Texto Diana do Mar e Patrícia Neves
Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro
Foi em 1988 que Andrew Stow, farmacêutico industrial, provou pela primeira vez um pastel de Belém ao balcão de uma das confeitarias mais famosas de Portugal e ponto de paragem obrigatório de quem visita a capital portuguesa. Nessa altura, Andrew não imaginava que o ex-líbris da doçaria portuguesa estaria prestes a mudar a sua vida.
“Apercebendo-se de que não havia um local, além dos hotéis, para os ocidentais comprarem pão decidiu abrir uma pequena padaria para fazer a distribuição pelos supermercados”, lembra Eileen, que gere o negócio desde a morte do irmão, em 2006. O cheiro a pão quente atraiu, no entanto, quem passava pelo novo “laboratório” de Andrew no coração da pitoresca vila de Coloane e a Lord Stow’s não resistiu em abrir portas ao público em Setembro de 1989.
Querendo agradar aos amigos portugueses, Stow agarrou na cultura do “café e uma nata” e tratou de reinventar a receita de Belém. “Conhecia o sabor do verdadeiro pastel, mas não sabia como o fazer e, enquanto britânico arrogante, não quis pedir a receita a um português, por isso, criou a sua própria”, constatou Eileen.
O produto final causou relutância junto dos portugueses que, embora habituados a novos paladares em terras orientais, se mantinham fiéis aos sabores da terra. “Disseram ao Andrew que [a sua criação] não era bem um pastel de nata, ao que ele respondeu: ‘É o que consigo fazer e se não gostam não comprem’”, contou a irmã ao lembrar, entre risos, a personalidade forte de Stow.
Sem perder a confiança, Andrew deu-o a provar aos chineses e a sua reacção foi surpreendente… ou não: “Gostaram imediatamente, porque há uma tradição de pastéis de ovo no dim sum. E, como não sabiam dizer pastel de nata, chamaram-lhe tarte de ovo portuguesa”, explica Eileen.
Hoje, Eileen acredita que se o irmão “soubesse o sucesso que isto ia ter, tinha-lhe chamado tarte de ovo de Macau”, apontando que as 200 unidades que a Lord Stow’s vendia inicialmente por dia multiplicaram-se para cerca de 10 mil hoje.
Eileen não deixa de achar curioso o facto de ter sido um inglês e não um português a dar fama ao pastel de nata num território que esteve sob administração de Portugal por mais de quatro séculos. “Acho estranho que os italianos sejam conhecidos no mundo inteiro pelos seus cafés e os portugueses não o sejam por coisas semelhantes… Onde está o espírito aventureiro dos portugueses?”, questionou. Andrew “estava lá no momento certo, com a ideia certa”. Tão certa que um dia telefonou à irmã em Inglaterra desesperado: “Criei esta maldita tarte de ovo e não consigo fazer suficientes, precisamos de expandir o negócio”, recorda Eileen.
Os chineses renderam-se e o pu shi dan ta transformou-se num símbolo de Macau. Eileen lembra que o irmão costumava “irritar-se com as imitações” e avisava-o: “Nunca conseguirás fazer todas as tartes de ovo que são vendidas por dia em Macau’”.
Andrew começou a construir o seu império ao lado de Margaret Wong que, quase um quarto de século depois, ainda preserva frescas as memórias da génese do negócio e dos obstáculos inerentes à novidade que viria a triunfar junto da comunidade chinesa até então pouco permeável à doçaria lusa. As primeiras reacções dos seus compatriotas quando viram o pastel nunca as esquecerá: “Se comerem isso vão ficar com cancro’”, comentavam, ao repararem na parte de cima queimada.
O casal resolveu, contudo, fazer ouvidos de mercador. A clientela foi-se habituando, percebendo que fazia parte e “a partir daí, voltou”. Até hoje.
Depois do divórcio, Margaret ficou com a loja que abriu com Andrew no centro da cidade, dando-lhe um novo nome e criando uma marca: a Margaret’s Café & Nata que, por dia, chega a vender 9000 bolos. Com as portas fechadas à quarta-feira, o espaço tem mais oferta, mas a nata “é o que vende mais” e é devorada no plural porque uma sabe a pouco.
Souvenir para o paladar
É também aos pares que se vendem nas casas Koi Kei, apresentadas como tartes de ovo portuguesas. Mas nem sempre foi assim. A cadeia, campeã de souvenirs de comida no território, com 16 espaços, três dos quais em Hong Kong, só há cerca de sete anos é que cedeu à pressão da crescente procura.
Leung Chan Kuong, fundador da Koi Kei, aprendeu a receita com um amigo, também chinês, “um profissional a fazer pastéis de nata de estilo português”, sendo que o sabor “foi sendo melhorado após várias tentativas”. O pastel de nata tornou-se num sucesso de vendas – chegam a ser 4000 por dia –, depois dos populares e tradicionais bolos de amêndoa.
Já ao largo da confusão, no Grand Hyatt Macau, os pastéis de nata, confeccionados por uma equipa multicultural, não se mostram como “portugueses” e apesar de neles inspirados são servidos despidos de canela. “Os chineses não se sentem muito atraídos por açúcar, portanto, em tudo o que fazemos temos de ter a certeza de que não são muito doces”, explica o chef Regis Monges.
Os japoneses são dos melhores clientes. “Sabem onde ir, onde comer, onde comprar, estão muito bem informados e aparecem aqui com o guia a apontar para as imagens”, partilhou, realçando que os turistas de Hong Kong também apreciam os pastéis da Patisserie do Grand Hyatt, que vende em média uma centena por dia.
Na original montra lusitana
À mesa do restaurante Ou Mun, numa ruela do Leal Senado, a especiaria do Sri Lanka acompanha os cerca de 30 pastéis de nata vendidos por dia e criados a partir da “verdadeira” receita portuguesa. Fernando Marques, o proprietário, recorda, numa visita à fábrica, que chegou a testar “adaptações”, mas não foram bem aceites. “Tornaste-te chinês? O que é isto?”, perguntavam-lhe. “Uma semana depois voltei à receita original”, disse.
A acompanhar o café e o jornal, o pastel de nata cai sempre bem, garante a clientela do Caravela, de onde saem do forno diariamente cerca de 40 pastéis de nata, a maioria levada por portugueses. “Há muitos turistas que querem provar, contudo, não aderem ao consumo do nosso pastel”. A ideia que têm, diz a experiência do proprietário, Alberto Pablo, “é que devem ser comidos a ferver, de modo a que a boca fique cheia de bolhas, que não se deve pôr canela e que devem ser consumidos em grandes quantidades, dois ou três…”
Já a Nata “faz muita propaganda do verdadeiro pastel de nata e acaba por vir muita gente da China, de Hong Kong e do Japão”, avalia Cristiana Figueiredo, o “rosto” da empresa que começou por colocar o produto nas prateleiras dos supermercados e cafés antes de abrir o Cuppa Coffee, na Taipa.
A confecção da nata está nas mãos de um pasteleiro das Filipinas que trabalhou anos a fio com portugueses. Seguiram-se “alguns ajustes na receita para o gosto que queríamos”, explicou Cristiana Figueiredo, que chegou ao território há dez anos.
A nata da Nata, na sua forma natural e pronta para uma dentada, ou congelada, só se comercializa em Macau, chegando a uma dezena de supermercados e cafés, incluindo o Cuppa Coffee, uma média de 700 pastéis por semana.
A proprietária do Nata lamenta o facto de, à excepção de alguns espaços que vendem o “verdadeiro” pastel, tenha sido a tarte de ovo a triunfar como “padrão da Ásia”. “Toda a gente pensa que aquele é o nosso pastel e não é”. Além disso, “as pessoas também se esquecem que há muita gente a trabalhar fora de Portugal e a fazer pastéis de nata que há muitos anos andam pelas bocas do mundo”.