Guerreiros do passado ao vento

Soldados de Terracota
Os guerreiros de terracota de Xian são quase tão visitados como a Muralha da China. Os itinerários de viagens pelo mundo chinês, para estrangeiro e filho do dragão ver, costumam incluir uma ida à cidade e a passagem rápida pelo complexo arqueológico onde, na obscuridade dos séculos, brilham os 7000 combatentes do exército de Qin Shihuang (259 a.C-210 a.C.), o primeiro imperador e unificador do império chinês

 

Soldados de Terracota

 

Texto António Graça de Abreu

 

Descobertos por acaso no ano de 1974 – quando alguns camponeses da aldeia de Lintong, a 35 quilómetros de Xian, escavavam um poço em busca de mais água para dar de beber à terra que lhes garante a subsistência -, os milhares de estátuas em terracota do exército imperial acabaram por constituir um dos grandes achados arqueológicos do século XX.

O milionário madeirense Joe Berardo comprou na China centenas de cópias dos guerreiros de terracota de Xian e instalou-os em dois espaços dos grandes jardins da sua Quinta dos Loridos, situada nos arredores do Bombarral, onde pontificam uns tantos motivos chineses e extremo-orientais.

O empresário fez muito bem. As cópias têm qualidade, foram pintadas com as cores que originalmente revestiam as armaduras, os uniformes, as roupas e os rostos dos guerreiros, e hoje, quem não pode ir à China, vai ver os guerreiros de Xian numa portuguesíssima aldeia no distrito de Leiria.

Tive a sorte de ir ao encontro dos verdadeiros, dos autênticos terracotas em 1983, quatro anos após a abertura do lugar à imensa comunidade de estudiosos, curiosos e turistas. Já me esqueci quantas vezes regressei ao complexo arqueológico de Xian, mas sei que as últimas foram em 2010 e 2011.

E hoje, embora reconheça o extraordinário valor arqueológico e cultural do exército do primeiro imperador, já não adianto o passo para o ver. E são peças únicas no mundo, 7000 figuras de soldados, sargentos, capitães, generais, todos diferentes, de singulares fisionomias, envergando as suas cotas de armas, de lanças e espadas na mão – algumas lanças eram de madeira e desapareceram com o passar dos séculos – prontos para o combate ou simplesmente para montar guarda ao palácio ou túmulo do monarca chinês.

 

Histórias de vitória e derrota

No ano 221 a.C., o príncipe das terras de Qin (actual província de Shanxi) conseguiu derrotar todos os outros reinos que retalhavam o grande território que se começava a identificar como China, unificada exactamente sob a sua pesada mão de ferro. Megalómano, impiedoso para com os seus adversários, visionário e senhor absoluto de um vasto território, o novo imperador assumiu como sua a denominação do reino de Qin  – leia-se “Chin”, e daqui, através da Índia, chega ao Ocidente o nome de “China” -, acreditou que a sua dinastia Qin se prolongaria por dez mil anos. Durou apenas três míseros lustros, até 206 a.C., quando foi derrubada pelos Han, que durante quatro séculos governariam com sucesso o Império do Meio.

Mas não se poderia falar de China Imperial e da China de sempre sem Qin Shihuang. Como entender o nascimento do pequeno Portugal sem D. Afonso Henriques? O soberano de Qin, muito estimado por exemplo pelo comunista Mao Zedong, lançou os fundamentos de um império centralizado governado por uma poderosa máquina administrativa.

Mandou destruir livros e enterrar vivos uns tantos letrados confucionistas e taoistas, seus inimigos políticos, estabeleceu normas para a regulamentação dos pesos e medidas, definiu o tamanho do rodado das carroças a cruzar as milhares de estradas do vastíssimo país. Ainda simplificou e unificou os caracteres chineses, uniu os troços da Grande Muralha já existentes criando uma extensa barreira de adobe e pedra que se julgava intransponível nas regiões norte e noroeste da China que sofriam permanentes investidas das tribos xiongnu, os hunos, os antecessores dos mongóis.

Qin Shihuang muralhou também muitas das maiores cidades do império e fez de Chang’an, a actual Xian, uma magnífica capital que, com alguns interregnos, seria sede do governo até ao final da dinastia Tang (619-907). Ainda em vida, Qin Shihuang mandou construir o seu túmulo, uma espécie de pirâmide acachapada em terra, com entradas e saídas secretas que se fechariam para sempre no dia em que o corpo do imperador fosse deixado no sarcófago de jade, ouro e prata rodeado por rios de mercúrio.

Contam as crónicas que Qin Shihuang faleceu em Chengshantou na província de Shandong, junto ao mar, para onde se dirigira com o objectivo de matar baleias, coisa que os adivinhos da corte consideravam ser útil para o soberano alcançar a imortalidade. Entretanto, tomava uns tantos cálices de mercúrio, que garantiriam também uma mais fácil vida eterna. O mercúrio rebentou em poucas semanas com as entranhas do primeiro imperador que nem tempo teve para se despedir da sua grande, mas breve vida.

Em segredo, transportaram-no desde Shandong até à tumba nos arredores de Xian mas, como a viagem era demorada e os calores do Verão apertavam, o corpo do imperador defunto apodreceu e exalava nuvens de fedores pestilentos. O séquito imperial mandou então rodear o cadáver putrefacto do monarca com peixe podre, o que atenuou e disfarçava um pouco o cheiro fétido que empestava os ares.

Qin Shihuang foi enterrado no enorme complexo tumular que preparara em vida e que é hoje uma colina ajardinada em Lintong. Passados 2200 anos, o túmulo continua por abrir, fechado aos olhos do mundo. Terá sido alvo de alguns saques ao longo dos séculos, mas creio que será preciso esperar ainda muitos e bons anos para ser aberto e transformado num extraordinário museu, como muito bem merece.

A tarefa, hoje com todas as modernas técnicas de escavação, não seria difícil mas a questão é o receio de que, ao mexer-se nos espaços onde se alojam os tesouros e o pó de Qin Shihuang, a fatalidade, a desgraça se abata sobre todas as pessoas implicadas nas escavações e sobre a própria China. Lembram-se da maldição que caiu sobre os arqueólogos que abriram o túmulo do faraó egípcio Tutancámon?

Entre Lintong e o conjunto dos guerreiros de terracota dista quilómetro e meio. Ninguém entende porque se encontram tão longe do túmulo de Qin Shihuang, dado que tudo indica tratar-se do exército, da grande guarda militar que terá sido mandada modelar para proteger o imperador numa outra vida. E não se conhecia, nem conhece nenhuma referência, nem documento histórico, que refira e ateste a sua construção.

Pensa-se que existirão mais vestígios e tesouros arqueológicos sobre a terra que se estende por esses quase 2000 metros entre o túmulo e os guerreiros, mas a cidadezinha de Lintong foi exactamente construída aqui e cresceu nestes espaços. Como escavar um solo hoje juncado por milhares de habitações?

 

Guerreiros no ecrã

Em Pequim, em 1978, falaram-me da cineasta francesa Marceline Loridan, mulher do holandês Joris Ivens (1898-1989), um dos grandes documentaristas da história do cinema, com alguma razão conotado com os regimes comunistas da primeira metade do século XX. Amigo de Sergei Eisenstein, de Ernst Hemingway e de Zhou Enlai, o velho Joris Ivens tinha concluído na China, em 1977, um documentário intitulado Como Yukong Moveu as Montanhas, uma apologia política aos êxitos da Revolução Cultural.

Sabedor da descoberta dos guerreiros de terracota, Joris Ivens queria, já em 1978, fazer um filme sobre o exército do imperador Qin Shihuang. Ora nesse ano Marceline Loridan estava em Pequim exactamente para tratar do assunto, para estudar junto das autoridades chinesas a possibilidade de concretizar as filmagens. E a mulher de Joris Ivens só via portas fechadas.

Com a ascensão ao poder de Deng Xiaoping, exactamente a partir de 1978, a Revolução Cultural começara a ser considerada uma tragédia, um enorme passo atrás na história recente da China, e o Yukong, o documentário do cineasta holandês era agora um panegírico errado, em termos políticos.

Para o novo filme, Joris Ivens já não podia pedir ajuda ao seu amigo Zhou Enlai, falecido em 1976. Suspendeu então o projecto mas em 1988, com 90 anos, na companhia de Marceline Loridan, voltou à China para realizar o documentário sobre os guerreiros de terracota. Foi autorizado a filmar em alguns lugares de Xian mas estava proibido de entrar e de registar imagens dentro do grande complexo onde descansa o exército do imperador Qin Shihuang.

Na altura, tal medida era extensiva a toda a gente: não se podia fotografar os guerreiros, muito menos filmá-los. Só em meados dos anos 1990 a proibição foi levantada. Joris Ivens fez então talvez o mais fabuloso documentário de toda a sua vasta filmografia. Como não podia filmar os terracotas mostrou-nos, com todos os detalhes, as negociações infrutíferas para a feitura do documentário que manteve com as autoridades chinesas em Pequim e Xian.

Depois, filmou mesmo umas centenas de guerreiros no alto de uma colina, réplicas em terracota quase iguais aos originais que se encontravam à venda e que alugou por um preço barato para entrarem no filme. Retratou também cópias dos guerreiros em vários tamanhos que aparecem em tudo quanto é loja em Xian, e filmou ainda rostos e rostos de chineses novos e velhos em imagens fortíssimas que dizem mais que dez mil palavras. Por fim, partiu para os desertos na província de Gansu, não longe de Xian e foi filmar o vento.

De vez em quando, um ou outro guerreiro de terracota surge, de surpresa, e desaparece nas dunas, batido pela areia e pelo vento. Ele próprio, um ancião trôpego de finos cabelos à solta, aparece rodeado de chineses que se vestiram como os guerreiros de terracota mas pintados de azul, com os rostos tapados por meias de vidro, ou caminhando, perdidos nas areias dos desertos da China. O filme chama-se A Tale of the Wind (Uma História do Vento, em português). Lá estão os guerreiros, o povo chinês, Joris Ivens, os desertos e o vento.

Alguns meses depois, concluída a montagem, a feitura do filme, Joris Ivens morria em Paris, em 1989. Tinha 91 anos.

Em Xian, as 7000 figuras dos combatentes em terracota, todas diferentes, todas em tamanho natural, com os seus cavalos e carroças, continuam hoje a sair da velhice da terra amarela e a contar estranhas histórias do passado. Dançam no silêncio dos dias, oscilam na poeira do tempo.