À beira do rio Oeste

Zhaoqing, uma das cidades com maior importância histórica e cultural do Sul da China, tem também um sentido especial para a história dos portugueses em Macau. Foi de lá de onde chegou, em 1583, a aceitação oficial para os portugueses poderem ficar a viver em Macau e os jesuítas entrarem no País do Meio

 

Zhaoqing, China

 

Texto José Simões Morais

 

Zhaoqing localiza-se no Trópico de Câncer e é um destino turístico por excelência, em que muito há para ver e descobrir tanto na cidade como na prefeitura. Situa-se no centro oeste da província de Guangdong e é banhada a Sul pelo rio Oeste (Xi), tendo na outra margem a cidade de Gaoyao.

Porque o Xijiang, como é conhecido este rio, tem um ramal do delta a passar pelo Porto Interior, em Macau, chegar a Zhaoqing fazia-se de barco rio acima. Inúmeras são as embarcações que percorrem o rio Oeste, mas nenhuma é de passageiros. De comboio, numa viagem de cerca de 100 quilómetros a partir de Cantão, atravessamos canais onde não faltam barcos contentores e de transporte de areia. Pelas margens, os campos verdejantes mostram uma zona muito fértil.

Acolhidos pela cidade em neblina cerrada, caem os primeiros pingos ao entrarmos no hotel. Após uma longa e tropical chuvada, a escurecer o dia e que só amaina com o chegar da noite, saímos à descoberta da cidade. Uma curta espera e o espectáculo de fogo-de-artifício logo começa num espelhar-se pelas águas dos lagos, criando um atractivo efeito de reflexões. Ao terminar, os espectadores vão cativados e os habitantes rendidos a voltar a passear pela cidade.

Com os olhos já no quotidiano da rua, a zona onde se encontram as lojas das cadeias internacionais é usada pelos vendedores de comida e bebida para aí fazerem negócio. Aproveitam também os lojistas, de montra aberta, para espraiar nos passeios os seus produtos. Antiguidades, chás e artesanato misturam-se com entradas de hotéis e restaurantes. Numa rua perpendicular a Duanzhou Silu, entre o terminal central de autocarros e a praça do Portal, há um  mercado nocturno de roupas e bugigangas. São 23 horas e num instante, com o material recolhido, é desfeito o feitiço da feira; desertas de pessoas ficam as ruas.

É no dia seguinte ao acordar que damos conta de termos sido bafejados com uma vista privilegiada para os lagos e colinas. Seria este um dos objectivos a visitar?

 

Escritos de viagem

Dirigimo-nos para Qixing Yan, ou Penhascos das Sete Estrelas, assim denominados pelo posicionamento das colinas que espelham a Ursa Maior. O parque ocupa e limita a parte Norte da cidade e foi logo à subida da primeira colina que percebemos ser esta uma das que se podem ver do hotel.

A visita ocupa-nos um dia inteiro num passeio pelos trilhos, subindo e descendo montes e penhascos e saltando ribeiros, admirando fontes e uma flora luxuriante envolvida pelos lagos.

O que está à vista é um magnífico cenário construído em 1955, com lagos artificiais e adornado por pontes, árvores, arbustos e flores, aproveitando as belezas das colinas, cuja formação geológica é do tipo chaminé de fada.

Com uma história de aproximadamente 1500 anos, Zhaoqing rapidamente se tornou um centro político, económico, cultural e militar do vale do rio Xi, ficando por isso a ser conhecida como a prefeitura perfeita do Sul da China.

Situada em Lingnan (a Sul da cordilheira de Nanling), o território dos Yue do Sul foi em 214 a.C. conquistado pelos exércitos imperiais da dinastia Qin e integrado na prefeitura de Nanhai. Na mudança da dinastia Qin para a Han, em 208 a.C., o general Zhao Tuo aproveitou o período de desorganização e, em 204 a.C., fundou o reino de Nanyue, que durou 93 anos durante o qual reinaram cinco gerações.

Com os problemas resolvidos nas fronteiras do Norte, o imperador Wu da dinastia Han do Oeste quis reaver o reino de Nanyue, independente desde o final da dinastia Qin. Assim, em 111 a.C. terminou este reino e entre outros foi criado o departamento Gaoyao.

Em 507, o imperador Liang Wu atribui-lhe a jurisdição de prefeitura com sete departamentos e, em 589, o imperador Wen da dinastia Sui mudou o nome da prefeitura de Gaoyao para Duanzhou, adicionando dois novos departamentos.

Na dinastia Tang, Duanzhou era já um famoso cenário e terra de grandes personagens. Li Yi escreveu no parque Qixing Yan um ensaio que tornou os Penhascos das Sete Estrelas ainda mais famosos, havendo desde a dinastia Jin já registos de turistas que aí deixaram as suas impressões. Mo Xuanqing, um oficial civil primeiro nos exames imperiais, nasceu em Fengkai, e o sexto patriarca do Budismo Chan, Liuzu, era de Xinxing, também na prefeitura de Zhaoqing. Aqui morreu o monge japonês Rong Rui, que trabalhou arduamente para fazer o intercâmbio entre o Japão e a China.

O actual nome da cidade aparece em 1118, tendo o imperador Song Huizong mudado de Duanzhou para Zhaoqing, tornando-a como imperial contraponto a Cantão.

Quando os portugueses chegaram à China durante a dinastia Ming, Zhaoqing era o local de residência do Governador da Província que, nessa altura, compreendia os territórios de Guangdong e Guangxi. Por isso, desde a sua origem Macau teve uma relação directa com Zhaoqing, que em muitos documentos aparece com o nome de Shiuhing.

Por ser a capital de dois Huang, o mandarim Chen Rui, Vice-Rei de Cantão,  mandou uma chapa a Macau em 1581, ordenando que as personalidades mais importantes, como o bispo D. Leonardo de Sá e o Capitão-mor D. João de Almeida, comparecessem perante o seu tribunal em Shiuhing (Zhaoqing). A cidade resolveu enviar em substituição como delegados o Ouvidor Matias Panela, representando o Capitão-mor, e o jesuíta Michele Ruggieri, que por estudar chinês foi como representante do bispo.

Ruggieri voltou a Shiuhing por duas vezes, levando ao Vice-Rei como presente um relógio mecânico. Depois acompanhando Matteo Ricci noutra embaixada, conseguiu permissão oficial para os portugueses poderem ter uma permanência em Macau e os padres, a possibilidade de viverem na China. Inaugurada no dia 14 de Setembro de 1583 em Shiuhing, foi criada a primeira missão Católica dos tempos modernos na China. Matteo Ricci viveu na cidade a divulgar conhecimentos da ciência e as novas tecnologias do Ocidente, preparando a viagem à capital para ser recebido na corte.

Foi só em 1664 que o imperador Kangxi (1662-1722) dividiu esta província em duas, tornando-se Cantão a capital de Guangdong e levando Zhaoqing ao declínio.

 

A muralha

Deixando a zona dos lagos, embrenhamo-nos pelas vielas que parecem trazer alguma novidade. Sobre a muralha da cidade, só ao consultar um mapa aparece-nos, num desenho esquemático, um rectângulo com ameias. Fortificação? Seguimos na procura da muralha, pelo indicador a apontar o meio da cidade.

Entrando no escondido bazar, que o fora pelo tipo de lojas que ainda hoje aí se encontram, subimos por vielas e sem apercebermo-nos estamos dentro da muralha. Andando um pouco mais, chegamos à grande porta. A muralha ganha imponência ao ser observada do outro lado da avenida e, mesmo parcialmente desmantelada para permitir o trânsito de uma rua, é ampliada a sua grandeza quando numa das esquinas aparece a torre. Com os acessos fechados e guiados pela muralha para a descobrir no seu interior, somos presas fáceis do edifício do antigo palácio do Governo de Zhaoqing. Em exposição, o missionário jesuíta italiano Matteo Ricci é o protagonista, na sua envolvência pelo mundo chinês, já que em Zhaoqing passou seis anos a estudar a cultura chinesa, tentando fazer ligações entre as culturas do Ocidente e do Oriente.

A cidade já estava muralhada quando na dinastia Song do Norte Bao Zheng, famoso pela integridade e justiça com que exerceu o cargo de juiz, tornou-se governador. Nascido em 999, Bao Zheng morreu em 1062, perpetuando-se pelas histórias como deus Bao Gong (Pau Gong em Macau). Chamando-se a si por Xi Ren, este excepcional oficial e homem de Estado nasceu numa família de intelectuais de Luzhou, em Hefei, actual província de Anhui. Com o título de Jinshi, aos 29 anos foi apontado como magistrado de uma comarca. No entanto resignou para ir tratar dos pais doentes durante dez anos. Em 1040, após a morte dos progenitores, foi apontado pelo imperador Renzong como governador de Duanzhou (Zhaoqing).

São várias as histórias relacionadas com a sua maneira de fazer justiça. Certa vez, recebendo em audiência duas mulheres a reclamar a maternidade de uma criança, Bao Zheng, num paralelo da justiça à Salomão, perguntou às pretensas mães sobre o pequeno-almoço que a criança tomava. Cada uma descreveu a refeição e então o juiz propôs que a criança fosse aberta para ser verificado nos intestinos qual tinha razão. Enquanto uma aplaudiu tal resolução, a outra, com lágrimas nos olhos prescindiu da maternidade para que a criança pudesse continuar a viver. Logo ali Bao Zheng entregou o filho à verdadeira mãe. Exerceu o cargo com tal eficiência que muitas histórias o levam a conseguir viajar ao reino dos mortos para ouvir testemunhas e resolver casos de outro modo, até então insolúveis. Após esses três anos, foi promovido para ir trabalhar em Bianliang (hoje Kaifeng), nessa altura capital da dinastia Song.

A população de Duanzhou, grata a Bao Zheng pela sua honestidade e justiça, na despedida, em 1043, deu-lhe uma pedra de Duan, usada para dissolver o pau de tinta e famosa pela lenta secagem do líquido, o que fazia dela uma preciosidade da cidade. Como não queria levar nada mais do que tinha trazido, ao entrar para o barco atirou-a ao rio.

Após a morte de Bao Zheng, o imperador conferiu-lhe o título póstumo de Xiao Su (filial dedicação e integridade) e mais tarde o povo ergueu em sua honra o Templo Ancestral de Bao Gong, a Leste de Zhaoqing, junto às muralhas. Destruído com o passar dos anos, em 2000 o governo local construiu na parte Oeste da cidade um novo templo em honra de quem nem um cêntimo tirou para si quando exerceu as funções de governador. Por isso, por detrás das portas do arco do templo encontra-se uma pedra que contém a seguinte inscrição “Zhengqi Changcun”, que significa “A justiça vive para sempre”.

Esse templo próximo do rio aparece-nos agora um pouco abandonado, com alguns pavilhões fechados e sem grande informação acerca de tão grande estadista. Colocamos incenso e após “bater cabeça” por três vezes, em forma de respeito, deixamos o recinto com poucos visitantes.

 

Shiuhing de Matteo Ricci

A cidade já não presta atenção ao rio Xi, que na parte Sul a delimita, com a margem e as pessoas alheias à passagem de barcos contentores. Rio acima com o ruído dos motores a puxar, ou para jusante deslizando silenciosamente, o autocarro segue pela margem do rio para Leste e deixa-nos no museu de Zhaoqing. Uma grande colecção de pedras de Duanzhou, de excelente trabalho escultórico não fossem elas um dos quatro tesouros da pintura chinesa, ocupa metade do museu. No outro lado dão-nos a conhecer o capitão Ye Ting, que começou em 26 de Maio de 1926 a Guerra Expedicionária do Norte com um grupo de 2000 pessoas escolhidas da companhia número quatro, estacionada em Zhaoqing desde Novembro de 1925.

Caminhando mais para Leste pela margem do Xijiang, um pagode capta-nos a atenção. Ao dirigirmo-nos para lá, um idoso vem ao nosso encontro e sem mais, nem porquê, aponta-nos para uma placa que à primeira vista parece desinteressante. Como está num caminho a um nível inferior da marginal, aí descemos, conseguindo ler entre duas colunas de mármore branco que ali ficava o antigo templo à imortalidade da flor, a primeira igreja erguida por Matteo Ricci na China.

Este padre jesuíta, que veio para Macau em 1582, partiu em Setembro do ano seguinte acompanhado pelo padre Michele Ruggieri para Shiuhing (Zhaoqing), tendo obtido licença do Vice-Rei para construírem uma casa. Esse templo é de 24 de Novembro de 1585 e são essas duas colunas o que dele resta. Após Matteo Ricci partir de Zhaoqing a 15 de Agosto de 1589, o edifício foi reconstruído e usado como templo de Liu Gong.

Qual a relação com o recinto do pagode, construído em 1582 e situado ao lado? Aí, com os edifícios a serem reconstruídos, aproveitamos para subir os nove andares vistos do exterior de Chongxi Ta, com 57,5 metros de altura. Só após 17 andares interiores chegamos ao alto do pagode. Há uma vista excelente das margens do rio que permite ver de cima o terreno concedido a Matteo Ricci para a missão primitiva dos jesuítas na China, que ficou sob jurisdição de Macau.

Como despedida e próximo da estação ferroviária, provamos algo que nunca comêramos: tripas de peixe recheadas. De vez em quando, passa um comboio escondido por arbustos, à frente da esplanada. Assusta os comensais mas não retira o prazer de saborear tal petisco. A linha de ferro acompanha as águas dos lagos na parte Norte e com esse olhar deixamos Zhaoqing.