10 Anos da Liberalização do Jogo

Quando em 2002 o Governo avançou para a liberalização do jogo poucos conseguiram prever a rapidez das mudanças que aconteceram em apenas alguns anos. Os casinos arrecadam hoje só num mês mais do que conseguiam em todo o ano de 2002. A abertura ao jogo transformou por completo as feições da cidade e está a pôr Macau na rota internacional do turismo de alta qualidade

 

Macau, Casino Lisboa

 

Texto Diana do Mar

 

Muito mudou numa década. O horizonte de Macau, pintado pela literatura de outrora, deixou de ser de perder de vista, da água brotou terra fértil para os chamados resorts integrados e até os riquexós – no ritmo que lhes é característico – deixaram de poder acompanhar a pedalada de um crescimento difícil de imaginar à época.

Os casinos arrecadam hoje só num mês mais do que apuravam em todo o ano de 2002. A receita dos cofres públicos multiplicou-se por oito, os hotéis quase duplicaram e as lojas e restaurantes sofreram uma expressiva expansão. Até a deflação ficou para trás e faz hoje parte de um longínquo passado.

A “invasão” de turistas explica em grande medida o crescimento em todas as frentes: as 11,5 milhões de entradas do ano do anúncio do fim do monopólio de Stanley Ho passaram a mais de 28 milhões em 2011.

A onda de expansão veio arrebatar a calma, arrastou o luxo para a cidade, com as grandes marcas internacionais a assentarem raízes numa Macau que trilha hoje o caminho para afirmar-se como um centro mundial de turismo e lazer.

Há uma série de “conquistas” que foram possíveis apenas devido à liberalização, avaliou o director do Instituto para o Estudo do Jogo da Universidade de Macau, Davis Fong. E economicamente falando, foram muitas. A taxa de desemprego caiu de quase sete por cento para o patamar dos dois por cento – atingindo o nível mais baixo de que há registo –, os salários subiram e o Produto Interno Bruto per capita encontrou um lugar de topo entre os maiores do mundo, elencou o académico à MACAU.

O jogo cresceu – Macau ultrapassou, pela primeira vez, em 2006, a mítica Las Vegas –, mas não cresceu sozinho. Abriu de par em par as portas à emancipação de indústrias que orbitam à sua volta e serviu de rampa de lançamento a outros sectores que estariam destinados a desempenhar um papel de destaque na procura pela diversificação do tecido económico local.

A indústria hoteleira foi, sem dúvida, a que mais beneficiou, apontou o analista, apoiando-se na exponencial taxa de crescimento do valor acrescentado bruto, um indicador que reflecte o contributo económico da actividade, registado entre 2003 e 2011.

No ranking, e adoptando a mesma metodologia, segue-se o comércio a retalho. Nada que não tivessem denunciado já os vistosos sacos que pendem nos braços de grande parte dos turistas, parte de uma classe média poderosa, que tem vindo a despontar do lado de lá das Portas do Cerco.

O pódio dos que mais ganharam com a liberalização fica completo com a restauração, segundo Davis Fong. E porque entre dormir e fazer compras há que parar para saborear uma refeição – aliás, um importante momento da jornada à luz da cultura chinesa –, a oferta sucumbiu à procura: no final de 2011, como atestam dados oficiais, existiam mais 300 estabelecimentos de portas abertas do que em 2003, totalizando 1714.

O sector das convenções e exposições (MICE, na sigla inglesa) – crucial na estratégia governamental de diversificação económica – também deu um pulo. Em 2002, ainda sob a era do monopólio da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM) de Stanley Ho, Macau foi palco de 266 eventos. Já em 2007, viria a acolher mais do quádruplo. Em 2010, foram 1399 e, em 2011, um total de 1045, o equivalente a uma média de três eventos por dia.

O recuo anual do número de reuniões/conferências e exposições do ano passado foi, no entanto, compensado pela adesão: mais de 1,2 milhões participaram nos eventos definidos no calendário de 2011, mais 60 por cento do que em 2010.

A mudança que a liberalização veio operar no sector MICE ocorreu sobretudo no plano das infra-estruturas. Pelo menos na perspectiva da presidente da direcção da Associação de Convenções e Exposições de Macau, Eva Lou. Os mais de 20 anos de experiência na área permitem-lhe aferir que a liberalização serviu de plataforma para o desenvolvimento do sector, uma vez que veio alargar a limitada oferta. “Sem as infra-estruturas que [as operadoras de jogo] vieram oferecer – como um espaço com uma área global de cerca de um milhão de pés quadrados –, nunca poderíamos ter esta indústria, tal como a conhecemos hoje.”

“Antes de 2007 não tínhamos nada, só pequenos espaços”, avaliou Eva Lou, recordando que, em 2006, foi forçada a distribuir perto de 3000 pessoas por diversos hotéis e a escolher o pavilhão desportivo do Instituto Politécnico como palco, um lugar pouco adequado para a iniciativa em apreço, mas o possível à data.

“Esse tipo de hardware mudou a indústria”, realçou, ressalvando, porém que, apesar de a liberalização do jogo ter vindo dar um novo fôlego, Macau já organizava eventos ainda que em menor escala. Para Eva Lou, em termos globais, o desempenho do sector MICE tem sido “saudável”, ainda que haja segmentos mais avançados do que outros. Os eventos corporativos, por exemplo, vão na dianteira no seio da indústria, enquanto os congressos internacionais carecem de um novo impulso para apanhar o ritmo, estando dependentes de uma série de factores. Para a especialista, falta um pouco mais de “agressividade” e uma maior “exposição internacional”. Ainda assim, analisou, “estamos no bom caminho”.

 

A nova face do entretenimento

O entretenimento também foi inevitavelmente engolido pela metamorfose provocada pela entrada em cena de novos actores. “Mudou toda a perspectiva”, defendeu Guy Lesquoy, do alto dos seus 30 anos de experiência na área do entretenimento em Macau, em que se evidencia a criação do Crazy Paris Show, espectáculo que foi levado à cena no Teatro D. Pedro V.

“Antes tínhamos uma única empresa que era responsável por tudo relacionado com o entretenimento”, pelo que a “beleza” do processo de liberalização do jogo assentou no facto de cada um dos casinos ter passado a disponibilizar oferta. “O que primeiro era uma obrigação tornou-se depois em algo que atraía as pessoas”, analisou, chamando a atenção para a tradição e para o savoir-faire das empresas norte-americanas na arte de entreter.

Os espectáculos foram-se desdobrando, lado a lado com as mesas de pano verde, e atingindo novos patamares. “Quando há concorrência também há naturalmente melhoria na qualidade”, argumentou Guy Lesquoy, sustentando que as operadoras de jogo se viram, de certo modo, obrigadas a alcançar “um determinado nível de elegância e de sofisticação”.

Para aquele que é considerado um precursor do entretenimento em Macau, nos dias que correm “tudo tem um nível elevado”, com as operadoras a rivalizarem e a tentarem suplantar-se umas às outras, numa “concorrência saudável”. Tal acabou também por ter reflexos noutro tipo de iniciativas de foro cultural, como as que chegam pela mão do Governo, defendeu Guy Lesquoy.

Mas pode o entretenimento sobreviver sem as operadoras de jogo? Guy Lesquoy é categórico: “Não. Isso é impossível”. Porquê? “Todas podem suportar trazer algumas pessoas que custam muito dinheiro sem realmente pensarem duas vezes. Isto porque existe a receita da bilheteira e uma outra, secundária: as pessoas vêm para assistir a um espectáculo e, depois, ficam para comer, beber, dormir, ir ao casino”.

As operadoras de jogo “podem dar-se ao luxo de não se preocuparem demasiado com a vertente da receita”, ao contrário de um promotor independente para quem vai uma grande diferença entre ganhar ou perder dinheiro numa jogada.

O papel que as operadoras desempenharam no desenvolvimento de sectores como o MICE ou entretenimento também é reconhecido pelo director do Centro de Pesquisa de Turismo Internacional do Instituto de Formação Turística (IFT). “Julgo que compreendem muito bem o objectivo do Governo de diversificar”, advogou Leonardo Dioko, ao sublinhar que também têm vindo a ser “encorajadas” a apostar em componentes não jogo.

Aos olhos de quem vê de fora, e volvida uma década sobre o “grande salto”, o Grande Prémio de Macau já não é a única grande atracção. A pequena cidade foi capaz de seduzir a grandeza dos Óscares indianos de Bollywood, de atrair concertos, espectáculos e concursos variados aclamados na grande China.

Voltou a ser escolhida como pano de fundo à sétima arte produzida nas mais distintas latitudes, de Portugal aos Estados Unidos, e como palco a artistas de renome internacional que incluíram Macau na rota das suas digressões pelo mundo.

Durante os três anos em que foi levado à cena, a magia do ZAIA, do Cirque du Soleil, tocou o território, o qual passaria a acolher, a partir de Setembro de 2010, o mundo aquático do The House of Dancing Water, com a assinatura de Franco Dragone. E antes de se despedir de 2011, Macau ainda teve tempo para dar as boas-vindas ao Cinema 3D.

Pelo meio, Macau foi local de passagem de outros espectáculos de calibre, como o CATS, o musical mais conceituado da história da Broadway, que mostrou as suas garras no Centro Cultural, em 2007.

De mãos dadas com o entretenimento surge o desporto. Nos últimos anos, Macau assistiu ao desfile de estrelas da NBA, clubes de futebol de topo, como o Chelsea ou Manchester United, e a duelos entre tenistas do gabarito de Federer e Sampras. Eventos como o Grande Prémio Mundial de Voleibol Feminino alcançaram o estatuto de “residente” e outros como o Open de Golfe e de Badmington um lugar de destaque.

“Nem todas [as actividades] foram bem sucedidas a longo prazo, mas penso que as operadoras se têm esforçado, lançando muitos eventos, demonstrando o seu compromisso em contribuir para diversificar o produto”, observou Leonardo Dioko. Neste sentido, desempenharam “um papel instrumental” em mudar Macau e em tornar as pessoas “culturalmente mais ricas”, embora haja “margem para melhorias”.

Para o académico, um dos principais desafios que Macau tem pela frente prende-se com a sustentabilidade do actual modelo a longo prazo. “O sucesso da actual mistura de visitantes, do interior da China, de Hong Kong e Taiwan, tem dificultado, por outro lado, a possibilidade de nos diversificarmos mais. Se pensarmos em eventos, a primeira pergunta a fazer é: ‘Quem vem a Macau?’ Se vêm turistas sobretudo do Sudeste Asiático, então produz-se a pensar nesse mercado, que é enorme para se começar, mas pequeno para a futura diversificação”, salientou o académico do IFT.

Para o director da Entertaining Asia, Nick Willsher, as perspectivas são animadoras. “Acreditamos que com o desenvolvimento anual de novos hotéis e casinos, haverá mais opções de entretenimento para os visitantes”. Além disso, “Macau tem a vantagem de ter óptimas opções ao nível da oferta de espaços, as quais são limitadas em Hong Kong”, anotou.

A liberalização do jogo fez despontar oportunidades de emprego, mas levantou o pano para um problema: a falta de recursos humanos. A importação de mão-de-obra acabaria por se afigurar como uma opção incontornável. Na tentativa de responder às necessidades, as instituições de ensino superior engordaram a sua oferta curricular e diversificaram-na. Os cursos e os programas de formação sobretudo em áreas relacionadas com o Turismo foram-se desdobrando, permitindo, deste modo, que uma maior fatia de residentes fosse absorvida pelo sedento mercado laboral. Por outro lado, trouxe “mais profissionalismo”, acrescentou Leonardo Dioko.

Mas será que valeu a pena? Pesando os prós e contras, à distância de uma década, Davis Fong não tem dúvidas de que a aposta chamada liberalização do jogo vingou como a mais acertada: “A conquista mais significativa de Macau foi o nome que ganhou na cena internacional. A marca ‘Macau’ mudou de forma significativa”.

Com uma nova face, Macau está, contudo, prestes a enfrentar outro desafio: saber se os actuais operadores continuam no mercado ou se novos protagonistas vão entrar em cena. A contagem decrescente já começou.