As letras passam por aqui

O primeiríssimo festival literário de Macau, que aconteceu de 29 de Janeiro a 4 de Fevereiro, pode não ter transformado a cidade, mas lançou uma semente

 

 

Texto Hélder Beja

Fotos António Mil-Homens

 

Que ideia desvairada a de fazer um festival literário em Macau. Será? Até pode ser, mas às vezes as boas ideias são assim: aliam grandes doses de potencial a doses ainda maiores de surpresa. A Rota das Letras é uma dessas ideias.

O primeiríssimo festival literário de Macau, que aconteceu de 29 de Janeiro a 4 de Fevereiro, pode não ter transformado a cidade, mas lançou uma semente. A semente para um encontro de mulheres e homens de letras que anualmente rumarão a Macau para conhecer esta terra, estas pessoas, esta encruzilhada de seres humanos. Anualmente, como já este ano, estas mulheres e estes homens beberão a história de Macau e a Macau contemporânea, que caminham lado a lado, e sobre elas escreverão.

A Rota das Letras trouxe a Macau nomes grandes da literatura portuguesa, como José Luís Peixoto. Trouxe nomes consagrados, como José Rodrigues dos Santos. E trouxe também jornalistas talentosos que decidiram experimentar a ficção, como Rui Cardoso Martins e Paulo Aido. A eles juntaram-se João Paulo Cuenca e Tatiana Salem Levy, com sangue e ideias frescas do Brasil.

Das letras chinesas, Su Tong foi o príncipe que aceitou o convite de visitar Macau. Teve a companhia de Jimmy Qi, chegado de Pequim, e de Lolita Hu e Jade Y. Chen, de Taiwan. Xu Xi, de Hong Kong, mostrou que é possível escrever em inglês na Ásia e ter livros publicados aqui e nos Estados Unidos da América. Uns mostraram perante o público que já os conhecia o porquê de estarem publicados, de serem lidos. Outros mais desconhecidos (porque ainda não traduzidos), como a inteligentíssima Lolita Hu, mostraram que há e haverá sempre mais um grande pensador para conhecer amanhã.

Podia continuar a escrever sobre os convidados e a saltar para as outras áreas que o programa abarcou, como o cinema (Miguel Gonçalves Mendes, Ivo Ferreira, Tony Ayres), a música (Aldina Duarte, Noiserv, Nancy Vieira), as artes plásticas (André Carrilho, Mito Elias). Eles merecem estas palavras e esta atenção. Mas é mais interessante reflectir sobre o festival.

Na minha cabeça a Rota das Letras fez sempre sentido. Mais: estava na cara que fazia sentido. Macau, por todas as suas especificidades históricas e geográficas, afigurava-se como o lugar certo (talvez até o único lugar) para fazer nascer um acontecimento que aqui juntasse autores dos países lusófonos e da China. Em Portugal, e apesar da crise, o mercado editorial continua forte e escreve-se com qualidade. Por cá, e mesmo com os caracteres que nos separam, percebe-se que a edição tem uma escala gigantesca e que a leitura, se bem promovida, pode seguir o mesmo caminho.

João Paulo Cuenca disse, numa das sessões da Rota das Letras, que se tivesse dinheiro fundaria em Macau uma editora apenas especializada em traduzir autores do português para o chinês e vice-versa. José Rodrigues dos Santos acrescentou que o festival deve vir a ser um meio e não um fim em si mesmo, deve potenciar traduções e compra de direitos autorais, deve de facto aproximar estas duas grandes fatias do mundo que se entendem nestes dois idiomas. São apontamentos importantes de quem está atento a um caminho que pode e vai ser feito. Nós esperamos poder ajudar.

Nada melhor que acções concretas para consubstanciar ideias. E desta primeira edição da Rota das Letras já se extrairão proveitos bem reais. Além de todos os projectos imprevisíveis que daqui podem partir – e nesta edição a MACAU dá conta de um deles, encabeçado pelo cineasta Miguel Gonçalves Mendes –, há um fruto já assegurado que medrará deste festival: os contos que os autores que visitaram Macau escreverão sobre esta terra.

As palavras são a nossa memória. É certo que as imagens também. Mas as palavras registam-nos e ao nosso tempo de um modo que, por ser tão especial, não perdeu acutilância ao longo de séculos – nem mesmo com toda a tecnologia que hoje utilizamos. Isto serve para dizer que Macau terá o privilégio de ficar gravada na memória colectiva de todos através das palavras escolhidas e orquestradas por grandes autores. E Macau, esta Macau de casinos que não é só de casinos, precisa de ver esta sua contemporaneidade registada, precisa de olhar-se ao espelho (e há poucos espelhos melhores que os livros), precisa afinal de saber caracterizar-se e rir-se de si própria.

Os livros de contos em português, chinês e inglês serão frutos prontos a colher na segunda edição da Rota das Letras, um festival que por essa altura estará também ele mais maduro. Além dos contributos inéditos daqueles que nos visitaram, os livros vão conter ainda textos de novos autores que arriscarão escrever e participar no concurso de contos que o festival lançou e que está aberto a todos até 31 de Maio deste ano.

Não se constrói um festival literário num ano. E não se acrescenta o amor pelo livro e pela leitura ao esqueleto de uma sociedade em meia dúzia de anos. Perto de Bruxelas, na Bélgica, há uma pequena vila cujo nome não recordo e que visitei ainda antes de rumar à Ásia. Praticamente só tem livrarias, restaurantes e pousadas. É um pedaço de planeta encantador, com pastos verdes e ribeiros, e um paraíso para os amantes do livro que foi sendo construído ao longo de décadas. Claro que Macau nunca será assim, nem ter por que sê-lo. Mas Macau deve ao livro um lugar que ele ainda não tem, deve-lhe mais atenção e reconhecimento, deve-lhe a confirmação de um estatuto nobre que o conhecimento e a memória devem ter em qualquer ajuntamento de seres civilizados.

A Rota das Letras pode não ter transformado a cidade, mas deitou à terra uma semente: a semente de elevar o livro e a leitura a patamares que nos podem tornar a todos melhores. E de fazê-lo aproximando novamente as duas grandes culturas que dão a Macau esta cor tão especial.

A lusofonia ficou um bocadinho mais chegada à China através das palestras que organizámos, mas também dos jantares em que partilhámos as nossas vidas; através dos filmes que vimos, mas também das caminhadas que demos pela cidade; através do que todos trouxeram, mas também do muito que levaram consigo – incluindo novos amigos, novos contactos, novas ideias.

O próximo capítulo deste romance só pode ser ainda melhor.