Malangatana, um ano depois

O mestre Malangatana largou o pincel há um ano. O seu sonho está silencioso, mas não morto, porque há quem continue a lutar por ele

 

 

Texto Marta Curto

Fotos Ricardo Franco, em Moçambique

 

Em Matalana, ouve-se o cantar dos pássaros. As vozes, gargalhadas ou passos que podiam abafar o piar não estão lá.

Não é fácil chegar ao Centro Cultural de Matalana. A cerca de 30 quilómetros de Maputo, há que entrar por uma estrada de terra batida, e continuar sempre em frente, até encarar um desvio para a direita. Até lá, não há alcatrão, nem sinalética luminosa. Mas todos sabem onde é, basta perguntar. Caminhantes de beira de estrada, miúdos que vendem qualquer coisa numa banca de madeira partida, senhores de meia idade que descansam à sombra, estudantes que chegam da escola. A todos perguntamos. Para quem não sabe dizer onde é o Centro Cultural, reformula-se a pergunta. Onde está o Malangatana? Logo vêm as explicações.

Malangatana Valente Ngwenya nasceu no dia 6 de Junho de 1936 em Matalana, perto da então Lourenço Marques, hoje Maputo. Morreu no dia 5 de Janeiro, em Portugal. A caminhada foi longa e cheia de acasos da vida que acabaram por torná-lo no maior representante da cultura de Moçambique. Era um homem descrito como humilde, amigo, sempre pronto a ajudar e sonhador. Foi o sonho que construiu aquele espaço, o Centro Cultural de Matalana.

Numa entrevista dada à revista New Internationalist, em 1989, Malangatana contou que ali estudou até ao segundo ano na Escola da Missão Suíça na Matalana. Aprendeu várias técnicas criativas como olaria, cestaria e a carpintaria. A experiência foi tão marcante que, há 20 anos, o artista decidiu criar o Centro Cultural para levar a arte a Matalana, sobretudo aos mais jovens.

O Centro está implementado numa área com cerca de 12 hectares e foi desenhado para ter uma utilização polivalente, como actividades de capacitação da população, trabalhos com crianças e jovens de Matalana, ligação a instituições culturais e artistas moçambicanos, assim como a universos culturais de outros países e povos.

Chegaram ali a tocar, num auditório a céu aberto virado para um vale, Maria João Pires e Rão Kyao, fizeram-se exposições e receberam-se diversas visitas que ocuparam as páginas dos jornais, nomeadamente Sérgio Godinho e António Vitorino de Almeida. Ainda assim, o sonho ficou a meio, quando, com 74 anos, Malanganta perdeu a vida. Hoje a sua sepultura jaz entre duas árvores, virada para os marcos da construção da Fundação Malangatana, cuja obra devia ter começado em Agosto de 2010. E no Centro Cultural de Matalana, apenas se ouvem os pássaros.

Mal pára um carro, logo vem um dos quatro guardas, dois homens e duas mulheres, perguntar, com um sorriso, o que ali se quer. Ver o sítio. Pois, que sim, que mostra.

O senhor Armando é o homem de serviço naquele sábado de manhã.

Começa pela residência dos artistas, uma casa redonda, dando para um pátio interior, cheio de pequenos quartos. Já ali houve artistas a pernoitar enquanto trabalhavam nesta ou naquela actividade do centro. Naquele sábado, ninguém ali acordou. Ao sair, o senhor Armando fecha de novo a porta às chaves.

Viramos para a biblioteca, ou sala de leitura, passando por uma estrutura de um edifício em obras, onde, dizia o senhor Armando, haveria de servir para a realização de palestras e seminários. A obra devia ter continuado em Julho, diz o guarda, mas até agora, não vieram operários.

No espaço da sala de leitura, que uma placa nomeia como o Centro de Formação Profissional, inaugurado, em 1987, por Joaquim Chissano, ex-presidente de Moçambique, e Jorge Sampaio, ex-presidente de Portugal, centenas de livros amontoam-se, na espera de prateleiras. O senhor Armando explica que se aguarda um computador para a catalogação das obras. Esteve lá um senhor vindo de Maputo, mas foi-se embora em Novembro do ano passado, e ainda não deu mais sinais de vida. “O plano é ir buscar um professor que já esteja na reforma, para receber as pessoas e controlar os livros”, conta o guarda.

Na escola de música, faz-se silêncio. Três pianos, três tambores e um saxofone encostam-se a um canto esperando por mãos amigas. À sua frente, no auditório, só ecoa o piar dos pássaros. “Em Fevereiro, muitas gente veio para ver. Agora já não”, diz o senhor Armando.

Não é por má vontade que só se ouvem os pássaros em Matalana. Malangatana está vivo em todos os moçambicanos, e a sua obra e nome continuam a ser orgulho nacional. A falta de dinheiro explica o silêncio e a inactividade no Centro Cultural. Há planos, vários, muitos, mas num país com carências, a cultura é a última prioridade e, embora um dos sonhos do mestre – a criação de uma Fundação – já tenha sido cumprido no início do ano -, a verdade é que o seu arranque prático depende da boa vontade de outros.

 

Malangatana não morreu

“No ano passado, a Fundação Malangatana tentou dar forma ao que era o sonho do mestre, que era de ter uma Fundação. Demos os primeiros passos na preservação da sua vida e obra, e conseguimos um espaço para a sua obra aqui em Maputo”, dizia Mário Mutxini, filho do artista, representante da família e administrador da Fundação Malangatana.

Mutxini falava no lançamento da peça Encruzilhada de Culturas, uma taça da Vista Alegre em que o mestre começou a trabalhar, mas que não finalizou. O grupo Visabeira lançou a obra no dia 15 de Dezembro, com uma edição limitada de 700 peças, a um preço de 800 dólares. “Este é o primeiro de uma série de trabalhos previstos para levar adiante a obra de Malangatana com este grupo”, explicou Mutxini na inauguração, acrescentando que, no dia 5 de Janeiro, seriam depositadas flores no túmulo do seu pai e haveria um sarau cultural. No dia seguinte, estava programada a inauguração de uma exposição de arte na Fortaleza de Maputo.

 

A Italiana de Malangatana

Malangatana andava sempre no seu antigo Mercedes preto pela cidade de Maputo. Há anos que era assim. Mas o que deixou, ainda em vida, foi um Fiat 500, pintado pela sua mão.

Em Abril de 2011, quando faziam quatro meses da sua morte, um portão abriu e entrou a Italiana, como o mestre lhe chamava. Houve quem chorasse. E não foram só os familiares do mestre Malangatana. As últimas pinceladas do artista foram na carroçaria de um Fiat 500, novinho em folha.

Tudo começara poucos meses antes, quando o grupo João Ferreira dos Santos ganhou a representação do grupo Fiat no país e decidiu abrir um novo stand dedicado à marca. Para o lançamento, queria-se algo diferente. O mestre Malangatana era esse toque final. Perguntou-se-lhe se gostaria de encarar o projecto. Que sim, sem hesitações. Malangatana chegou e sentou-se. E assim ficou, sentado. Duas semanas passaram e o artista continuava a olhar para o carro, tocava-lhe, estudava as tintas especiais que nunca tinha usado. Até ao dia em que disse “hoje vou beijar a italiana!”. E começou a pintar. Durante 12 dias, 13 horas por dia, inclinava-se sobre o Fiat 500. Por fim, terminou “A Italiana”.

Na inauguração, Mutxini adiantou que “quando a minha mãe viu o carro, chorou”. Não foi a única. Aquela era a primeira vez que se voltava a ver Malangatana, e, a acompanhar o acto, apareceu um filme com imagens do artista a trabalhar na sua última obra. As últimas imagens dele com saúde, fazendo o que mais gostava.

A Italiana, nome carinhoso atribuído pelo próprio artista, foi a leilão até Julho deste ano. O dinheiro reverteria para a Fundação Malangatana, mas as licitações não chegaram ao valor de reserva, e assim espera-se agora que o Governo moçambicano atribua anualmente um subsídio à Fundação Malangatana em troca do carro exclusivo.

 

Uma inspiração para todos

Manuel Jesus ainda não chegou aos 30 anos e é discípulo de Naguib, aquele que era o segundo maior artista moçambicano e que passou agora, depois da morte de Malanganata, para a dianteira da lista. “Em todos os artistas moçambicanos se vê a influência de Malangatana”, diz Jesus, também ele um artista plástico. Manuel Jesus é um dos braços direitos de Naguib nos murais de azulejo que o artista distribui pela cidade de Maputo.

Com mais 20 anos que Malangatana, Naguib nasceu em Tete e teve uma vida artística mais facilitada do que a do mestre. Frequentou a Escola de Belas Artes de Lisboa, estagiou Serigrafia na Universidade do Cabo (África do Sul), partiu para a Alemanha onde fez Conservação e Restauro no Kunts Museum de Colónia e frequentou a Universidade de Nothumbria, Reino Unido. Hoje é o mais conceituado dos artistas moçambicanos, mas, ao contrário de Malangatana, é apenas a sua obra que lhe merece o prestígio que já conquistou.

“Não tanto em termos técnicos, mas a influência de Malangatana existe mais como inspiração para todos os artistas moçambicanos. Ninguém como ele teve tanta persistência, tanta teimosia em fazer valer a cultura moçambicana, em lutar pela sua arte. Todos nós o vemos como um exemplo”, diz Jesus.

No túmulo de Malangatana, estão escritas estas palavras em Changana, dialecto de Maputo: Hambanine Tatana Wisa Ha Hombe A Ku Rhuelene. Há dois significados para Tatana. Pode querer dizer pai ou senhor. Neste caso, é pai de todos os moçambicanos, pai de todos os artistas. Traduzido: Adeus Pai. Descansa em Paz.