Nos tempos em que Macau era bairrista

Investigar a história dos bairros é conhecer os desenvolvimentos que tornaram a cidade no que é hoje. Dividida em tempos em cidade cristã e cidade chinesa, a estrutura antiga demarcava posições de poder, onde havia pouca interacção além muralhas entre os habitantes

 

Bairros de Macau

 

Texto Paulo Barbosa

Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro e Arquivo Histórico de Macau

 

O bairro da infância é um espaço povoado com lembranças mágicas, um ponto de partida. Sempre ligado ao seu bairro inicial, no qual hoje dirige o Albergue SCM, o arquitecto Carlos Marreiros recorda a vivência da zona de Santo António, à medida que os seus olhos vão percorrendo as fotografias a preto e branco de meados do século passado. “Nesta rua morava a família Amante Gomes. Todos eles eram músicos, alguns ainda tocam na Tuna Macaense. Tinham uma garagem onde tocavam música dos Beatles e dos Rolling Stones. Mais à frente havia a família Albertino Rosa. Nesta esquina havia uma casa lindíssima da família Sousa, uma família macaense de grandes tradições portuguesas, que tinha a famosa Farmácia Sousa e Filhos, na Rua das Mariazinhas. O prédio era branco e tinha um jardim. Tinha varandas com pilares em aço muito delicados, tudo pintado de branco e de verde,” diz, descrevendo com memória fotográfica casas que já não existem.

Santo António é um bairro que se estende a partir da igreja homónima, passando pelas ruas Belchior Carneiro, Tomás Vieira, Bairro do Monte, Caminho dos Artilheiros e Estrada do Repouso. Era conhecido como “bairro dos mamons”, uma  alcunha que advirá – de acordo com autores como Henrique de Senna Fernandes e Silveira Machado – da qualidade dos petiscos vendidos nos seus  tascos e feiras. Segundo Marreiros, a zona simbolizava a Macau de meados do século passado, “um bairro extremamente democrático, onde gente rica e até agiotas conviviam com funcionários públicos de origem portuguesa e famílias chinesas de origens modestas”. Nem faltava, como boa ilustração dos tempos, uma tertúlia que se realizava numa mercearia situada na Rua do Campo. “A ideia que eu tenho é de uma taberna que cheirava a vinho e queijo, onde o meu avô ia. Na tertúlia todos se vestiam de fato branco. Falavam de política, de mulheres, de literatura, de tudo…”

Em tempos recuados, o centro da chamada cidade cristã era a zona de São Lourenço, em volta da antiga Rua Direita (actualmente a Rua Central) e da baía da Praia Grande. O “bairro dos mamons” tinha uma localização um pouco periférica, paredes meias com a cidade chinesa. “Por isso, os moradores tinham que ser muito bairristas, muito apegados a esta zona, havia romarias e grandes peregrinações à zona de Santo António, um santo muito respeitado. Havia uma mística em torno do bairro, aquando das peregrinações realizavam-se feiras de todo o tipo. Eram feiras de gado, de produtos agrícolas e de comezainas. Daí a fama do bairro dos ‘mamons’, onde se comia muito bem”, conta o arquitecto de Macau, que refere as gravuras do pintor George Chinnery como testemunho dos vários estratos urbanos de Macau (as cidades cristã e chinesa), bem como da presença de uma certa ruralidade, posteriormente engolida pelo progresso.

“O meu avó tinha uma casa na Estrada do Repouso. Na minha infância gostávamos de ir brincar para o Monte, para a zona das ruínas de São Paulo -onde conhecíamos as pedras todas e até alguns dos túneis – e para perto da Igreja de Santo António e da Casa Garden”, recorda Carlos Marreiros, desfiando histórias do bairro, tão boas que podiam ser guião para um filme: “Lembro-me do professor Thompson, que era um inglês refugiado de Xangai e que gostava de animais. Criava cães de raça e era provável que passasse fome para dar de comer aos animais. Vestia sempre de bege ou cinzento claro, com uma gravata grená. Era um homem muitíssimo digno, parecido com a personagem do Peter O’Toole no filme ‘O Último Imperador’. O Mr. Thompson descobriu um pequeno urso numa gaiola na Rua da Felicidade. O urso ia ser comido, embora tal fosse proibido em Macau, mas ele teve tanta pena que comprou o ursito e o passeava na Estrada do Repouso como se fosse um animal doméstico. Nós brincávamos com o ursinho, que nunca nos feriu. Até que o urso começa a crescer e ficou enorme, já não podia sair de casa. Íamos lá ver o urso, que estava num logradouro. Mas, embora o urso não fizesse mal nenhum, alguém, provavelmente recém-chegado, denunciou o caso. Apareceu um dia um camião e levaram o urso. Todos nós protestámos e o urso foi colocado no Jardim da Flora. Todos os dias o professor Thompson ia lá dar-lhe de comer. Quando o professor morreu, o urso, de tristeza e, se calhar, de subnutrição, também morreu.”

 

Cidades paralelas

A historiadora Teresa Sena sublinha que a análise do urbanismo local requer o estudo das relações entre a organização espacial e a definição das estruturas de poder. Desde a viagem de Jorge Álvares, considerado o primeiro português a alcançar a costa chinesa, em 1513, Macau foi-se afirmando como uma cidade portuária. “Às tantas consegue-se formar um núcleo habitado principalmente por ocidentais, que a partir do século XVII está muralhado, é a cidadela. Até aí temos pequenas aldeias chinesas, como o Patane, Mong-Há e A-Má”, conta a investigadora do Centro de Estudos das Culturas Sino-Ocidentais do Instituto Politécnico de Macau.

Enquanto ponto de ligação ao comércio regional e às grandes rotas transatlânticas, Macau começa a cativar os mais diversos povos. “São os portugueses e os seus associados comerciais, atraindo cada vez mais população chinesa, dado que Macau se torna numa oportunidade de negócio. Quando estamos a falar da abertura ao comércio internacional, vêm sempre à baila as companhias europeias, mas é extremamente importante, sobretudo numa fase inicial, o comércio e a mediação feita por mercadores asiáticos. Estamos a falar de arménios, de persas, de indianos. Esses deixaram marcas na cidade. Há o cemitério parse, como houve um cemitério arménio”, continua.

O arquitecto Francisco Vizeu Pinheiro refere que a génese da cidade se situou nos penedos do Jardim Camões: “Os portugueses vinham de barco e escolhiam uma zona protegida do Porto Interior, onde se pudessem refugiar e fazer a aguada, preparando os barcos para expedições. Escolhiam, de preferência, uma zona alta, onde instalavam uma tranqueira para se defenderem. E repetiam esse processo continuamente, retirando os canhões ligeiros dos barcos, por vezes já trazendo castelos de madeira pré-fabricados para montar acampamento nas zonas altas. A zona de São Paulo era uma espécie de colina fortificada, uma cidadela dentro da própria cidade que se estendeu progressivamente para outras zonas.”

Prevaleceu durante muitas décadas (até ao tempo do governador Ferreira do Amaral, já no século XIX), o que Teresa Sena denomina como “uma coexistência de jurisdições sobre as populações, um pouco na linha das cidades portuárias asiáticas”. No âmbito dessa espécie de “‘entente cordial”, Vizeu Pinheiro lembra que “os chineses estavam proibidos de viver na cidade cristã, tanto pelos mandarins como pelas autoridades portuguesas”. Uma proibição que se manteve até finais do século  XVIII e que marcou a forma como a cidade se desenvolveu, e como se “foram formando duas cidades paralelas”.

Perito nas questões relacionadas com o património urbanístico de Macau, o consultor do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) descreve que grande parte daquilo que hoje se denomina de “bairros antigos” está contido na cidade cristã, ou seja, no corredor histórico que vai desde o templo de A-Má passando pela antiga Rua Central,  Quartel dos Mouros, Largo do Lilau, São Agostinho e Largo do Senado, incluindo também as zonas de São Paulo, o Jardim Camões e o Patane. “Esse é o núcleo mais primitivo em termos de estrutura urbana da cidade. Depois há a cidade chinesa, que corresponde à Rua dos Mercadores e à zona que nas imediações da Rua da Felicidade. Aí desenvolveu-se uma tipologia típica do sul da China. A casas têm uma estrutura muito simples e eficiente, com duas paredes de tijolo e pavimento de madeira, com um ou dois pisos”, exemplifica o arquitecto. A urbe extramuros foi evoluindo nas zonas viradas para a China, “que inicialmente eram zonas de armazéns e de construção de navios, mas que pouco a pouco foram sendo ocupadas por casas e casas-lojas, em que a habitação fica em cima e a loja em baixo”.

Uma planta de 1792 indica que Macau então se estendia “entre a Colina da Barra e a Fortaleza do Monte e respectivos planos de muralhas, que se prolongam a nascente e sul até à Baía da Praia Grande e para poente até à Porta de Santo António”.  No exterior da cidade cristã, as povoações chinesas continuavam a ter uma componente rural em meados do século passado. “Em 1960 as hortas ocupavam ainda uma superfície de perto de 70 hectares, dividida em quatro retalhos principais (Aterro Novo, Areia Preta, Hipódromo e Istmo), estimando-se que aí vivam um a dois milhares de horticultores, quer oriundos das antigas hortas do centro da cidade, quer de estabelecimento directo, sendo importante o número de refugiados da China”, argumenta Raquel Soeiro de Brito no livro Um olhar sobre Macau.

Ao traçar o método de urbanização então seguido, a investigadora refere que “à medida que a população vai crescendo, o núcleo urbano vai-se construindo, sempre dentro do mesmo princípio”, com a população portuguesa a estender-se em torno das igrejas, sempre erguidas em sítios altos. Também os chineses sublimavam os seus credos religiosos por meio da construção de vários templos que se encontram no centro dos seus bairros, formando pólos de atracção de novos habitantes da cidade.

 

Um certo cosmopolitismo

Mais barcos ocidentais começaram a aportar a Macau quando os manchus conseguiram erradicar as rebeliões no Sul da China e decidiram abrir alguns portos ao comércio estrangeiro. A partir de 1685, esse comércio fica centralizado em Cantão, onde já operavam na zona, um pouco clandestinamente, holandeses e ingleses. Mas fica-o de forma limitada, dado que os mercadores só podiam permanecer durante as feiras comerciais, entre Outubro e Março. As restrições à sua presença na China eram muitas. Não podiam, por exemplo, fazer-se acompanhar por mulheres ocidentais.

Teresa Sena explica as consequências para Macau desta abertura limitada: “Aí Macau tem um outro papel, passa a ser aquilo a que chamei metrópole do equilíbrio e assume uma função subsidiária muito importante. Os navios só podem subir para Cantão depois de verificados os barcos na Alfândega de Macau.”

A partir do início do século XVIII, para evitarem longas viagens marítimas e estabelecerem redes comerciais, os mercadores passam a estabelecer-se em Macau no período de interregno. A historiadora conta que fixaram residência em vários pontos dentro das muralhas da cidade cristã, mas com maior concentração na zona de São Lourenço, tanto na parte alta como na Praia Grande, mas também nas imediações do actual Jardim Camões.

Vizeu Pinheiro complementa: “Entre meados do século XVIII e do século XIX, eles estavam aqui um bocado à força, por algum tempo, até que ocupam Hong Kong. No período em que o comércio em Cantão não estava aberto, eles tinham que esperar aqui. Alugavam casas grandes, de estilo europeu, de macaenses e chineses abastados. Só que não tinham grandes garantias e, por vezes, tinham que sair de um momento para o outro. Tanto as autoridades chinesas como as portuguesas não viam com grande agrado a competição. Os ingleses tentaram ocupar Macau por duas vezes e não conseguiram.”

Mas o que será que esta presença temporária de mercadores protestantes trouxe a Macau? Teresa Sena admite que deixou “marcas cosmopolitas”, mas lança algumas interrogações. “Até que ponto é que essa cultura é absorvida pela cidade e usufruída como parte do seu património? Estamos a falar de uma cidade dividida. Eles funcionavam um pouco em círculo fechado.” Para Vizeu Pinheiro, é preciso “preservar e acarinhar” os vestígios da presença anglo-saxónica em Macau”, que “fazem parte da história e tradição” da cidade. “Estou-me a lembrar da casa de George Chinnery, que foi demolida. Há casas na zona de São Lourenço onde não existe sequer uma placa a indicar que ali esteve um hospital inglês ou morou alguém importante. Ainda há muito a fazer pelo património e por estas diferentes camadas de história.”

 

Bairrismo em extinção

Com o desmoronar das barreiras físicas que dividiam as cidades cristã e chinesa, em meados do século XIX, “a urbe foi-se alongando progressivamente para norte, abrangendo hortas, ancestrais cemitérios, bem como aldeias como a de Mong-Há. No artigo Historical Background of Macau With Particular Focus on The First Americans in China Teresa Sena nota como a cidade de então “capturou a imaginação dos ocidentais que a visitaram a caminho de tentarem ganhar fortuna na China como um local tranquilo, onde podiam descansar do bulício da vida quotidiana e desfrutar de luxos e prazeres”. Uma imagem que “foi perpetuada numa variedade de literatura romântica e reflecte-se também nos incontáveis turistas que visitam a cidade em busca de imagens ou memórias em edifícios antigos”.

Um recenseamento de Junho de 1867 indicava que as áreas de maior concentração populacional eram a cidade cristã e o bazar. Nesta, as três maiores paróquias eram a Sé, São Lázaro e São Lourenço. Durante os primórdios do século XX, a cidade sob administração portuguesa voltou a desempenhar, em várias ocasiões, o seu secular papel enquanto ponto de abrigo e de passagem. Henrique de Senna Fernandes conta no livro Cinema em Macau que a vida social era marcada por récitas e concertos em locais como o Teatro D. Pedro V e “recepções nas casas particulares, onde se fazia rigorosamente o serão com música, recriação de poesia,  e se jogavam o bafá e o gamão”. Duas agremiações – Clube Macau e o Grémio Militar – rivalizavam nas soirées e o cinema era popular desde que os primeiros cinematógrafos foram instalados na cidade, no dealbar do século. No plano religioso, o calendário era marcado por procissões de devoção macaense, como a do senhor dos Passos e a de Nossa Senhora do Rosário e Santo António.

A década de 1930 foi um período marcado por algumas melhorias infra-estruturais. Por exemplo, foi então que a cidade passou a ter fornecimento de água canalizada (1936) e os aterros da Praia Grande foram implementados. Até essa altura, de acordo com Wong Shiu Kwan, portugueses e chineses tinham adaptado “de forma bem sucedida as boas qualidades das suas arquitecturas, combinando-as num estilo harmonioso e funcional”. No entanto, o investigador considera que o ano de 1937 pode ser considerado como o “último limite no desenvolvimento da arquitectura de Macau debaixo de uma influência mútua”. Por essa altura, segundo analisa no ensaio Macao Architecture – An integrate of Chinese and Portuguese influences, “as influências chinesa e portuguesa tinham desaparecido, sendo a sua anterior predominância substituída pelo estilo moderno e internacional de construção em cimento”. Depois da II Guerra Mundial, “a maioria dos edifícios construídos era de fraca qualidade, geralmente fora de tom com o carácter arquitectónico de Macau”. O pós-guerra trouxe também a emergência do turismo e da indústria do jogo.

Com o desenvolvimento vertiginoso da cidade, será que ainda resta algum do tradicional bairrismo em Macau? Para Carlos Marreiros, esse bairrismo é ainda uma realidade entre a comunidade chinesa, “tendo os kai fong (associações de moradores) um papel preponderante nisso, dado que em cada zona da sua intervenção eles têm uma cantina, têm um jardim, locais de convívio e às vezes até um centro de saúde”. É nessas zonas de convívio que os residentes se juntam para ouvir música ou cantar ópera cantonense, por exemplo. “Agora, bairros onde os macaenses e chineses convivem como nós convivíamos antigamente, eu não conheço. Existem ainda clubes, como o Clube Militar, onde as pessoas se encontram”, complementa o director do Albergue SCM. “Por um lado, é pena que esse convívio de bairro já não exista, mas é a evolução natural da urbe. Se formos a outras cidades do mundo, vemos que só em zonas muito específicas estas tradições se mantêm.”

 

Desenhando estratégias para preservar o património

Para preservar os bairros antigos de Macau, Vizeu Pinheiro considera fundamental a realização do levantamento dos edifícios relevantes e também o estudo das personalidades notáveis que os habitaram, como Sun Yat-sen, o fundador da República chinesa. “Há também ambientes que podem ser recriados. Essa é a tradição japonesa, chinesa e coreana: repetir não exactamente como estava, mas o ambiente de acordo com os rituais da tradição”, explica o arquitecto, que exemplifica com vários edifícios do tipo “ponte-cais” existentes no Porto Interior, que poderiam ser transformados em “pontos culturais e bares”. O consultor avança com estratégias para “expandir o património”, tais como “melhorar as zonas pedonais” e “cobrir algumas ruas, porque em Macau chove muito”. E propõe que seja estabelecido “um corredor em que as pessoas possam andar sem problemas de tráfego automóvel ou de poluição, que se alargasse desde a zona de Mong-Há até ao Senado”.

Considerando que a lei do património cultural, em fase de análise final na Assembleia Legislativa, “pode ajudar, dependendo do que é classificado e do que não o é”, Pinheiro chama a atenção para o património de origem chinesa, como a Fábrica de Panchões Iec Long – para onde defende a criação de um parque urbano, “porque a Taipa tem uma densidade populacional enorme e precisa de árvores” – e os tradicionais Pátio da Claridade e das Seis Casas. “No caso do Pátio da Claridade, a comunidade residente está viva e era importante mantê-la e aos seus descendentes ali, até porque está numa zona importante, de transição entre o Porto Interior e as partes intermédia (Lilau) e alta (Penha). Recuperar esses pequenos oásis patrimoniais seria muito importante para manter a memória e a imagem do passado, atraindo turistas e mantendo viva a tradição de Macau. Porque património não é só as ruínas, é sobretudo os hábitos e tradições da população. A cultura chinesa considera que a tradição não são as coisas, mas são os rituais”, argumenta.

 

Aldeias com vida autónoma

As povoações chinesas de Macau continuaram a manter uma certa autonomia até ao século XIX, advogam Maria Calado e Maria Clara Mendes num artigo publicado na Revista de Cultura. As investigadoras defendem que os campos e hortas em redor da cidade cristã a forneciam de “vegetais e fruta, que eram abundantes, ao contrário da carne, uma componente básica da dieta europeia”. “Os templos eram as principais construções dessas povoações e os cemitérios chineses eram construídos em prados e zonas elevadas, sendo um espaço simbólico de grande importância para a comunidade”, referem.

 

São Paulo, a jóia da coroa

As igrejas sempre estiveram no centro dos bairros de Macau, multiplicando-se de tal forma que se encontram quase a cada esquina, fazendo lembrar os cenários de Velha Goa e de algumas cidades europeias. César Guíllén Nuñez considera que o fenómeno “aconteceu porque Macau se tornou no centro das missões para a China e para o Japão e depois para a Indochina e para a Coreia”. Além disso, refere o historiador de arte – especialista no barroco ibérico e nas variantes locais proporcionadas pelo ambiente colonial – a abundância de igrejas estará relacionada “com o carácter das civilizações latinas: se olharmos para países como Portugal, Espanha e Itália, ou até para França, há muitas igrejas por todo o lado”.

Uma outra explicação é avançada por Vizeu Pinheiro: “Em Macau, a partir de certa altura, fez-se a divisão por dioceses, como a Sé, São Lázaro e Nossa Senhora de Fátima, esta já no século XX. Mas muitas das igrejas de Macau não são diocesanas, mas são pertencentes às ordens religiosas. Dizemos que são muitas igrejas mas, na prática, não são tantas, porque estes complexos religiosos estavam de alguma maneira isolados da cidade”.

De todas as igrejas da cidade, Guíllén Nuñez estudou especialmente a emblemática Igreja de São Paulo, à qual dedicou o livro Macao’s Church of Saint Paul: A Glimmer of the Baroque in China. O investigador do Instituto Ricci considera que “a igreja de São Paulo e a fachada que hoje se pode ver foram algo de radicalmente novo, e é isso que as transformam num objecto de estudo estimulante”. E diz mesmo que a igreja jesuíta “não pode ser comparável a edifícios do passado, apenas se notando em Goa uma inspiração comum”.  Historicamente, a igreja e o colégio de que fazia parte (considerado por muitos como a primeira universidade na Ásia) desempenharam o papel de “uma espécie de entreposto de missionários”, por onde passaram padres famosos como Michele Ruggieri e Matteo Ricci.

O monumento mais emblemático e original de Macau, onde todos os turistas gostam de posar para a fotografia, conheceu dois estágios, tendo a sua primeira construção sido destruída por um incêndio. Foi mais tarde construída uma segunda igreja, da qual permanece a fachada, dado que também foi destruída por um fogo no ano de 1835. O investigador classifica o templo como “pertencente ao estilo barroco inicial”, sendo “rico e com uma arquitectura sofisticada” devido à prosperidade então alcançada por Macau. “Depois da reconstrução no século XVII, existiam meios financeiros que fizeram com que o edifício da igreja se tornasse muito luxuoso e ricamente decorado, devido à comunidade mercantil de Macau. Nessa altura, a cidade e os seus comerciantes estavam a ser muito bem sucedidos, devido principalmente ao comércio com o Japão. A cidade tinha dinheiro, houve doações e os jesuítas também participaram. Quando há dinheiro podem construir-se ricos edifícios.”

É hoje impossível observar na plenitude a importância artística da igreja e do Colégio de São Paulo, dado que ambos os edifícios desapareceram. Restam a fachada de São Paulo e os documentos escritos disponíveis, que Guíllén Nuñez encontrou nos arquivos da Biblioteca Real da Ajuda, em Lisboa, e nos arquivos dos jesuítas, em Roma. O investigador planeia escrever mais dois livros relacionados com Macau, um deles sobre o Seminário de São José e o outro acerca do comércio com a China.