Futebol lusófono marca golos na China

A China abriu as portas ao futebol lusófono. Prova disso é o número crescente de treinadores portugueses que dirigem equipas e de jogadores brasileiros que marcam golos ao serviço das quadras chinesas. O jogo é ‘made in China’, mas tem sabor lusófono

 

 

Texto Vera Penêda

 

“Oh Putaoya (Portugal)! Sim sei, Figo e Cristiano Ronaldo”, diz um taxista enquanto contorna o trânsito caótico e a multidão vestida de verde na Gongti Beilu, no popular bairro de Sanlitun, em Pequim. É dia de jogo no Estádio dos Trabalhadores e os adeptos do Beijing Guo’an, o clube da capital chinesa, invadem a avenida para apoiar a equipa. “E também conheço o Pa Qieke que agora está no Guo’an”, acrescenta o taxista referindo-se a Jaime Pacheco, o português que dirige a equipa.

Até há pouco tempo apenas a televisão e a presença de Cristiano Ronaldo em publicidades de champô espalhadas pelo metro de Pequim abriam os olhos da China para a ginga do futebol lusófono. Actualmente há uma dezena de técnicos portugueses e cerca de 20 jogadores brasileiros ao serviço dos clubes chineses, provando que o império convocou a técnica lusófona para ajudar a internacionalizar o futebol chinês.

 

Jogar em casa fora de casa

“Shang, shang”, grita Jaime Pacheco, de 53 anos, durante um treino do Guo’an a dar instruções para os jogadores avançarem no campo. Assistido por um tradutor espanhol, Pacheco só reconhecia os elementos da sua equipa por números quando aterrou na capital chinesa em Janeiro de 2011.

“A linguagem do futebol, a mímica e a confiança que se vai gerando em equipa resolvem a barreira do idioma,” explica Pacheco. “Preocupava-me mais o frio. Dez ou 15 graus negativos é um frio impressionante para quem está habituado a Portugal”, conta o treinador. Não foi amor à primeira vista, mas Pacheco acabou por aceitar a proposta do Guo’an, que saía de uma época difícil. “A China está a crescer em todos os sentidos e o futebol não é excepção. Fiquei contente com a posição na capital, gostei da equipa e houve empatia profissional, por isso acabei por assinar por um ano.”

Em 20 jogos do campeonato chinês no ano passado, o Guo’an só sofreu duas derrotas. Pacheco acabou por renovar o seu vínculo com Pequim por mais dois anos. “Senti-me muitíssimo bem recebido, de uma forma que já não é comum na Europa. Estou a gostar muito de estar na China. Fora a família, não me falta nada”, revela o treinador, que até presunto Pata Negra recebe do presidente do Guo’an. “O clube respeita o meu trabalho, exige muito de mim mas dá-me condições para eu dar o meu melhor. Os jogadores têm enorme vontade de aprender e aceitam as mudanças com enorme entusiasmo, o que torna o meu trabalho motivante e apreciado.”

O técnico português Nelo Vingada, de 58 anos, até já chamou toda a equipa do Dalian Shide para jantar em sua casa, de forma a retribuir o acolhimento chinês à moda portuguesa. Com provas dadas na Ásia, onde levou o FC Seul a campeão nacional na Coreia do Sul, Vingada aceitou o desafio, até ao fim deste ano, de recuperar uma equipa que está na mó de baixo.

“O Dalian Shide é o clube com mais campeonatos ganhos na China. Gosto de estar na Ásia e gostei da abordagem. Fiquei alegremente surpreendido com a cidade e o clima temperado de Dalian”, conta. “Há uma enorme respeitabilidade e maior abertura que na Coreia ou no Egipto. Entendem que eu decido o que é melhor para a equipa sem interferir com a cultura e os hábitos. Os jogadores aceitam a mudança com humildade, às vezes até com uma subserviência exagerada, algo que tento mudar um pouco para que haja um ambiente descontraído e de maior liberdade”, explica.

Outro treinador português, Manuel Barbosa confirma a tendência dos conterrâneos em quererem prolongar a estada na China. “Sabia que o país seria um pequeno mundo, mas ultrapassou em grande medida as minhas expectativas”, diz o técnico, que aos 60 anos se mudou de armas e bagagens para Weifang, na província de Shandong. “Fiquei admirado com a qualidade de vida na China e a qualidade da academia de futebol. As pessoas são extremamente simpáticas e disponíveis.”

A orientar a formação jovem do Shandong Luneng com assistência de um tradutor inglês, Barbosa teve o duplo desafio de melhorar o inglês para se fazer entender na China. Com cinco meses no clube, o técnico acabou por ser promovido para treinar a equipa principal, que sofreu quatro derrotas seguidas no campeonato e rescindiu contrato com um treinador croata, contudo depois da experiência voltou outra vez às camadas jovens.

 

Um novo mercado?

Portugueses e brasileiros chutaram a bola para fora da sua terra natal por razões diferentes. “Não pensava sair de Portugal, mas as condições financeiras seriam difíceis de igualar e eu agarrei a oportunidade”, afiançou Ricardo, ex-Vitória de Guimarães que assinou por dois anos com o Shandong Luneng, mas só cumpriu um ano do contrato. “Estava à espera de um clube mais fraco e fiquei muito surpreendido com a qualidade dos jogadores, as infra-estruturas e o acolhimento”, disse o defesa, a fazer um balanço da sua estada na China, antes de assinar pelo Paços de Ferreira e regressar a Portugal devido a saudades da família.

Fora a gastronomia e o idioma “complicados”, o futebolista vê com bons olhos o franco desenvolvimento do desporto. “Eu diria que a China pode ser um bom mercado para jogadores de todo o mundo. O futebol está em fase de crescimento e com uma enorme vontade de se qualificar e ganhar importância internacional.”

Há 15 anos fora de Portugal, com uma passagem pontual pelo país para treinar o Marítimo, Nelo Vingada ressalta a vontade de participar nessa abertura e nesse crescimento. “Não tenho saudades nenhumas do futebol português. Financeiramente a situação é má e perdeu-se o respeito”, considera.

Jaime Pacheco alinha nesta opinião. “Não há dinheiro, nem paixão. É só ambição e uma tremenda falta de valores. Para piorar, as pessoas andam preocupadas com tantas dificuldades, o país no geral está desanimado”, desabafa a mostrar intenção de mudar a família para a China em vez de regressar.

O brasileiro Obina, de 28 anos, não pensou duas vezes quando uma proposta chinesa saltou-lhe à vista. “Estava muito acomodado, estive quatro anos sem sair do Brasil”, conta o jogador, que deixou o Atlético Mineiro e chegou à China há cerca de nove meses. “Há muitos brasileiros a jogar futebol, por isso quando surge uma oportunidade para se jogar no estrangeiro, tem de ser agarrada como forma de valorizar a carreira”, justifica. O atacante assinou por três anos com o Shandong Luneng e não houve lugar ao arrependimento. “O clube oferece todas as condições em termos de equipamentos desportivos e incentivou muito a vinda da minha família.”

O jogador diz estar contente por contar com a companhia de dois “amigões” na equipa: os conterrâneos Fabiano e Silva. O facto de ter um treinador a falar português também é, para Obina, uma mais-valia por facilitar a comunicação. “De resto, não é difícil adaptar-se. Os chineses respeitam a nossa cultura e a China é um país em expansão onde não se vê violência. Isso pesa muito.”

 

Internacionalização

Jaime Pacheco acredita no potencial do futebol chinês. “Vai disparar!”, prevê. Nelo Vingada acha que ter profissionais portugueses a trabalhar no futebol estrangeiro está a abrir as portas ao futebol de Portugal, apontando os exemplos de José Mourinho na Europa, a frente do Real Madrid, e do adversário Pacheco na China. “O Brasil tem jogadores por todo o mundo. Esta emigração é quase uma questão cultural. Eles são bons e ganham muito melhor no estrangeiro”, aponta. Em Janeiro, Vingada reforçou a presença lusófona no futebol chinês com a vinda do genro, o defesa direito Ricardo Esteves, que jogou no Benfica e no Marítimo, em Portugal.

Ambos treinadores trouxeram consigo colaboradores portugueses, mas comprar jogadores lusos pode ser mais complicado. “Tentei, mas os jogadores portugueses que estavam disponíveis estão sobrevalorizados e os clubes chineses não pagam tanto assim”, revela Jaime Pacheco. No entanto, no início deste ano, o Beijing Guo’an conseguiu finalizar a contratação do português Manú, que já passou pelo Benfica mas estava a jogar na Polónia.

A interacção com a gestão chinesa tem sido positiva com os treinadores a implementarem novas pautas nas equipas, como a pontualidade, o espírito e organização da equipa ou a alimentação regrada para ajudar a internacionalizar o futebol chinês.

Só a ginga não pode ser ensinada. Natural de um país que tem o futebol nos genes, Obina sente a falta de algum calor humano em campo na China, onde o futebol não tem a mesma tradição. “Está a evoluir muito em investimento e qualidade. A China já não quer ser apenas a anfitriã olímpica, também quer internacionalizar o seu futebol, daí o forte interesse em contratar jogadores e técnicos estrangeiros.”

Na capital, onde um passe para ir ver todos os jogos do campeonato ao estádio custa cerca de 300 yuans, o futebol já tem alma. “É contagiante. O estádio todo ‘vestido’ de verde, 40 mil pessoas a saltar e a cantar, a aplaudir nos bons e nos maus momentos. É uma enorme emoção. Pode haver adeptos igualmente fervorosos, mas dificilmente haverá tantos adeptos fervorosos como na China.”