O diplomata poeta

Foi professor de literatura, mas decidiu conjugar a carreira diplomática com as letras. Foi parar na China quase por um acaso do destino e agora, passados oito anos, agradece pela oportunidade que lhe abriu portas a traduzir grandes poetas chineses para o português e escritores brasileiros para o chinês. Ricardo Primo Portugal, de 50 anos, é um cônsul-poeta

 

 

Texto Vanessa Amaro

Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Passa a maior parte do tempo a analisar pedidos de vistos e a planear a expansão do Consulado Geral do Brasil em Cantão, na Província de Guangdong. Quando sai do trabalho, despe o fato de cônsul-adjunto e torna-se um homem das letras. Ricardo Primo Portugal, nascido há 50 anos no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, descobriu por força do destino um talento para levar a literatura chinesa para o seu país natal e trazer na volta grandes escritores brasileiros para a China.

De raízes portuguesas – teve antepassados na primeira expedição ao Brasil e entre os membros da corte de Dom João VI de 1808 -, Ricardo Portugal desde sempre cultivou um gosto especial pelas literaturas portuguesa e brasileira. A paixão era tão grande que tirou uma licenciatura em Línguas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, focado sobretudo em obras de grandes escritores lusófonos. Deu aulas de literatura por alguns anos, até que uma amiga lhe falou da vida diplomática. “O Brasil atravessava uma crise financeira muito complicada na altura em que me licenciei e a profissão de professor não era muito valorizada. A isso juntou-se um sonho antigo, o de viajar pelo mundo. Foi a combinação para mudar de vida”, conta.

Voltou-se para os estudos e prestou provas para o Instituto Rio Branco – a academia diplomática brasileira, única entidade que forma profissionais desta actividade no país. Quando acabou o curso, em 2000, diz que se sentiu pronto para “desbravar o mundo”. A China, contudo, não fazia ainda parte dos planos.

No tempo que ainda estudava Línguas, o cônsul-adjunto desenvolveu uma admiração pelos haicais japoneses – forma poética  que valoriza a concisão e a objectividade – e a partir de então nasceu uma paixão pela cultura japonesa. “O haicai desenvolveu-se no Brasil entre os anos 1970 e 1980, o auge da influência japonesa no Ocidente. Comecei a ficar fascinado pelo Oriente a partir de leituras da arte japonesa.”

Quando surgiu a primeira lotação no Ministério das Relações Exteriores, pediu para trabalhar numa divisão encarregue de assuntos políticos da Ásia Oriental. O seu pedido era directo e claro: “Quero trabalhar com assuntos do Japão!” Mas não foi isso que aconteceu. “Na minha primeira lotação, calhou-me a Ásia, mas não o Japão dos meus sonhos. Não havia vagas, mas sobravam para a China, porque ninguém queria trabalhar com esse país, encarado como assunto novo e complexo demais. Há 12 anos, ninguém sabia bem o que era isso de China. Obviamente que pensei que trabalharia com um assunto secundário perto do fim do mundo”, relembra-se entre risos.

O diplomata chegou então a Xangai em 2001 para uma curta estada. Teve de regressar ao Brasil e levava no coração uma paixão platónica pelo país que tinha desdenhado no início. Desde então, o interesse pela cultura e tradições chinesas não parou de aumentar. Durante o ano que esteve em Brasília, a preparar-se para uma missão mais alargada em Pequim, Ricardo Portugal queria chegar à capital chinesa com toda a lição de casa feita, incluindo o mandarim na ponta da língua. Não foi uma tarefa fácil. “Não havia uma única alma que desse aulas de chinês naquela altura. Tive de bater à porta da Embaixada da China e pedir ajuda para que me arranjassem um professor de chinês. Três dias depois liga-me uma menina que era filha do dono de um restaurante chinês em Brasília.  Ela saía da escola e vinha me dar aulas ainda de uniforme.”

 

O início de tudo

Em Pequim, a adaptação ao modo de vida chinês deu-se muito rápido e Ricardo começou então a rascunhar as primeiras traduções para o português de poemas chineses. O cupido também deu uma grande ajuda na tarefa. Foi na capital chinesa que o diplomata reencontrou uma paixão antiga, daquelas que só podia observar ao longe e nunca tocar. “A Tan Xiao, que agora é a minha mulher, trabalhava na Embaixada da China em Brasília. Nunca tinha conseguido me aproximar dela então. Só lhe olhava de longe e pensava ‘É a coisa mais linda que já vi na vida’. Mais tarde, ela foi justamente bater à porta da Embaixada do Brasil em Pequim a pedir trabalho como intérprete.”

Da grande amizade nasceu um casamento e muito mais. Tan Xiao tornou-se a parceira de Ricardo Portugal no desafio de tradução de grandes poetas chineses. O diplomata conta que mostrou à mulher os rascunhos das suas traduções de Wang Wei um quanto tanto apreensivo. “Estava à espera que ela dissesse que aquilo não prestava.” Tan corrigiu uma coisa e outra e propôs que aquele interesse do marido fosse levado adiante com uma ambição maior: traduzir todos os ilustres autores da Dinastia Tang (618-907). “Eu fazia apenas uma vaga ideia e foi então que ela começou a me contar sobre a forte tradição da poesia feminina na China. Decidimos firmar uma parceria para começar a tradução de grandes poetisas. A Yu Xuanji foi então o nosso primeiro grande amor. Foi um produto da vida de casal.”

O trabalho foi intenso e os cerca de 50 poemas demoraram mais de três anos para estarem traduzidos. O casal propõe-se muito mais do que simplesmente traduzir. Quer, sobretudo, usar referências antropológicas que permitam ao leitor recriar o ambiente da China de há 1100 anos e a mergulhar na alma do poeta. Recuperar formas lexicais que já se perderam no tempo tem sido um dos maiores desafios. “Há um poema de Yu Xuanji que fala de uma sala de jade. Fui ver como aquilo tinha sido traduzido no francês e no inglês e fiquei chocado com a destruição do significado da expressão. Depois de muita pesquisa, descobri que era uma sala ricamente decorada na época da Dinastia Tang que servia para receber convidados importantes. É um dado histórico que já não existe, mas tem de ser contextualizado para os dias de hoje.”

O casal começou por lançar o seu trabalho em revistas literárias espalhadas pela Internet. Até que um dia a editora da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), onde está instalado o maior Instituto Confúcio da América Latina, contactou Ricardo Portugal a querer transformar as traduções numa obra única, publicada em versão bilingue e com inúmeras notas que ajudassem o leitor a contextualizar a informação. Assim nasceu a obra Poesia Completa de Yu Xuanji (Editora UNESP, 2011).

Para este ano, quando se comemoram os 200 anos do início da imigração chinesa no Brasil, o casal prepara uma antologia de 25 poetas da Dinastia Tang, algo que não existe em língua portuguesa com tal amplitude. São aproximadamente 160 poemas em que os tradutores fizeram questão de manter a individualidade de cada autor. “A tradução é de certa maneira a construção de um máscara. O poema começa a funcionar quando eu consigo vestir a máscara, quando sinto a atmosfera do poema, o tipo de linguagem específica daquele poeta. Acredito que conseguimos manter a identidade de cada um deles”, explica Ricardo.

Não há em língua portuguesa nenhuma antologia mais completa de traduções da poesia clássica chinesa editada, excepto a do professor Gil de Carvalho. Há ainda as antologias de Li Bai, Wang Wei e Bai Juyi feitas pelo português António Graça de Abreu. Além destes trabalhos, há apenas algumas poucas traduções isoladas de poemas mais conhecidos, além do trabalho muito anterior, dos jesuítas, no início da colonização de Macau e dos poucos textos vertidos por Camilo Pessanha. Ricardo Portugal e Tan Xiao desbravaram um caminho que promete não ser interrompido.

 

Trabalho com cabeça e membros

Em 2007, o diplomata fez o caminho oposto e lançou a Antologia poética de Mário Quintana, aquele que é o primeiro livro de um poeta brasileiro traduzido para o chinês. A vivência na China, algo que considera “inenarrável”, também tem sido uma forte fonte de inspiração para Ricardo. No ano passado, o diplomata-poeta apresentou ao público o seu último livro, Zero a Sem (7 Letras, 2011), uma obra escrita ao estilo dos haicais japoneses mas com temas ligados à China. “Fiz uma longa interrupção na literatura [Ricardo publicou o primeiro livro aos 23 anos e desde então seguiram-se outros – Antena Tensa, Arte do Risco, DePassagens e A cidade iluminada – quando me tornei diplomata, pois tinha um nível de exigência profissional muito alto. Escrevi muito, mas não editei livros nos últimos cinco anos, quebrando esse jejum em 2011.”

Continuar o ritmo acelerado é o objectivo, mas o cônsul realça que o classicismo chinês é gigantesco e de uma enorme complexidade. Ricardo Portugal prefere não se arriscar no vasto mundo dos autores contemporâneos, por ser uma tarefa demasiado exigente para um estrangeiro que não tem capacidade de entender uma sociedade em mutação. “Tenho também um certo fascínio pela Dinastia Song, mas acho que só daqui a cinco anos é que chego lá. Em relação aos modernistas, pode ser que um dia, mas quanto aos contemporâneos, nem pensar.”

Ricardo Portugal diz que se misturou tanto com o país onde vive há oito anos que diria que a sua segunda nacionalidade é a chinesa. “Não é normal para um diplomata passar tanto tempo no mesmo lugar. Eu não tenho vontade de ir embora.” Mas aventurar-se pelo mundo dos caracteres sozinho não lhe passa pela cabeça. O diplomata acredita que deve haver sempre um controlo de qualidade por parte de um falante nativo do chinês, neste caso a sua mulher. “Quando encontro caracteres estranhos, poderia muito bem pôr algo que me soasse melhor, mas não estaria a fazer um bom trabalho. A poesia chinesa clássica é muito bem feita, é excepcional. Vale a pena perder algum tempo a interpretar o significado de cada carácter.”

Para o cônsul, uma das vantagens do seu trabalho como tradutor é a possibilidade de se enriquecer a poesia contemporânea em língua portuguesa através da incorporação de códigos tradicionais chineses. “Certos códigos, como os paralelismos – uma característica fundamental na poesia clássica chinesa – são preservados. O trabalho sonoro riquíssimo, bem como o virtuosismo,  mantém-se.”

 

Camões na poesia chinesa

Luís de Camões é o herói de Ricardo Portugal e um ponto de partida decisivo para as traduções da poesia chinesa. Quando estava a estudar o trabalho da poetisa Yu Xuanji, o diplomata conta que procurou valer-se das influências do escritor português. “Quando traduzimos a poesia clássica chinesa, o nosso objectivo é que também seja muito próxima à clássica portuguesa. Há citações de Camões que trazemos para textos de Xuanji, há inúmeras expressões usadas em Os Lusíadas. O trabalho elaborado de musicalidade, de aliterações e assonâncias na língua portuguesa foi-nos transmitido pela lírica de Camões, e não creio que seja possível traduzir bem poesia chinesa clássica sem a utilização desses recursos. Estudei cuidadosamente a literatura portuguesa. Sou de origem portuguesa e os meus apelidos são claros nesse aspecto.”

O diplomata reconhece que quando se fala no ensino da língua portuguesa no estrangeiro, o sotaque brasileiro está anos-luz atrás das iniciativas já consolidadas por Portugal na divulgação do idioma. Ricardo Portugal refere que o Brasil ainda não conseguiu agarrar a oportunidade de investir na formação de falantes com sotaque brasileiro. “O Brasil só muito recentemente conseguiu se estabilizar economicamente. O momento é promissor, a economia do país está bastante sólida e vem crescendo com distribuição de riqueza, grande preocupação do Governo brasileiro. Estamos confiantes de que o português com sotaque brasileiro passe a ser mais difundido num futuro próximo.”

Contudo, Ricardo frisa que entende as diferenças entre as formas de se falar e escrever o português, mas não gosta de pensar de maneira redutora em nenhuma delas. “O Estado português é brilhante, extremamente bem preparado e reconhece a importância da divulgação da língua portuguesa. No entanto, por vezes, sentimos algum tipo de resistência em que se fale português nos seus mais variados sotaques. Para mim, só existe um português e diversas formas de falá-lo. O Brasil não deixa de ser uma parte de Portugal que cresceu e se transformou num outro país. Jamais relegaremos a nossa história.”

O cônsul-adjunto frisa que há modelos clássicos para o Brasil que, na verdade, são portugueses. Tal referência, considera Ricardo, não deixa de ser importante para Portugal e as demais nações de língua portuguesa. “É um dado positivo: o Brasil é a principal economia do mundo lusófono, com aproximadamente 200 milhões de falantes, definitivamente um dos principais países emergentes no cenário internacional. As pessoas estudam português no mundo de hoje, principalmente, para trabalhar com o Brasil. Quando traduzo Yu Xuanji, penso em Camões, em Sophia de Mello Breyner Andresen.”

 

Admirável mundo novo

Há oito anos, a China já era o quarto parceiro comercial do Brasil. Hoje é o principal e, segundo o diplomata, há ainda muitas barreiras a ultrapassar para melhorar as relações bilaterais. “Para os brasileiros, a China mal deixa de ser uma absoluta novidade, o que representa um grave problema. Temos ainda pouca gente que saiba da China, que conheça a cultura e a literatura chinesa ou que fale mandarim, apesar da floração de cursos de chinês e Institutos Confúcio em universidades em anos recentes. O Brasil acordou para esta realidade tarde demais e tenta agora recuperar o tempo perdido”, aponta o cônsul-adjunto de Cantão.

O interesse chinês pelo mercado brasileiro está sobretudo visível na forte demanda de vistos para investidores. O Consulado Geral do Brasil em Cantão recebe actualmente uma média de 100 pedidos de vistos por dia. As instalações do organismo ainda não estão preparadas para uma maior demanda e, apesar de ter sido aberto há pouco mais de ano e meio, já é preciso aumentar a equipa e aprimorar o mecanismo de emissão de vistos. “Chegamos atrasados. A província de Guangdong alberga a maior comunidade brasileira na China e é o principal centro de exportação do país. É daqui que sai a maior parte das exportações e investimentos rumo ao Brasil. Nos últimos meses, temos ultrapassado os números da representação em Xangai, que até então era a maior na China”, refere o diplomata.

Consulados de outros países na cidade optaram por já terciarizar o processamento de vistos, ideia que está em cima da mesa para agilizar as burocracias no lado brasileiro. Um problema que entretanto se coloca é o aumento do número de casos de falsificação. Algumas representações incorporaram um adido policial e têm grupos de técnicos a analisar possíveis fraudes. “Queremos prevenir a imigração ilegal. A técnica da falsificação de vistos brasileiros é bastante elaborada e temos de estar atentos a esta situação”, analisa Ricardo Portugal, acrescentando que as relações sino-brasileiras tendem a se intensificar.