero pela florescência da peónia no jardim” ou “quando a peónia desabrocha, sua fragrância espraia-se a mil milhas, atraindo borboletas de todos os lugares”. Essas passagens são uma clara referência à volúpia, onde as borboletas se referem aos homens.

O interessante de se observar é que, independente da etnia ou do sistema político, a peónia é como um ponto de confluência à unidade cultural chinesa.

 

Onde apreciar as peónias

As peónias desabrocham entre os meses de Abril e Maio. Todos os anos é realizado o Festival das Peónias em Luoyang, na província de Henan, e em Heze, Shandong, entre os dias 10 de Abril e 10 de Maio. Em Macau, podemos apreciar as flores nos jardins de Lou Lim Iok.

 

Bibliografia

Eberhard, Wolfram (2000) A Dictionary of Chinese Symbols. Londres: Routledge.

Fairbank, John K., Goldman, Merle (2006) China: uma nova história. Porto Alegre: LP&M.

Shijing [O Livro dos Cantares] (1979). Tradução de Joaquim A. Guerra. Macau: Jesuítas Portugueses.

Tang, Xianzu [汤显祖] (2006). 《牡丹亭还魂记》 [O Pavilhão das Peónias] in Chen, Z.Y e Wu, Y.S. (Org.) 《中国文学名著导读》 [Guia das Obras Clássicas Chinesas]. Wuhan: Changjiang, p. 517-524.

Wei, Ying-Tao [魏迎涛] (2006) “中国传统的牡丹图案装饰与设计” [Formas da peónia na gravura tradicional chinesa] in Revista do Instituto Tecnológico de Zuzhou 20 (5), p. 9-11.

Yang, Maolan [杨茂兰] (Org.) (1985)《历代咏牡丹诗词四百首》[Quatro centos poemas de todos os tempos dedicados à peónia]. Beijing: Zhongguo Zhanwang.

Página da Assembleia Popular Nacional, disponível em: http://www.npc.gov.cn/, acessada em 12 de Março de 2011.

Página de caligrafistas e pintores chineses, disponível em: http://www.zgmhj.com/ldmj.htm, acessada em 12 de Março de 2011.