A felicidade é uma rua

E uma rua bem famosa. No centro de Macau, já chegada ao Porto Interior, está uma linha recta pintada de portas e janelas vermelhas. É um lugar cheio de história. Mas e hoje, o que é a Rua da Felicidade? Fomos descobrir

 

 

Texto Hélder Beja

Fotos António Mil-Homens

 

Se a felicidade fosse mesmo uma rua, estaria sempre cheia, porque toda a gente quer encontrar a felicidade. Em Macau, a felicidade dá nome a uma das ruas mais conhecidas do território. Wenceslau de Moraes escreveu sobre ela, Camilo Pessanha frequentou-a, Henrique de Senna Fernandes voltou a imortalizá-la nos livros. Por cá, a felicidade transformou-se num lugar.

A Rua da Felicidade que encontramos hoje é bem diferente daquela que por longos anos homens frequentavam em busca de companhias femininas. Fok Long San Kai, em cantonês a Rua Nova da Felicidade Abundante, já não é o centro daquilo a que chegou a chamar-se “bairro do amor”. Não deixa por isso de continuar a ser inspiradora.

Seguimos os números e começamos na ponta onde a Rua da Felicidade casa com a Rua da Alfândega. À esquerda e à direita, fazendo jus à boa tradição da comida por estas bandas, as primeiras fracções são ocupadas por restaurantes que oferecem gastronomia local – sopas de fitas, dumplings, noodles. Mas a nossa primeira paragem há-de ser um tudo nada mais abaixo.

Há mais de dez anos que a senhora Wong acerta as horas da Rua da Felicidade. A velha loja de relógios que gere é um compêndio de ponteiros pendurados nas paredes. “O negócio foi-me passado por uma amiga e costumava ser só uma casa de chaves. Como tinha muito espaço livre decidi começar a vender relógios”, conta. O negócio das chaves ainda se mantém mas são os relógios, especialmente os grandes relógios de sala, que fazem a clientela da loja.

Metade turistas, metade locais. É assim que a senhora Wong contabiliza os seus clientes. Os preços são convidativos. O relógio mais caro da casa não custa muito mais de mil patacas. Mesmo assim, o negócio já teve dias melhores. “Antes a rua tinha outras lojas de comércio tradicional, isso agora está a mudar muito. Abriram estas lojas de bolos que há por todo o lado.” A senhora Wong está a referir-se aos bolos de amêndoa que ocupam algumas das portas da Rua da Felicidade.

Apesar de a loja contar apenas uma dezena de anos, esta mulher já frequenta a Rua da Felicidade há pelo menos o dobro do tempo. “Não consigo imaginar o meu dia-a-dia noutro lado”, admite. Se lhe pedimos que nos recomende um restaurante nesta rua, diz que mais abaixo há umas barbatanas de tubarão saborosas, para acrescentar logo de seguida que os preços da maior parte dos restaurantes não são para a carteira de gente simples.

 

As outras felicidades

Descer a Rua da Felicidade com os olhos bem abertos é perceber uma série de ramificações que dali partem. Temos o Beco das Galinhas, o Pátio do Ídolo, o Beco da Felicidade, o Pátio da Felicidade. Todos estreitos e discretos, alguns com pequenos pagodes logo ao lado de cabides cheios de roupa e de motas estacionadas.

A fiada de casas vai mudando de cor, com o amarelo a dar lugar ao branco e, à nossa esquerda, entramos numa loja de antiguidades que, ao contrário do que seria de esperar, abriu há apenas seis meses. É uma das novas lojas da rua – há várias fracções para aluguer ou venda, com números de telefone colados nas portas.

Lá dentro, o senhor Lau está sentado ao lado de uma série de estatuetas da dinastia Qing e de muitas peças de jade. O irmão era coleccionador de antiguidades antes de emigrar para o Canadá. Há meio ano, e como tinha este espaço da Rua da Felicidade para usar, Lau decidiu abrir uma loja.

“Não há muitos clientes, mas às vezes lá vendemos algumas peças. Só conseguimos que a loja exista porque não tempos de pagar renda”, conta. A peça mais cara da loja é uma imagem centenária da deusa Kun Iam, que custa 300 mil patacas. Daqui até às cerca de 500 patacas que pode valer uma pequena lembrança de jade, os preços são para quase todas as bolsas.

 

Felizes à mesa

Os carros e as motas vão passando pela rua que muitos peões tratam como pedonal, caminhando pelo meio da estrada. Os letreiros em português, mais presentes no topo das lojas fechadas que das abertas, são tão curiosos como os que anunciam a Loja de Canjas Leong Heng Kei ou Loja de Comidas R. Cherikoff.

A próxima paragem é um pequeno restaurante à direita de quem desce a rua, já depois do cruzamento com a Travessa do Aterro Novo, que liga a Rua da Felicidade à Almeida Ribeiro. O restaurante tem nome apenas em caracteres chineses e que é famoso pela barbatana de tubarão. Sing, um dos empregados, senta-se à mesa com a gente. A casa é simples e Sing conta que o prato mais barato da ementa ronda as 30 patacas. O mais caro não vai além das 90.

Por dia, entre as 11h e as 22h, Sing afiança que muitas vezes passam mais de mil pessoas pelas pequenas mesas do restaurante. São principalmente turistas que chegam de Hong Kong, Taiwan e Japão, e que são servidos por uma equipa de seis funcionários.

A comida ainda continua a ter importância na Rua da Felicidade. Há casas de peixe e marisco com os seus aquários, há as lojas de bolos de amêndoa, há alguma comida com sabor ocidental e há, a fechar esta recta de pequenas casas rasteiras, o famoso Fat Siu Lau, com mais de 100 anos de história e um menu que continua a privilegiar os sabores da cozinha portuguesa.

Mesmo diante do Fat Siu Lau está outro dos lugares simbólicos da actual Rua da Felicidade. A hospedaria San Van também já faz parte da história de Macau e do cinema – parte de Isabella, filme de Pang Ho-Cheung, foi filmado aqui. Mesmo assim, os preços por noite na ainda San Van são bastante acessíveis, com uma estadia a custar entre 140 e 230 patacas.

Voltamos a olhar a rua onde também há uma lavandaria, uma loja de vinhos, casas com peixe seco e carne seca, um Home Deco Artwork Cafe que entretanto já fechou. Algumas portas têm as caixas de correio cheias, sinal de que não recebem visitas há muito tempo. Outras estão pintadas de um vermelho novo e incandescente, à espera de novos proprietários. Entre os que passam, muitos tiram fotografias com grandes sorrisos. Tentam fixar através da câmara o momento em que também foram felizes numa rua chamada Felicidade.