Major Samuel Shaw (1754-1794) – O primeiro norte-americano em Macau

O diarista torna-se, na companhia de Thomas Randall, o primeiro sobrecarga norte-americano a visitar a China, onde a rival Grã-Bretanha se encontra já fortemente estabelecida desde 1700, retirando os americanos também proveito do enclave português nas proximidades de Cantão.

 

 

Texto Rogério Miguel Puga

Investigador Auxiliar

Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies

(Universidade Nova de Lisboa/FCT)

 

Após servir os interesses dos Estados Unidos durante a Revolução da Independência, o major Samuel Shaw (1754-1794) vive durante vários anos no Sul da China, desenvolvendo actividades diplomáticas e comerciais no eixo Cantão-Macau, como descreve nos seus diários publicados em 1968 por Josiah Quincy (The Journals of Major Samuel Shaw, the First American Consul at Canton), tal como as possibilidades e as mais-valias do comércio entre o seu país e o Império do Meio, o modus vivendi e os interesses dos habitantes dessa última nação.

O diarista torna-se, na companhia de Thomas Randall, o primeiro sobrecarga norte-americano a visitar a China, onde a rival Grã-Bretanha se encontra já fortemente estabelecida desde 1700, retirando os americanos também proveito do enclave português nas proximidades de Cantão.

Em 22 de Fevereiro de 1784, Shaw parte para o Sul da China, a bordo do Empress of China, o primeiro barco norte-americano a viajar para o Império do Meio, regressando a Nova Iorque em Maio de 1785, sendo o objectivo dessa primeira viagem norte-americana ao Extremo Oriente a busca de mercados alternativos às Índias Ocidentais britânicas.

O mercador é nomeado (primeiro) cônsul norte-americano em Cantão pelo Congresso em Janeiro de 1786 e em Fevereiro viaja pela segunda vez para a China, chegando a Macau em meados de Agosto, local onde também reside em 1787. Em Março de 1790 Shaw embarca pela terceira vez rumo a Cantão, onde vende o seu navio a portugueses e investe num carregamento destinado à Europa, via Bombaim, para onde ele próprio se dirige em 1791.

O diplomata regressa a ‘casa’ no ano seguinte e organiza uma quarta viagem, via Bombaim, que teria início em Fevereiro de 1793, pouco tempo antes de ele falecer. Nos seus diários de viagem, o comerciante-diplomata descreve assim o enclave que descobre gradualmente:

 

A situação em Macau é muto agradável, e os cavalheiros europeus que comercializam em Cantão estão aí bem instalados. Mal os seus barcos abandonam Cantão e os sobrecargas fecham as contas com os chineses, eles regressam a Macau e aí residem até à chegada dos barcos na próxima estação comercial. Os holandeses, os dinamarqueses e os ingleses tinham ido para Cantão poucos dias antes da nossa chegada.

 

O relato começa por fornecer um panorama das relações e dos estatutos comerciais das diferentes nações europeias em Cantão, afirmando que os portugueses, embora possuam Macau, não detêm, como o fazem os outros povos, um estabelecimento público onde levam a cabo o comércio em Cantão, fazendo-o através de agentes enviados da Europa que regressam nos barcos, poupando assim o dinheiro que as outras nações gastam, pois os negócios de Portugal são levados maioritariamente a cabo no enclave.

Shaw descreve as medidas a tomar durante a viagem entre Macau e Cantão, via Whampoa, e explica as funções de figuras como o fiador, o comprador e o linguista (tradutor) e de instituições nativas como o co-hong, presenças também recorrentes nos relatos de viagem anglófonos. A narrativa refere a rivalidade entre britânicos e norte-americanos também na China, pois os primeiros não convidam os recém-chegados (da sua velha colónia) para os extravagantes e luxuosos jantares com que os europeus se divertem em Macau, nomeadamente os portugueses.

O sobrecarga norte-americano testemunha e descreve o conflito da embarcação de Bombaim Lady Hughes, um dos mais conhecidos incidentes da presença inglesa na costa do Sul da China. Em Novembro de 1784, o barco encontra-se em Whampoa quando, durante a habitual salva à chegada, atinge acidentalmente uma pequena embarcação, ferindo três chineses, dois dos quais vêm a falecer.

O Governador de Guangdong e o secretário do hopu pedem ao presidente do Comité Selecto da East India Company, W. H. Pigou, que entregue o tripulante que disparara o tiro, pois, de acordo com a lei chinesa, “o sangue responderá pelo sangue derramado”.

Pigou responde que não tem qualquer jurisdição sobre os comerciantes independentes e que o inglês desaparecera em Macau. As autoridades imperiais exigem a entrega de um qualquer britânico, enquanto o comércio é suspenso, as feitorias estrangeiras cercadas, a saída para o mar bloqueada e as casas estrangeiras privadas de alimentos.

A comunidade estrangeira em Cantão apoia os britânicos e comunica ao governador português que as mortes haviam sido acidentais, mas, face à inflexibilidade dos chineses, Pigou pede ao mestre do barco que lhes entregue um homem. Perante o desaparecimento do ‘culpado’, o tripulante mais idoso do Lady Hughes é levado ao mandarinato, terminando assim as represálias no início de Dezembro, enquanto os britânicos se apercebem, mais uma vez, da sua situação vulnerável no Sul da China, onde os seus familiares têm que permanecer isolados em Macau, único local onde as mulheres estrangeiras são autorizadas a permanecer.

A segunda expedição, ao longo da qual é desde logo preparada uma terceira, parte de Nova Iorque, em Fevereiro de 1786, chegando à rada de Macau em 10 de Agosto. O diplomata remete o leitor para o seu diário anterior, pois nada mudara na China, ocupando-se o texto do trato comercial norte-americano e das nações europeias, entre as quais Portugal, cujos negócios, através de Macau, se encontram relativamente estagnados:

 

Os portugueses detêm apenas um resquício do seu poder do passado. Alguns barcos, pertença de indivíduos de Macau e de outras possessões na Índia, ainda fazem comércio, que é levado a cabo da mesma forma que o comércio inglês. O trato europeu, como já foi dito, é também conduzido por particulares, pelo que eles pouco lucro tiram agora dos seus territórios na Índia, sendo forçados a depender do crédito dos chineses para as cargas das suas viagens.

 

A comunidade estrangeira não tem qualquer tipo de relação com os portugueses, excepto com as famílias do Governador, de “Mateus João” e da “Senhora de Souza”, participando por vezes os militares e alguns membros da edilidade local nos concertos e saraus das duas comunidades de língua inglesa.

O contacto inicial com o Governador Bernardo Aleixo de Lemos e Faria e com a sua mulher, D. Maria de Saldanha, deve-se ao hábito de, durante a estada dos sobrecargas no enclave, as diferentes nações lhes oferecerem um jantar, que estes nunca retribuem.

Shaw descreve D. Maria como “uma portuguesa da Europa, sensata inteligente e, quando lhe apetece, muito agradável”, enquanto o Governador nativo de Goa é apresentado como menos culto do que a mulher, como o prova o facto de ter perguntado a um sobrecarga britânico se a guerra entre a Grã-Bretanha e os EUA já terminara, revelando assim o grau da sua ignorância, concluindo o diarista: “E se os governantes são assim, como será a população geral? Todos os residentes europeus descrevem os portugueses como ociosos, consequentemente pobres e extremamente supersticiosos”.

O diplomata informa ainda o leitor que existem poucos portugueses entre os habitantes de Macau, pois estes últimos são fruto da miscigenação entre portugueses, chineses e indianos, não tendo três em cada 100 residentes viajado para além do Cabo da Boa Esperança. A língua que se ouve nas ruas, embora se chame português, “é uma mistura dessa língua com malaio e chinês e chega a ser ininteligível para um cavalheiro de Lisboa quando chega, pois a sua língua materna não lhe confere qualquer vantagem”, referência ao crioulo de Macau.

A edilidade portuguesa recebe e entretém os estrangeiros com jantares nos quais exibe exóticas representações chinesas, nomeadamente de templos, que são alvo de admiração. Após terminar as transacções comerciais em Cantão, Shaw desce a Macau em Fevereiro de 1787 e planeia visitar Bombaim e a costa do Malabar, num barco que parta do enclave para a Índia. Perante a impossibilidade de o poder fazer imediatamente, o diarista permanece em Macau e conclui em Julho:

 

Uma estada de quase seis meses em Macau deu-me oportunidade de obter conhecimentos sobre os negócios do estabelecimento que de outra forma teriam sido impossíveis de conseguir. No que diz respeito à situação e ao governo do enclave, não mudou relativamente ao que descrevi nas páginas anteriores e que retirei do relato da viagem de [George] Anson. A administração está a cargo de um governador e do Senado, de um ouvidor e um bispo, todos nomeados por Goa. Nas colinas e nas margens do território encontram-se fortes e baterias que se estivessem noutras mãos poderiam ser úteis. No entanto, não há falta de marchas militares, pois o governador nunca sai sem um séquito de cipaios, tal como a sua mulher. No estabelecimento encontram-se 150 cipaios, tropas regulares de Goa, e os locais empregados como militares, uma parte dos quais se veste como cipaios e trabalha nos fortes.

 

De facto, em 28 de Julho de 1784 haviam sido aplicadas em Macau as célebres Providências através das quais o ministro das Colónias Martinho de Melo e Castro, por instigação de ex-governador da Índia Salema e Saldanha, reforma o poder do governador do enclave, sendo a guarda municipal substituída por uma guarnição de cipaios composta por 100 mosqueteiros e 50 artilheiros, número que Shaw avança com exactidão.

Macau funciona como local de aprendizagem e de familiarização com a cultura chinesa e a estada no enclave possibilita aos anglófonos o contacto directo quer com nativos quer com portugueses, cujas famílias aí residem há várias gerações e cuja experiência enriquece o conhecimento dos recém-chegados.

O diplomata norte-americano demora-se na descrição de Macau, pois sabe que os seus conterrâneos apenas têm informação sobre o mesmo em segunda mão, através de obras europeias, textos complementados na segunda viagem com novos dados, que são fruto da observação directa e demorada do autor que descreve a população portuguesa, cujos mecanismos de defesa e protecção social são considerados ineficazes.

O diário refere sumariamente a comunidade sínica do território, para afirmar que esta é governada pelo mandarinato, detendo-se em seguida sobretudo na administração portuguesa e no salário anual do governador  de 1200 taéis, montante insuficiente que é colmatado pelos negócios pessoais do próprio.

De facto, o soldo de cerca de 1000 taéis anuais explica o facto de os capitães-gerais não prolongarem o seu mandato para além dos três anos previstos a menos que tenham interesses pessoais para o fazer.

Apesar de as ordens régias proibirem o envolvimento dos governadores no comércio, muitos deles, como Shaw refere em relação a Bernardo Aleixo Lemos e Faria, acabam por comercializar, tendo sido instaurado um processo ao mesmo, que foi condenado pela Relação de Goa. Sendo o ópio proibido na China, o texto informa que a droga é aí introduzida também por Macau, através de favores e vantagens pagos ao governador português. No entanto, os britânicos também utilizam uma embarcação que mantêm ao largo de Macau para depositar a droga, evitando assim ter que recorrer à cidade para o fazer.

Outros assuntos e episódios chamam a atenção do autor, nomeadamente a questão da posse da ilha da Taipa, pois os portugueses afastam daí todos os barcos estrangeiros, indo alguns capitães parar ao “tronco” dos fortes portugueses por aí atracarem sem autorização.

O arrendamento de casas serve de exemplo da injustiça dos portugueses e da submissão dos restantes ocidentais, pois os primeiros poupam dinheiro ao explorar injustamente os residentes ‘estrangeiros’ do enclave através de um engenhoso estratagema:

 

As casas [dos portugueses] estão normalmente em estado deplorável quando são arrendadas aos europeus. Mal uma casa é reparada às custas do inquilino, o proprietário, embora o contrato de renda seja válido por vários anos, exige a devolução da casa ou um aumento na renda. Se uma destas condições não é respeitada o dono toma posse da casa quando o inquilino se muda [temporariamente] para Cantão, sendo este ultimo forçado a procurar uma outra casa.

 

Shaw exemplifica a sua afirmação com o capricho da mulher do governador durante um episódio que envolve os sobrecargas suecos:

 

A casa dos suecos era a melhor de Macau e o seu restauro custara à Companhia das Índias sueca para cima de 8000 dólares. A casa agradou ao Governador, ou melhor, à sua mulher, e os suecos foram forçados a mudar de residência, troca que lhes foi desfavorável, pois a casa do governador não chegava a valer metade do valor dos restauros da outra casa.

 

Os residentes estrangeiros são, assim, vítimas do abuso de poder dos lusos, pois “quando se trata de assuntos com europeus, os portugueses nem pedem autorização”, sendo também avançados exemplos de casos em que os sobrecargas britânicos vêem as casas por si arrendadas ocupadas na sua ausência, sendo-lhes também pedido para saírem das mesmas pois é necessário acomodar um juiz que chegara a Macau.

Shaw conclui assim que as disputas entre lusos e estrangeiros se devem ao facto de não ser permitido aos últimos adquirir qualquer propriedade no enclave, não podendo, portanto, adquirir casas ou terrenos para as construir, nem mesmo, caso morram, ser sepultados no interior das muralhas da cidade católica.

De facto, apenas em 1821 é permitido aos britânicos construir um cemitério protestante onde passam a poder enterrar os seus mortos, insurgindo-se, ao longo dos tempos, vários bispos de Macau contra a perniciosa presença de protestantes que corrompem a moral dos cidadãos do enclave.

A religião católica, amplamente materializada através dos muitos conventos e igrejas que adornam os montes e largos, é também referida pelo autor, que afirma:

 

Se uma pessoa julgasse a piedade dos habitantes cristãos de Macau pelo número das igrejas aí existentes, pensaria que esta seria da mais elevada ordem. Para além de 30 igrejas, existe um convento de dominicanos [São Domingos] e outro de franciscanos [São Francisco], outro de freiras [Santa Clara], mas nenhum tem muitos ocupantes. Estes, tal como outros edifícios públicos como o Leal Senado [reconstruído em 1783], o tribunal, a prisão e o hospital foram construídos num estilo elegante, em pedra ou tijolo. As casas particulares são geralmente grandes e confortáveis e estão pintadas de branco ou caiadas.

 

A segurança conferida pelo sistema de muralhas do enclave, bem como a guarda dos seus portos e a simbologia das vigilantes fortalezas, exprime o sentido comunitário, delimita o espaço administrado pelos portugueses e condiciona o pulsar urbano de Macau, enquanto marca também a sua defesa e a separa do resto do território chinês.

Quando o cônsul regressa da sua viagem a Bengala, o enclave é caracterizado como um espaço cosmopolita e porto ocidental de chegada e de entrada na China, onde os norte-americanos recebem correspondência dos EUA, enumerando o texto alguns locais de interesse no território, nomeadamente a Casa Garden e os jardins da gruta onde Camões, de acordo com a lenda, terá redigido parte de Os Lusíadas.

Shaw, que permanece na cidade durante parte da época comercial, descreve as diversas dimensões do quotidiano do território através dos mercados onde os chineses vendem carnes e legumes que trazem da China, do pulsar da urbe no Verão e dos espaços públicos e privados, ambos lúdicos:

 

Quando os cavalheiros das várias nações se encontram a cidade, o estado da sociedade não é mau. Cada casa tem uma mesa de bilhar, inúmeros indivíduos têm barcos de entretenimento e há concertos públicos duas vezes por semana. Para além destas diversões, há um jogo de cartas ao sábado à noite, normalmente na casa do sobrecarga-chefe dinamarquês, o Sr. Vogelsang.

 

O facto de os britânicos arrendarem casas na cidade dá também lugar a que as festas, os bailes e os encontros sociais, nos quais nunca se vêem mais de seis mulheres ocidentais, se multipliquem, promovendo a amizade entre os residentes de língua inglesa.

Shaw refere ainda que, ao chegar a Macau de Cantão, faz a sua “visita de cerimónia habitual” aos britânicos, mas nunca aceita os sucessivos convites do Comité Selecto da East India Company para jantar na sede da Companhia devido à indiferença que os britânicos normalmente demonstram para com os norte-americanos.

Apesar de os negócios e as estratégias diplomáticas de Shaw ocuparem a maior parte dos seus diários, a descrição de Macau, dos hábitos dos portugueses e dos demais ocidentais só é possível devido às estadas forçadas do autor na cidade-fronteira, pois o interesse norte-americano no Império do Meio reside sobretudo nos negócios em Cantão.

O cosmopolita território chinês sob administração portuguesa funciona assim como um espaço simultaneamente exótico e familiar de recreio, onde o diarista recolhe informação em primeira mão sobre as administrações portuguesa e chinesa e as atracções locais como o jogo, dados esses que são decerto úteis para futuros mercadores, seus conterrâneos, que viajem até a Cantão e que, deste modo, não dependerão, como acontece com Shaw, de antigas narrativas de viagem britânicas como a da viagem do comodoro Anson que refere também a vivência católica da urbe materializada nas construções de prestígio como conventos e igrejas.

O sobrecarga-diplomata encontra, assim, no território, os europeus católicos e os chineses, tornando-se Macau uma zona de contacto estratégica entre ocidentais e orientais para o estabelecimento e desenvolvimento do comércio norte-americano com a China.

Fontes como os diários de Samuel Shaw, o primeiro norte-americano de que há registo de ter visitado Macau, são olhares protestantes sobre o enclave católico e descrevem, como vimos, pormenores e vivências importantes do quotidiano da Macau Setecentista que muitas vezes se encontram ausentes das fontes portuguesas.