Uma nova era de relações

Antes apenas parceiro comercial da China, o Brasil tornou-se destino de investimentos chineses em tecnologia de última geração

 

 

Texto Gisele Lobato

Fotos Raoni Maddalena

 

Brasil e China estão a assumir novos papéis no cenário global, o que implica mudanças nas relações bilaterais. Segundo levantamento do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), o ano de 2010 foi o divisor de águas na história dos dois países. Até o ano passado os investimentos chineses directos no Brasil eram esporádicos, movidos pela estratégia particular de alguma empresa. Em 2010, porém, houve um crescimento expressivo nos anúncios de novos negócios.

“O salto nos investimentos em 2010 foi tão elevado que, no Conselho, o chamamos de uma ‘nova fase no relacionamento’”, afirmou o coordenador de Análise do CEBC, André Soares.

Em 2010, grupos chineses anunciaram 25 projectos com um investimento total de 35 mil milhões de dólares norte-americanos. O levantamento do Conselho aponta que 90 por cento dos anúncios foram movidos por empresas em busca de recursos naturais. Esse é o caso, por exemplo, da Sinopec, que adquiriu 40 por cento das operações brasileiras da petrolífera Repsol.

Há anos o Brasil desempenha o papel de importante fornecedor de produtos primários para a China, como soja, minério de ferro e petróleo. O que o levantamento mostra é que, no ano passado, os chineses passaram a produzir no Brasil o que antes obtinham pelo comércio com produtores brasileiros. Mas o que mais chama a atenção é que a revolução iniciada em 2010 não parou. O ano de 2011 marca uma nova mudança radical: antes simples fornecedor agrícola e mineral, o Brasil passou a atrair tecnologia.

A fabricante de equipamentos para telecomunicações ZTE, por exemplo, propôs em Abril a construção de um parque industrial de alta tecnologia na cidade de Hortolândia, a 109 quilómetros da cidade de São Paulo. A empresa, que tem sede em Shenzhen, prevê um investimento de 200 milhões de dólares no pólo, que sediará o primeiro centro de investigação e desenvolvimento da ZTE na América Latina, além de produzir telemóveis, tabletas e modems e, no futuro, equipamentos para redes de telecomunicações. No local serão instalados também centros de atendimento, logística, reparos e formação.

Na mesma altura, a Huawei – outra multinacional de telecomunicações de Shenzhen – anunciou um investimento de 350 milhões de dólares na instalação de um centro de investigação de desenvolvimento na cidade de Campinas, a 93 quilómetros de São Paulo. A empresa já possui um centro de formação, logística e assistência técnica na cidade.

Líder em equipamentos para banda larga fixa e móvel no Brasil, a Huawei ainda não tem fábrica no país, mas produz localmente por meio de uma parceria com a Flextronics, de Singapura. A empresa não descarta abrir uma fábrica própria no Brasil no futuro. “É uma decisão de longo prazo e nós ainda estamos a analisar”, declarou o presidente da Huawei do Brasil, Li Ke.

Tanto a Huawei como a ZTE confirmaram os seus planos durante a visita da presidente brasileira, Dilma Rousseff, à China, em Abril deste ano. “Dilma foi à China buscar investimentos com maior valor agregado”, assinalou André Soares. A procura por transferência de tecnologia e por aportes que ajudem a desenvolver a indústria brasileira é uma constante nas viagens da presidente desde que assumiu o Governo, em Janeiro.

Além das multinacionais de Shenzhen, a presidente voltou para o Brasil com a promessa histórica de uma fábrica da Foxconn, gigante responsável pela fabricação do iPad e do iPod, da Apple. As negociações para a criação dessa fábrica correm actualmente em sigilo. Sabe-se, porém, que a chegada da companhia ao Brasil deverá resultar em cerca de 100 mil empregos directos, resultantes de um investimento de 12 mil milhões de dólares nos próximos cinco anos. Beneficiados por um amplo programa de incentivos fiscais, os produtos da Apple deverão começar a ser produzidos no país ainda este ano, numa fábrica localizada em Jundiaí (58 quilómetros de São Paulo).

Já há empresas que montam equipamentos semelhantes aos da Apple no Brasil. O ineditismo do anúncio, porém, deve-se ao facto de que o investimento da Foxconn prevê, numa segunda etapa, a fabricação de ecrãs sensíveis ao toque no Brasil. Hoje nenhuma fábrica do Ocidente domina essa tecnologia. Os ecrãs e os semicondutores são considerados “estratégicos” pelo Governo brasileiro.

“Só 20 países do mundo fazem semicondutores. Queremos entrar nesse clube de privilegiados e também queremos ter ecrã táctil no Brasil e uma indústria de componentes. Estamos a trabalhar fortemente nessa direcção”, disse o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Aloizio Mercadante. Ele promete que todas as empresas que quiserem produzir localmente esses produtos receberão incentivos.

 

Vantagens

Muitos sectores da indústria brasileira dizem que não conseguem competir com os produtos fabricados na Ásia. Nesse sentido, parece um contra-senso o fluxo de investimentos em fábricas no Brasil. No entanto, empresários garantem que pode valer a pena transferir a produção, ainda mais quando o Governo brasileiro dá sinais de que quer recebê-los de braços abertos.

A redução nos gastos logísticos e no tempo de entrega das encomendas é a vantagem mais evidente. Além disso, ter uma indústria local evita a instabilidade do câmbio e a ameaça de barreiras comerciais. Mas o principal factor apontado para a construção de fábricas no Brasil é a necessidade de personalizar os produtos para ganhar espaço num mercado consumidor cada vez mais importante – apesar de ter uma população muito menor do que China e Índia, o Brasil está entre os países do globo que mais consomem computadores, telemóveis e televisores.

“O mercado brasileiro tem particularidades. Isso exige que as empresas que querem trabalhar com sucesso no país usem a personalização adequada”, afirmou o presidente da ZTE Brasil, Eliandro Ávila.

Há mudanças simples, como o idioma do sistema, mas a necessidade de adaptação não pára por aí. Ávila cita, por exemplo, que o consumidor brasileiro não abre mão de um leitor de MP3 e câmara fotográfica de alta qualidade no telemóvel. “A ZTE do Brasil, atenta a essas necessidades, desenvolve novos produtos para que sejam únicos e totalmente adequados ao gosto do consumidor brasileiro”, afirmou o executivo.

No mesmo sentido, o director de terminais da Huawei do Brasil, Liu Dan, considera que “todos os mercados exigem algum tipo de adaptação”. “É por isso que criamos centros de inovação em todo o mundo, que permitem à Huawei fazer adaptações de acordo com as necessidades de nossos clientes”, declarou.

 

Parcerias

As diferenças culturais e a complexidade da legislação laboral e tributária brasileira assustam muitas empresas que poderiam investir no Brasil, afirma Paul Liu, director da Fortune Consulting e presidente honorário da Câmara Brasil-China de Desenvolvimento Económico (CBCDE). Para um consultor, encontrar um parceiro local é o melhor caminho para entrar no país.

Um bom exemplo é o fabricante de automóveis JAC Motors, que se associou ao empresário brasileiro Sérgio Habib para conquistar mercado. A competitividade chinesa, aliada ao conhecimento sobre os hábitos de consumo do brasileiro, levou a marca ao segundo lugar entre os veículos importados em apenas seis meses.

Para Paul Liu, o momento actual é ideal para procurar essas parcerias, já que os empresários brasileiros estão atrás de investidores para modernizarem as suas fábricas. “As empresas brasileiras têm mercado, mas falta competitividade. Precisam reduzir custos de produção e melhorar os produtos, mas isso requer investimentos”, ressaltou.

Entre as áreas mais promissoras para esse tipo de sociedade Paul Liu cita vestuário, máquinas e equipamentos, peças para automóveis, telecomunicações e tudo o que for relacionado à tecnologia.

 

Revolução sobre rodas

Desde 2010, a entrada de fabricantes de automóveis chinesas no Brasil está a provocar uma verdadeira revolução no mercado local. JAC, Chery, Dongfeng e Lifan estão entre as companhias que anunciaram investimentos milionários no país no último ano, atraídas por um mercado que bate recordes mensais de vendas. Só em Agosto foram vendidos 327.400 veículos no Brasil, 6,9 por cento mais que em Julho e 4,7 por cento acima do registado no mesmo mês de 2010.

O primeiro anúncio foi da Chery, maior fabricante de automóveis da China. A companhia oficializou em Setembro do ano passado que abriria uma fábrica na cidade de Jacareí (84 quilómetros de São Paulo). Em Junho deste ano, foi lançada a pedra fundamental da unidade, que receberá 400 milhões de dólares norte-americanos em investimentos e deve estar pronta até o fim de 2013. No início das operações, a capacidade de produção será de 50 mil veículos ao ano, com a possibilidade de subir para até 150 mil.

A Chery comercializa carros no país há dois anos, mas foi a JAC Motors a fabricante chinesa que mais ganhou visibilidade no Brasil, devido a um intenso trabalho de marketing. O investimento inicial foi feito pelo grupo SHC, de Sergio Habib, sócio dos chineses e presidente da JAC no Brasil. Modelos foram adaptados ao gosto dos brasileiros e uma ampla rede de lojas foi montada.

Poucos meses após o início da operação, a companhia já anunciava que investiria 600 milhões de dólares norte-americanos numa fábrica no país, projectada para produzir 100 mil veículos por ano a partir de 2014.

A Lifan, que comercializa no Brasil modelos montados no Uruguai, confirmou em Julho a injecção de 100 milhões de dólares numa fábrica brasileira, que começaria a ser produzida no próximo ano. A Dongfeng, por sua vez, deverá começar a vender, a partir de 2012, camiões médios e pesados inicialmente importados. Até 2015, a empresa também pretende ter uma fábrica local.

Com excepção da Dongfeng, as fabricantes chinesas entraram no Brasil para competir, principalmente no segmento dos carros populares. A investida abalou as montadoras tradicionais, que começaram a se instalar no Brasil na década de 50.

“Os concorrentes chineses possuem características extremamente desafiadoras, como recursos tecnológicos avançados, típicos de modelos de luxo”, além de “preços mais baixos do que os concorrentes da indústria brasileira na mesma categoria”, diz o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), no relatório publicado em Maio deste ano.

Na época, a entidade já previa que isso geraria impacto em toda a cadeia automóvel brasileira. Ao longo dos últimos meses, o que se viu foi uma redução nos preços do mercado como um todo, mas a previsão dos analistas ia mais longe: a indústria local seria obrigada a se modernizar para competir.

 

Proteccionismo

Sob a pressão das montadoras instaladas no Brasil, o Governo anunciou em Setembro aumento no imposto sobre veículos importados. A medida afecta até os carros fabricados no Brasil que tenham menos de 65 por cento de suas peças produzidas localmente.

O consultor Paul Liu aponta que proteger a indústria local é uma tendência do Governo brasileiro, o que pode ser considerado incentivo para os investimentos directos em produção no país. “Não dá para querer só exportar, porque medidas de protecção e barreiras alfandegárias acabam por retirar vantagens ao produto”, ressaltou.

Como o aumento no imposto afecta também carros montados no Brasil com grande percentual de peças importadas, algumas fabricantes disseram que a medida poderia inviabilizar a construção de fábricas no Brasil, pois a formação de uma cadeia de fornecedores locais leva tempo. Nenhum, porém, cancelou os planos oficialmente.

Num segundo momento, porém, a imprensa brasileira deu conta que o Governo passou a demonstrar abertura para negociar incentivos e trazer essas indústrias.

A ideia era diferenciar os veículos totalmente importados dos montados no Brasil com peças estrangeiras, desde que as empresas se comprometessem com a adopção de um calendário para a nacionalização gradual dos produtos.