Medir o pulso à felicidade

Felicidade em Macau
Os académicos têm medido o nível de felicidade das gentes de Macau. Há quem diga que a população está mais satisfeita com a vida, há quem diga que não. Mas, afinal, o que é isto de ser feliz?

 

Felicidade em Macau

 

Texto Sofia Jesus

Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

A felicidade constrói-se. Ou acontece? Pega-se. Ou procura-se? É um momento. Ou alguém? É um obrigada. Ou um tanto-faz? Diz-se. Ou vê-se? Dá-se. Ou recebe-se? É minha. Ou nossa?

Há séculos que o homem anda às voltas com o conceito. Para uns, palavra-chave. Para outros, palavra-inútil. Há filósofos que a negam. Há poetas que por ela suspiram nas entrelinhas, como Fernando Pessoa, nas vestes de Ricardo Reis: “Quer pouco: terás tudo. Quer nada: serás livre.”

Mas há também quem a esventre em pontuações, a arrume em escalas e lhe diagnostique causas. Em Macau, a Associação de Ciências Económicas lançou recentemente mais uma edição do chamado Índice de Felicidade, que teve por base um inquérito a 958 pessoas. Resultado: um 6,92 que nos põe este ano, pela primeira vez, atrás de Hong Kong.

Dizem os peritos que a quebra de 1,1 pontos – em relação ao primeiro estudo divulgado em Janeiro do ano passado – está ligada ao aumento do custo de vida. Os investigadores concluem também que foi entre as famílias com filhos que o nível de felicidade mais desceu e salientam, entre os factores negativos, alguma insatisfação face à saúde pessoal, às relações familiares e ao modo de governação.

Mas os estudos não ficam por aqui. Numa iniciativa conjunta entre a revista Macau Business e a Universidade de São José, a última edição do Estudo Sobre a Qualidade de Vida no território azula o cenário: no último trimestre do ano, o índice de satisfação com Macau subiu para os 61,2 por cento e o mesmo aconteceu com o índice de bem-estar pessoal (alcançou os 65,7 por cento).

Em Outubro, foi divulgado um outro inquérito, neste caso da Associação de Pesquisa e Sondagens, realizado junto de mais de 1500 residentes e encomendado pelo gabinete da deputada Melinda Chan. O estudo fixou o índice de felicidade da população em 71,6 pontos, valor semelhante ao de 2010. Aqui, a política de habitação foi a que mais reparos mereceu entre os participantes.

Números à parte, a revista Macau quis ouvir da boca dos que por cá vivem o que é isto de ser feliz. E descobriu que Felicidade é também química aliada à gratidão: o O2 que se respira, o H2O que mata a sede.

 

“Ser feliz é viver em paz”

Sam Sou, 53 anos

O sorriso com que cumprimenta quem se aproxima da banca, no mercado de São Domingos, é o mesmo com que pesa as couves e o mesmo com que fala de felicidade: aberto, espontâneo, despretensioso. Mais tímida frente ao gravador, Sam Sou – como é conhecida, porque o marido é o terceiro filho dos pais – descreve-se humildemente como uma “uma mulher pequena”. Tradução: que pede pouco deste mundo. “Uma vida em paz faz-me feliz.”

A paz de Sam Sou é feita de “um corpo saudável” – em tempos não o teve – e de “um rendimento estável, não necessariamente elevado”. A visão, acredita, é comum a muitas das pessoas que lhe são próximas. Mas mostra-se apreensiva face ao futuro dos jovens de Macau.

“Os meus filhos já são crescidos e independentes, não tenho de me preocupar. Mas para as gerações mais novas, com filhos, e que têm de pagar propinas, alimentação e renda da casa, a subida em flecha dos preços vai ser um problema”, lamenta.

O mercado põe-lhe o pão na mesa há 13 anos e não tem pruridos em dizer que sorri muito porque está a “conseguir vender”. Seis dias por semana, das oito e meia da manhã às sete da noite, pausas para almoço é um luxo que não lhe assiste. A sorte é ter o marido como companheiro de trabalho e poderem revezar-se na banca. É que há momentos em que o cansaço pesa e apaga o sorriso outrora contagioso – “às vezes”, só às vezes.

 

Felicidade é “ter um rendimento estável”

Wong Chi Kan, 77 anos

Wong Chi Kan mistura-se com a história da cidade. Está exactamente no mesmo sítio há 60 anos. Atrás da banca da Avenida Almeida Ribeiro, onde vende cigarros, lenços e pacotinhos de chá de limão, já houve um cinema. Hoje há uma conhecida loja de roupa.

Mudou a paisagem, mudaram os clientes. Os do Interior da China “perguntam preços mas não compram nada”. Valem-lhe os de Hong Kong, que abrem os cordões à bolsa para tabaco. E, para Wong, dinheiro é coisa que faz falta quando se pensa em felicidade.

“Dinheiro é igual a rendimento, que é igual a vida estável, que é igual a não termos de nos preocupar com muito.” Se os filhos tiverem um emprego estável – e têm -, assunto arrumado: é feliz.

A monotonia do emprego que tem desde os 17 anos – porque a invasão da China pelos japoneses tornou a vida difícil e a falta de estudos fechou a porta a uma alternativa – não parece incomodá-lo. E acredita que as gentes de Macau – as com mais anos de casa, “não os novos residentes” – são fáceis de contentar, sobretudo com a ajuda do Governo, que “todos os anos dá cheques”.

De sorriso fácil, nos tempos em que havia cinema na San Ma Lou, trabalhava das sete da manhã às dez da noite, todos os dias do ano. Hoje premeia-se com uma folga semanal e vai para casa às seis da tarde, que o negócio mais não justifica.

Mas se felicidade é ter “família grande” – é pai de três – com um “rendimento estável” ao fim do mês – e um local feliz é qualquer um que lhe dê sustento -, felicidade é também ir com os parentes a um yam tcha. Ou acordar à meia-noite para ver um jogo de futebol na televisão. Ou levantar-se todos os dias às cinco da manhã para correr. Assim mesmo, com quase 39 anos em cada perna.

 

“A felicidade constrói-se”

Ardyth Klander, 36 anos

O ponto de viragem aconteceu precisamente com a pergunta “És feliz lá em Macau?”. Aconteceu há dois anos, durante o primeiro Natal que Ardyth Klander passou nos Estados Unidos, desde que se mudou para a RAEM, no Verão de 2008. “És feliz?” Não foi capaz de dizer que sim. E começou a pensar na vida.

Ardyth, 36 anos, veio para Macau abrir a delegação de uma empresa na área da informática. Durante os primeiros tempos, o mundo girou à volta do escritório. Era incapaz de “deixar o trabalho no trabalho”. Mas a ideia de poder estar a “desperdiçar o tempo” fê-la repensar prioridades. E quando a empresa lhe propôs nova transferência para a Austrália optou por ficar em Macau.

Hoje goza de uma licença sem vencimento e dedica-se ao estudo do chinês. Acredita que a cidade reserva oportunidades raras de realização a quem quer que se mostre interessado em mergulhar na cultura e na comunidade. Alguns expatriados, reconhece, dirão que os locais “não são muito simpáticos”, mas Ardyth desfaz o engano: “Quatro ou cinco palavras de cantonês e um sorriso mudam por completo a forma como as pessoas lidam connosco.”

A felicidade? “Constrói-se” e “é contagiosa”. Já o sentiu na pele. “Agora estou numa altura da vida em que não tenho tempo para pessoas demasiado negativas.” Afinal, lembra, tal como aconteceu com ela, a vida está nas mãos de cada um: “Se estás infeliz, faz alguma coisa por mudar.”

Quando era mais nova, Ardyth acreditava que a felicidade era sinónimo de perfeição. Hoje acredita em “momentos felizes”, não no “felizes para sempre dos contos de fada”. Acredita que, se for feliz, faz a pessoa que ama feliz. Acredita que, entre os altos e baixos da vida, é possível perceber se, em termos gerais, se é feliz ou infeliz, num dado período de tempo. Feliz, quando pesam mais “as gargalhadas, as pequenas conquistas e os momentos de paz”. Infeliz, quando “as lutas, as frustrações ou a raiva” saem a ganhar.

A vida que Ardyth quer é uma em que possa “marcar a diferença nas pequenas coisas” a cada dia, de preferência com alguns risos pelo meio e quebras de rotina. “Quando chegar a hora de partir, prefiro arrepender-me dos erros que cometi, do que das coisas que não tive coragem de fazer.”

 

“Olhar para as pétalas, não para os espinhos”

Catherine Almazan, 37 anos

Catherine Almazan – Katy, como a chamam – é um dos rostos por detrás dos sabores que se servem na cantina da Associação dos Macaenses, na Rua do Campo. Filipina, com bacharelato na área comercial e especialização em ciências informáticas, descobriu em Macau o talento culinário e as condições de vida que não encontrou na sua terra.

Katy vive e trabalha em Macau há sete anos e meio. E há sete anos e meio que não vê o seu país. Às vezes dá por ela a pensar: “Onde estou?” Mas sente-se bem no emprego, porque, diz, é “tratada como família”. A pedra no sapato é a filha que ela e o marido deixaram nas Filipinas.

“É duro.” Os olhos negros enchem-se de água. A voz falha. “Quanto ela tinha três anos, explicámos-lhe a situação. Se voltarmos, podemos sobreviver, mas não te podemos dar tudo.” O tempo foi passando e a criança habituou-se. Mas há dias que doem mais que outros, como quando há reuniões de pais na escola. “Aí sinto-me tão culpada…”

Os quilómetros – e as saudades – fintam-se com as novas tecnologias, como o Face Time, “quatro ou cinco vezes por dia.” Encarregada de educação à distância, sabe o que a filha faz a todo o momento. E todos os anos a criança vem a Macau passar os dois meses de férias da escola. Viver cá é que não – “diz que prefere as Filipinas”.

Felicidade, para Katy, passa por “estar em Macau e poder garantir os estudos” da filha. “Mas se há felicidade no meu coração? Não exactamente.” Ri-se, com tristeza, do paradoxo. “Porque sinto falta dela e não há um sentimento de pertença entre nós.” Mas esforça-se por não estragar o dia a pensar nisso. Felicidade é “contentamento” e pequenas coisas bastam: o prazer de andar de roda dos tachos, o elogio a um prato.

A fé ajuda. Todas as manhãs agradece a Deus por mais um dia e liga para as Filipinas a saber se do outro lado o amanhecer aconteceu, também, em segurança. “Pensamento positivo” é o lema a seguir. Há momentos bons e maus, mas é preciso “olhar para as pétalas da rosa, não para os espinhos”. “De contrário, o que acontece? Passamos a vida à procura de algo que não chega.”

 

“Felicidade é ter vivido o 25 de Abril”

Frederico Rato, 64 anos

Para Frederico Rato, felicidade é, antes de tudo, “ter nascido e estar vivo, é respirar e beber água, é ser livre e viver em liberdade”. Felicidade é “saber ler” e “ouvir música”, formas de dar ao espírito “um passaporte sem fronteiras”.

A felicidade, diz o advogado português, há 28 anos em Macau, pode estar nas pequenas coisas. “Era o Fernando Pessoa [Álvaro de Campos] que dizia, na Tabacaria, ‘Se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez eu fosse feliz.’” Mas a felicidade também pode ser fantasia.

“Felicidade é sonhar que se fuma sem pegar fogo à cama”, ri-se Frederico, que deixou de fumar há mais de 20 anos. O vício, pelos vistos, ainda o visita durante o sono. “E é tão bom fumar sem absorver nicotina e alcatrão…”

No exercício da profissão, por vezes, passa-lhe pelas mãos a felicidade de alguém. Mas mais que o acesso ao Direito e à justiça, felicidade “é amar”. E vêm-lhe à memória, uma vez mais, as palavras dos poetas: o “amar perdidamente” “mais este e aquele, o outro e toda a gente”, da Florbela Espanca, ou o “fogo que arde sem se ver”, do Camões.

Frederico lembra, no entanto que além da chamada felicidade “individual, egoísta”, há também a felicidade “social, colectiva”. A da “paz e solidariedade entre os homens e os povos”, a da “prevalência dos valores jurídicos e éticos e de justiça”. As duas não são incompatíveis, defende. E dá um exemplo: “Felicidade para mim foi ter vivido o 25 de Abril.” Felicidade, acrescenta, é “ter adversários com pinta”, em vez de “inimigos movidos a inveja”.

Olhando para a comunidade de Macau, o advogado de 64 anos não vê “meio milhão de pessoas infelizes”. Mas entende que a coesão e a solidariedade social no território – duas vertentes da “felicidade colectiva” – “deveriam de algum modo ser estimuladas”. Num barómetro inventado, Frederico Rato diria que o índice de felicidade da comunidade deve andar entre os 60 e 70 por cento, numa escala de zero a 100.

E o dinheiro? “Pode ser um instrumento para evitar algumas infelicidades”, mas “não é um factor sine qua non para que as pessoas se sintam felizes”. “Se pensarmos que a felicidade é também beber com as pessoas que se ama um bom vinho, de preferência com um queijo da serra, pata negra e um bom pão de rolão, bem, tudo isto custa algum dinheiro. E proporciona alguma felicidade. Mas se calhar também é um bom momento de felicidade fazer isto com as pessoas que se ama, mas com um vinho regular, um queijo industrial, um presunto de embalagem e um pão da padaria de Coloane.”

 

Felicidade é estar com a família

Kazuma Noguchi, 15 anos

Kazuma Noguchi não se lembra da vida antes de Macau. Nasceu nos Estados Unidos, mas veio para o território tinha apenas três meses. Hoje com 15 anos, vive entre viagens para visitar a família “espalhada pelo mundo” – a do lado da mãe, nos EUA, a do lado do pai, no Japão.

Kazuma começa por dizer que não sabe bem o que é a felicidade mas, a pouco e pouco, descai-se: “É um sentimento que me invade quando estou ao pé das pessoas que amo: da minha família e dos meus amigos”.

Filho único, admite que houve um tempo em que se sentia só e o que mais desejava era um irmão. “Mas os meus pais têm estado sempre lá. Adoro mesmo a minha família, até o meu cão me faz feliz!” E quando elege “casa” como o sítio onde se sente bem, quando conta como larga o que quer que esteja a fazer quando os avós telefonam, ou quando garante que abdicaria de tudo para partir com os pais se eles se mudassem, percebe-se que, para ele, o “f” de felicidade é o “f” de família.

Mas, para Kazuma, felicidade é também fazer o que se gosta. Coisas simples, como “jogar basquete” ou “comer” quando se tem fome. O dinheiro dá felicidade a prazo: compra-se “um carro muito caro”, “um computador super-rápido” ou “um jogo novo”, mas a sensação de felicidade esvai-se com o instante.

“Acredito que a felicidade é um momento, mas não tem de durar pouco tempo.” E encolhe os ombros, de sorriso aberto: “[A felicidade] é algo que sempre esteve ao meu alcance.” Mesmo nos piores momentos.

O tsunami do ano passado, no nordeste do Japão, “foi horrível”, mas não afectou directamente a família. E, no meio da calamidade, a felicidade veio sob a forma de telefonemas e palavras amigas em catadupa. “Fez-me feliz ver que as pessoas se preocupam.” Houve momentos em que ele e o pai temeram o pior por quem lá estava, sem dar notícias, mas a esperança deu-lhes força.

Depois das lágrimas? É possível recuperar a felicidade mesmo depois de uma tragédia como a de 11 de Março de 2011. “O segredo está em encontrar algo a que nos agarrarmos.” Como os amigos. Como a família.