“É-se feliz momentaneamente”

Afonso Costa
Manuel Afonso Costa formou-se inicialmente em Engenharia, profissão que nunca exerceu. Apaixonado pelas Humanidades enveredou antes pelo estudo da História e interessou-se especialmente pelo tema da felicidade. “A meio do curso descobri um livro sobre a ideia da felicidade em França, na literatura e no pensamento. Percebi que valia a pena ler sobre aquele tema durante uma vida inteira”, conta. Da pesquisa surgiu uma tese de doutoramento de mil páginas sobre “a ideia de felicidade em Portugal no séc. XVIII” (concluída em 2007 na Universidade Nova de Lisboa). Em entrevista, o poeta e professor da Universidade de Macau analisa a felicidade sob os seus múltiplos prismas

 

Afonso Costa

 

Texto Paulo Barbosa

Fotos Carmo Correia

 

Começamos com uma espécie de pergunta eterna: É possível ser-se feliz?

Claro. Mas há pessoas que acreditam na felicidade como algo estável e eu não concordo com isso. Um tipo diz: “Eu gostaria de ser bem sucedido”. E pode ser, se fizer tudo o que tem que fazer bem feito. A dada altura consegue ser bem sucedido, ter dinheiro, ter uma boa vida profissional. Pode ter isso durante muitos anos. O mesmo já não acontece com a felicidade, que, do meu ponto de vista, é precária. É-se feliz momentaneamente. Nunca chega a ser um estatuto. É sempre qualquer coisa que está a ganhar-se. Há altos e há baixos. Os gregos diziam uma coisa que é muito sensata. Só se pode fazer o juízo acerca da nossa felicidade quando atingimos uma determinada idade e já somos muito maduros. Aí podemos começar a olhar para a nossa vida como um todo. Dizer aos 20 ou 30 anos que se atingiu a felicidade não é possível. Com essa idade não se atinge nada, está-se no caminho de praticamente tudo. Só muito mais para diante é que a pessoa faz o balanço da sua própria vida.

 

No âmbito do seu doutoramento estudou livros de auto-ajuda, que elencam conselhos e fórmulas para se atingir a felicidade. Acha que são úteis?

Têm pouca utilidade. Haverá fórmulas e modos de uma pessoa se bater por um ideal como o de felicidade? Isso pode aparecer num guia? Acho que não, de modo nenhum. Dou um exemplo: imagine-se que se dá um livro a um toxicodependente acerca dos malefícios da droga. É absolutamente certo que nenhum toxicodependente abandona a droga a partir de uma auto-ajuda desse estilo. Para a questão da felicidade é necessária uma reconversão inteira, íntima. A felicidade não é uma coisa meramente exterior. Por causa das coisas exteriores estou feliz agora e não daqui a bocado. Hoje a vida corre-me bem e amanhã corre-me mal. Por aí a pessoa não vai a lado nenhum. É necessária uma reconversão íntima, uma atitude diferente perante a vida. Essa reconversão não se compadece com guias terapêuticos. É necessário que a pessoa mude estruturalmente e se torne outra pessoa. Outro exemplo: imaginemos um tipo que é estruturalmente hedonista, só se sente bem rodeado de prazer e de confortos e quando não os tem fica inseguro, insatisfeito, parte à procura. Mesmo que o livro diga a esta pessoa que fazer isso é contraproducente, ele não vai deixar de fazer. Só no dia em que for capaz de se reconverter e tornar-se num tipo mais ascético e frugal é que vai entrar no caminho da luta estrutural contra o seu problema.

 

Mas as pessoas podem fazer isso? Podem alterar a sua personalidade?

É complicado. O Albert Camus diz que há uma tirania do temperamento e do carácter. Ou seja, nascemos, de algum modo, como somos e lutar contra isso é quase impossível. A pessoa tem que encontrar o tal caminho que procura tendo em conta o seu modo de ser. Posso ser expansivo e, no entanto, ser capaz de controlar as minhas pulsões.

 

Estudou também a questão etimológica do termo felicidade. Cada idioma tem uma palavra para designar a felicidade. Isso reflecte-se na maneira como os povos e as culturas encaram o assunto?

Penso que não. Estudei a ideia de felicidade também na perspectiva da etimologia das palavras que designam a felicidade, tanto para os gregos como para os latinos e para as línguas modernas. Mas fi-lo mais para descobrir os invariantes estruturais. Os ingleses têm a palavra happiness, que vem do verbo to happen (acontecer). A felicidade aí aparece designada como qualquer coisa que nos acontece. Tem ligação a uma concepção de felicidade nos gregos que era a eutopia, ou seja, uma boa fortuna que nos aconteceu. A happiness traduz uma concepção de felicidade que é um bocado oscilante, precária e fortuita. Em francês, bonheur significa bom augúrio, tem também um carácter ocasional. Mas a palavra felicity, – ou felicité, ou felicidade – tem o radical felix, que não tem nada a ver com happen ou com augúrio. Felix é algo de constitutivo, uma expansão íntima do ser para uma espécie de locupletação de bem-estar, harmonia e equilíbrio. Já é qualquer coisa que a pessoa pode alimentar e não tem esse carácter fortuito. Diria que em todas as línguas existem declinadas as várias concepções possíveis de felicidade.

 

Não lhe parece, portanto, que se possa defender que a felicidade tem uma raiz étnica?

Para mim, não existe uma felicidade em termos étnicos. Não há nenhuma raça que tenha vocação para uma felicidade particular. Por exemplo, tenho andado a ler poetas chineses e verifico que eles promovem um sentido do bem-estar e da harmonia existencial que é em tudo semelhante aos poetas gregos e latinos clássicos. Há o equivalente do carpe diem (desfruta o dia) e da vida retirada e da aurea mediocritas (meio termo) nos poetas chineses. A alma humana é uma invariante, tanto faz que seja nascida no Ocidente, no Oriente, no Leste ou no Sul. Há elementos que são estruturais e estruturantes. Mas há duas formas fundamentais de ligação à existência e de concepção de felicidade. Isso aparece em várias obras. O autor francês Jean Cazeneuve escreveu um livro que foi muito importante para mim, que se chama Felicidade e Civilização, onde estabelece uma dicotomia de povos com orientações existenciais antagónicas. Tal como o Nietzsche fez na Origem do Espírito Trágico, ele elenca o apolíneo e o dionisíaco.

 

Há povos expansivos e outros com tendência para a melancolia?

Esses estudos incidiram sobre povos da América Central. Verificaram que há povos que têm um comportamento estruturalmente apolíneo. São muito moderados, equilibrados e serenos. Não são exaltados, não toleram no seu grupo pessoas que procurem protagonismo. Cultivam uma mediania, quase diríamos, uma mediocridade. Em contrapartida, quase no mesmo espaço físico havia uma tribo em que os indivíduos eram exaltados, efervescentes e só sentiam que existiam verdadeiramente através do excesso. Já nos gregos aparece essa dicotomia entre a moderação e o excesso. Os outros [apolíneos] aceitaram quando foram dominados pelos brancos. Desde que não os chateassem, eles ficaram lá a fazer a vida deles e não sofreram muito. Os dionisíacos tiveram quase um paroxismo auto-destrutivo, porque não conseguiam assumir aquela estrutura de dominação.

 

Parece-lhe que os chineses são um povo mais contido, com as características apolíneas que referiu?

Isso eu penso. De qualquer maneira, os chineses não têm nada que não exista no Ocidente e vice-versa. Enquanto que nalguns países europeus predomina o sentido da moderação e da tolerância, outros povos da Europa são mais exacerbados e têm comportamentos mais irracionais. A tradição da China vai no sentido dessa moderação. Parece-me que não é um povo muito exaltado em termos emocionais.

 

Estudou também as concepções de felicidade que emanam das doutrinas religiosas…

Não sou crente e há alguns amigos acharam até estranho que, no âmbito da minha reflexão, tivesse uma incidência tão grande no fenómeno religioso. Fi-lo porque a civilização ocidental é marcada pela Bíblia. É um texto incontornável e mesmo as pessoas que não são religiosas foram educadas segundo os valores éticos e morais que são estruturantes do pensamento religioso. Coloquei sempre esta questão: Será possível que o mal e a felicidade possam ser compatíveis? Como é possível haver felicidade num mundo dominado pelo mal? O século XX foi um século de progresso, de democracia e de liberdade, mas conheceu alguns dos momentos mais malignos, no sentido de um mal radical, organizado, científico e brutal.

 

Há um escape religioso para iludir essa prevalência do mal?

Sabemos que a religião tem tendência a desvalorizar a felicidade terrena e a valorizar uma felicidade projectada num tempo futuro. Nesse sentido, a tensão na Europa, em termos intelectuais, foi permanente. De um lado aqueles que acham que não faz sentido levar uma vida de sacrifício, às vezes até infeliz, para poder merecer uma vida feliz numa outra dimensão, do outro aqueles que acham que é isso que faz sentido, porque esta vida é ilusória. O Ricardo Reis [heterónimo de Fernando Pessoa] diz “circunda-te de rosas, ama, bebe e cala; o mais é nada”. Podemos achar que esta vida é uma ilusão e, se for assim, há uma saída religiosa para este tipo de interpretação, mas também pode haver uma saída hedonista, que é “esta vida é assim e não há outra, portanto o que tenho que fazer é viver o melhor e o mais intensamente possível o dia que passa”.

 

E quanto às ideologias políticas?

Em termos de ideologias, só aparece uma separação nítida entre a felicidade individual e colectiva quando o individualismo se tornou o centro do palco, o que só aconteceu na modernidade. Antes disso podemos aplicar o paradigma corporativo e orgânico. As pessoas estavam sempre inseridas num grupo que as legitima. Todas as correntes do Direito moderno, a partir do século XVII, enfatizam que há um bem individual e um bem comum, uma felicidade privada e uma felicidade pública. Num outro quadro aparecem as ideologias, como o marxismo e o liberalismo, que, no fim de contas, projectam a felicidade para um além. Não defendem tanto uma felicidade aqui e agora, mas num futuro. O futuro que, para a Igreja, é após o juízo final; para o marxismo, por exemplo, era a sociedade sem classes. Duas gerações ou três foram sacrificadas a uma felicidade e no futuro e não a tiveram no tempo em que viveram. São ideologias que hipotecam a felicidade das pessoas em troca de uma promessa de felicidade.